Covid-19 ainda causa danos em Portugal: quase 200 pessoas morreram em três meses e o "número de casos novos é imensamente superior ao relatado"

1 abr, 08:00
Covid-19 (Freepik)

Especialistas salientam uma diminuição da gravidade dos casos, mas apressam-se a alertar para o facto de o SARS-CoV-2 não ter desaparecido (e dizem mesmo que poderá ser lembrado anualmente com uma nova vacina)

Portugal é o sétimo país europeu com mais casos de covid-19 e contraria a tendência decrescente que se vive no continente europeu. Segundo os mais recentes dados da Direção-Geral da Saúde, desde 1 de janeiro foram reportados 3.593 novos casos de infeção por SARS-CoV-2, tendo sido ainda notificadas 197 vítimas mortais.

Os médicos Filipe Froes, pneumologista e um dos peritos da DGS para a pandemia, e Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, olham com cautela para estes números e, mesmo rejeitando alarmismos, reconhecem que o número de infetados poderá, na verdade, ser consideravelmente superior ao relatado.

O número total de casos novos de covid-19 é imensamente superior ao que é relatado, sem dúvida alguma, mas não conhecemos a real dimensão do número de casos”, seja em Portugal - “onde ainda se vai procurando “alguma coisa” - como no “resto do mundo”, começa por dizer Gustavo Tato Borges.

Mas quantos mais casos poderá ter Portugal? “É difícil de responder”, continua o especialista em Saúde Pública. “A verdade é que nós vamos tendo uma noção da gravidade da covid-19 em Portugal neste momento [pelo número de internamentos, por exemplo], mas não da sua real incidência”, adverte Tato Borges.

“É importante continuar a monitorizar o número de casos, mas o impacto na sociedade é cada vez mais difícil de avaliar”, considera Filipe Froes, que diz que este deve ser um “momento de grande balanço”, pois “estamos a entrar quase no primeiro aniversário do fim da pandemia e já passámos o quarto aniversário da declaração de início”.

Quase 200 mortes em três meses

De acordo com os dados da Organização Mundial da Saúde, entre 11 de dezembro de 2023 e 7 de janeiro de 2024, Portugal teve mais 43% de novos casos face ao período de 13 de novembro a 10 de dezembro de 2023, mas menos 13% de hospitalizações comparando estes dois períodos. Em causa, estão as recentes variantes e respectivas sublinhagens, tudo da família Ómicron, ou seja, mais transmissíveis, mas menos agressivas e causadoras de doença.

De uma forma global, “não há nenhuma variante de preocupação em circulação identificada, o que é bom", ou seja, "os níveis de transmissão e gravidade estão dentro dos expectáveis”, diz Filipe Froes, adiantando que a vacina que está atualmente no mercado, com a variante XBB1.5, “é eficaz para a sublinhagem JN.1”, que se tem mostrado dominante em Portugal, como revelam os mais recentes dados do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge

“Embora [a variante em maior circulação] seja mais transmissível, não tem mais impacto clínico a nível de gravidade”, adianta Filipe Froes. Ainda assim, o ano começou com 197 vítimas mortais, faltando saber se morreram por covid ou com covid, uma dúvida que não é de agora e que compromete a real noção dos dados, dizem os especialistas ouvidos pela CNN Portugal.

“Não sabemos se a resposta inflamatória desencadeada pela covid-19 tem impacto noutras patologias, há diferenças entre morrer com e por [infeção com SARS-CoV-2]. Por exemplo, a pessoa pode ter enfarte do miocárdio, mas em que medida a resposta do vírus foi um fator determinante? Ainda assim, estas pessoas morreram por uma situação que não existia antes da pandemia. Há mais uma causa de morte a acrescentar às que já existiam”, questiona Filipe Froes.

Também Gustavo Tato Borges considera que a “covid-19 pode ter sido apenas mais uma gota na quantidade de doenças”, tornando o cenário fatal, e adianta que “é preciso continuar a alertar que a doença pode matar as pessoas mais vulneráveis”, até porque, sublinha, seja de forma direta ou indireta,“197 [óbitos] em 3.593 pode ser significativo, é cerca de 5%”.

Não há qualquer dúvida de que morreram em Portugal cerca de 27 mil pessoas durante a pandemia e, infelizmente, agora continuam a morrer, algumas delas de forma evitável com infeção por SARS-CoV-2”, acrescenta o pneumologista, alertando que esta continuará a ser uma realidade.

Evitar os erros do passado

Uma vez que a realização de testes já não é obrigatória e parece mesmo ter deixado de ser uma prática rotineira na presença de sintomas - o que compromete, como dizem os especialistas, ter uma perceção real do número de novos infetados -, muitos dos casos conhecidos pelas autoridades de saúde devem-se a idas às urgências e centros de saúde ou a contactos com a linha SNS24. 

Mas Filipe Froes diz que é preciso ir além disso e deixar de estar refém do “voluntarismo das pessoas”. É preciso, adianta, antecipar novos casos e, para isso, defende “o rastreio da atividade viral na água residual, à semelhança de outros países, para não estarmos tão dependentes da boa vontade e voluntarismo das pessoas”. 

“Isto permite a monitorização de outros microorganismos e permite também antecipar aumentos de atividades na comunidade, de maneira a tomar medidas corretas”, explica o pneumologista.

Mas é na vacinação que está o segredo, dizem os especialistas. Embora Portugal continue com uma taxa de vacinação superior à grande parte dos países, a última ronda ficou aquém do esperado. Segundo Filipe Froes, os mais recentes dados apontam para uma “taxa de cobertura vacinal de 55% para pessoas com mais de 60 anos”, apressando-se a dizer que “é pouco, é metade das pessoas” que deveriam estar vacinadas. E acrescenta: “Em cada três pessoas temos uma com mais de 80 anos não vacinada.” 

“Devíamos ter valores mais altos, mas estes valores são melhores do que em outros países”, reconhece o pneumologista. De acordo com os mais recentes dados da DGS, 1.988.679 pessoas foram vacinadas contra a covid-19 nesta, ainda a decorrer, campanha vacinal.

Gustavo Tato Borges aponta o dedo ao “cansaço” - a chamada fadiga pandémica - e a uma “comunicação não muito clara e assente num tom de comédia, que para o alvo [da vacina] não teria caído da melhor maneira”, o que poderá não ter feito passar de forma eficaz a mensagem da importância da vacinação.

“As pessoas não percebem porque tomaram tantas [vacinas], mas é preciso explicar que tomaram tantas porque o vírus foi evoluindo. Ao contrário da gripe, houve muitas evoluções num curto espaço de tempo e isso implicou mais vacinas. E, perante a nova variante, a vacina mantém a eficácia”, assegura Filipe Froes.

Além disso, Tato Borges critica ainda a falta de proatividade das autoridades de saúde. “Estávamos à espera que fosse o utente a agendar [a vacinação], mas temos de ser nós, Serviço Nacional de Saúde, a ir ter com o utente”, adverte, explicando que este pode ter sido um dos motivos pelos quais as pessoas não aderiram como o esperado à vacinação nas farmácias, embora defenda que foram uma “mais-valia e um parceiro muito importante” no processo.

A partir deste ano, creem os dois especialistas, a vacina contra a covid-19 fará parte do ‘menu’ sazonal, sendo o mais certo que em breve chegue uma vacina combinada para a gripe e covid-19, no entanto, o cenário de “vacinação intercalar” - em que, na falta de mutações, a mesma vacina dá para mais do que um ano - possa também ser uma realidade. No entanto, apesar de esta já parecer ser um cenário quase certo para quem trabalha no terreno, Tato Borges defende que a mensagem tem de chegar o quanto antes às pessoas.

“Penso que será também importante que a DGS e a Direção-Executiva do SNS, quando planearem a próxima época vacinal, tenham um calendário de alargamento previsto para grupos etários mais jovens, informando que os primeiros [a serem vacinados] são os de maior vulnerabilidade e depois podemos ir alargando, isso dá um sinal de mais profissionalismo”, diz o médico de Saúde Pública.  

Mas no fim de contas, garante Froes, “teremos mais uma vacina todos os anos”.

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