28 de maio, dia do golpe que resultou no Estado Novo. 28 de maio, dia em que Portugal reconhece a Palestina? "As datas são o que nós quisermos delas"

23 mai, 16:14
Protesto proó-palestina por exclusão da Israel da Eurovisão em Malmo, Suécia, a 9 de maio 2024. AP Photo/Martin Meissner

"28 de maio é uma data com significado para Portugal" e há quem espere que nesse dia deste 2024 Portugal se associe a três países que vão formalizar isto: reconhecimento do Estado da Palestina. Mas o que vale na prática um reconhecimento destes? Vale que sem isso "não pode haver paz no Médio Oriente". E vale outras coisas. Mas Portugal considera que - "para já" - vale mais como Estado "mediador" do que Estado que reconhece o Estado da Palestina. "Para já"

“Os anúncios coordenados são puramente simbólicos – mas não deixam de ter algum poder.” É assim que o Washington Post descreve o passo que Noruega, Irlanda e Espanha decidiram dar ao reconhecerem formalmente o Estado da Palestina. Não fazendo parte da União Europeia, o facto de a Noruega se ter juntado a dois Estados-membros do bloco não é de menosprezar, dado que a capital norueguesa deu nome aos famosos Acordos de Oslo, assinados em 1993 entre Yasser Arafat, da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), e Yitzhak Rabin, então primeiro-ministro israelita, com mediação de Bill Clinton, à data presidente dos EUA, para a futura criação de dois Estados.

“Não pode haver paz no Médio Oriente sem este reconhecimento”, defendeu na quarta-feira o primeiro-ministro norueguês, Jonas Gahr Store. Quase ao mesmo tempo, os homólogos de Espanha, Pedro Sánchez, e da Irlanda, Simon Harris, invocaram a mesma ideia ao anunciarem que o passo em três frentes é formalizado no próximo dia 28 de maio.

Contactado pela CNN, o Ministério dos Negócios Estrangeiros indicou que Portugal não vai alinhar com os parceiros europeus “para já”, preferindo “conservar o papel de mediador no processo e tentando garantir o maior número de Estados possível para o reconhecimento [do Estado palestiniano]” – “o que não significa que não venha a reconhecer no futuro”.

“A meu ver, infelizmente, Portugal perde uma boa oportunidade, até pelo seu passado histórico, de se juntar agora a uma posição correta no plano dos princípios, dos valores e do direito internacional”, defende à CNN o advogado Jerónimo Martins, da Associação de Advogados sem Fronteiras de Língua Portuguesa (ADVSF). “Há que saudar este passo [dos três países europeus] e há que aguardar por 28 de maio, uma data com significado para Portugal [aquando do golpe de 1926, que abriu caminho ao Estado Novo] – isto só significa que as datas são aquilo que nós quisermos que elas sejam, depende da nossa vontade.”

Líderes da Irlanda (na foto), de Espanha e da Noruega defendem que não haverá paz no Médio Oriente sem se reconhecer o Estado da Palestina (Damien Storan/AP)

"Aquilo a que chamamos 'boa-fé'"

Reagindo ao anúncio dos três países na quarta-feira, o chefe da diplomacia da União Europeia (UE) ecoou a posição do governo português. Na rede social X, Josep Borrell disse ter tomado "nota" da decisão dos dois Estados-membros e da Noruega e adiantou: "No quadro da política externa e de segurança comum, vou trabalhar sem descansar com todos os Estados-membros para promover uma posição comum na UE baseada na solução de dois Estados.”

Hoje, a chamada solução de dois Estados está mais longínqua do que nunca. Se há 31 anos, quando os Acordos de Oslo foram assinados, havia pouco mais de 110 mil colonos a viver na Cisjordânia ocupada, incluindo na parte oriental de Jerusalém – capital a ser partilhada pelos dois Estados à luz dos mesmos acordos –, hoje esse número ascende acima dos 700 mil. Os colonatos são considerados ilegais pela comunidade internacional, mas o Estado hebraico continua a disputar essa premissa.

Por menos efeito prático que o passo ontem anunciado possa ter, para Jerónimo Martins “trata-se de cumprir o que foi há muito acordado e que tem sido objeto, em maior ou menor intensidade, segundo vários critérios, de violações ostensivas e grosseiras que põem em causa um dos princípios do direito internacional, aquilo a que no direito nacional chamamos de ‘boa fé’.” O advogado dá como exemplo precisamente a questão dos colonatos israelitas na Cisjordânia.

“O caso mais evidente no conflito israelo-palestiniano é a questão da fixação dos chamados colonatos, que violam de uma forma progressiva, quer em número, quer em território, aquilo que foi definido e estabelecido [pelos Acordos de Oslo] entre entidades de bem, onde há ataques, violações, em que querem afastar os [palestinianos] que lá estão, e não é propriamente com um convite para um chá das cinco, é com violência, quando não mesmo morte ou extermínio, em violação do que está acordado”, refere o especialista em direito internacional.

Apesar de continuar a fornecer armas e respaldo diplomático a Israel, e de não alinhar com a grossa maioria dos Estados das Nações Unidas que já votaram a favor de garantir plenos direitos à Palestina (e entre os quais se conta Portugal), os Estados Unidos reconhecem estas violações cometidas nos colonatos, motivo pelo qual têm pressionado as autoridades israelitas para que responsabilizem colonos extremistas pela escalada de ataques a civis palestinianos nos territórios ocupados

No início de fevereiro, a administração de Joe Biden decidiu inclusive impôr sanções a quatro cidadãos israelitas que vivem na Cisjordânia ocupada pelo que considera serem “níveis intoleráveis” de violência perpetrada por colonos israelitas, bloqueando o acesso destes indivíduos a propriedade, a bens e ao sistema financeiro norte-americano. Contudo, a intenção de sancionar também um batalhão das forças armadas israelitas suspeito de violações semelhantes ainda não saiu do papel.

Uma criança palestiniana fotografa veículos incendiados num ataque de colonos israelitas em Hawara, perto da cidade de Nablus, na Cisjordânia. Desde os ataques do Hamas a 7 de outubro, pelo menos 502 palestinianos foram mortos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, sobretudo por colonos israelitas, mais do triplo do total de mortos em todo o ano de 2022 (Maya Alleruzzo/AP)

"A Palestina cumpre o requisito do povo e também tem o território"

Há alguns anos, o governo liderado por Benjamin Netanyahu passou a integrar partidos nacionalistas extremistas que apoiam a expansão dos colonatos, que defendem a anexação da Cisjordânia e que são declaradamente contra a solução de dois Estados. E a situação só piorou com o ataque sem precedentes do Hamas que, a 7 de outubro, vitimou 1.200 pessoas, levando Israel a lançar a mais dura das sucessivas ofensivas armadas contra a Faixa de Gaza que, desde então, já provocou mais de 35.500 mortos, na sua maioria mulheres e crianças, e mais de 70 mil feridos, e que continua sem fim à vista.

A Associação de Advogados Sem Fronteiras de Língua Portuguesa foi uma de dezenas de grupos e organizações de todo o mundo que, desde outubro, têm defendido o respeito do direito internacional assente em três pontos essenciais definidos numa petição dirigida ao presidente da Assembleia da República, lançada pelos advogados em fevereiro – o reconhecimento do Estado da Palestina, um cessar-fogo imediato e permanente em Gaza e a entrega dos reféns levados pelo Hamas.

Quanto ao primeiro ponto, não há regras vinculativas sobre um país reconhecer a existência de outro, ainda que o direito internacional forneça algumas linhas orientadoras, nomeadamente sob a Convenção de Montevideu. Relativa aos direitos e deveres dos Estados, foi assinada por 20 países da América do Norte e do Sul em 1933 e define quatro critérios para a existência de um Estado: deve ter uma população permanente; um governo; fronteiras definidas; e a capacidade de manter relações bilaterais com outros Estados. Contudo, vários Estados reconhecidos como tal não cumprem estes critérios atualmente – veja-se o caso da Líbia. E alguns Estados emergem e constituem-se na sequência de declarações de independência por movimentos nacionais, que depois então buscam o reconhecimento internacional.

“No plano da concertação dos outros Estados, o relacionamento é diferente quando envolve contacto com um território que não é reconhecido como Estado ou alguém que tem prerrogativas de Estado e que pode ser considerado um Estado”, explica Jerónimo Martins, que aponta exemplos ligados, ainda que indiretamente, a Portugal. “Antigamente dizia-se sobre Timor-Leste no pós-independência que era um quase-Estado, há quem fale de não-Estados e até de narco-Estados, como alguns se referem à república da Guiné-Bissau. Mas o facto é que são Estados e o ser Estado é possuir estes três requisitos básicos que se aprendem no 1.º ano de curso em direito internacional público – território, povo e poder político.”

A Palestina cumpre todos esses requisitos e, ao decidirem formalizar esse reconhecimento, Noruega, Espanha e Irlanda abrem a porta para que possa ter os mesmos direitos e deveres que os demais, “reconhecendo-lhe a plenitude dos direitos, por maiores limitações que possa ter, inclusivamente para poder ser responsabilizado no que toca aos seus deveres”, ressalta o advogado. 

“Na questão da Palestina, o poder político existe, independentemente do juízo que se faça ou das divergências que existam entre os que reivindicam a sua representatividade” – entre a Fatah, parte da OLP de Arafat, que detém administração limitada da Cisjordânia ocupada e que é reconhecida pela comunidade internacional, e o Hamas, definido pelos EUA e pela UE como organização terrorista e que, desde 2007, controla a Faixa de Gaza. “A Palestina cumpre esse requisito, cumpre o requisito do povo e também tem o território, que está lá, não desapareceu, a questão é que possa ser utilizado, aplicado e exercido em concreto.”

Os Acordos de Oslo, assinados por Arafat e Rabin com mediação de Clinton, previam a criação de dois Estados, Israel e Palestina, a 4 de maio de 1999 (Ron Edmonds/AP)

"Não é o momento adequado? Como tudo na vida, o momento só é adequado quando entendemos que vale a pena"

Dado que muitos países ainda não reconhecem a Palestina como Estado, a ONU apenas lhe dá reconhecimento parcial. Em 1974, ainda antes dos Acordos de Oslo, a OLP tornou-se entidade observadora das Nações Unidas. Em 2012, a assembleia-geral da ONU atualizou o estatuto dos palestinianos a observador não-membro, pondo-os no mesmo escalão que o Vaticano. Mas para se tornar um Estado de pleno direito, é preciso o total consenso das nações que integram o Conselho de Segurança, entre elas três que têm assento permanente e poder de veto – EUA, Grã-Bretanha e França. 

Em abril deste ano, face à crescente crise humanitária em Gaza, a Argélia, que atualmente detém um dos assentos rotativos no Conselho de Segurança da ONU, apresentou uma resolução nesse sentido. O resultado? Doze dos 15 países-membros apoiaram o reconhecimento da Palestina como Estado de plenos direitos na organização transnacional, incluindo França, mas os EUA vetaram o passo (com a abstenção dos britânicos e dos suíços). A embaixadora norte-americana na ONU alegou que a Palestina não cumpre todos os requisitos de um Estado, porque “o Hamas controla uma grande parte do território”. Um mês depois, 143 dos 193 membros da assembleia-geral votaram a favor do reconhecimento da Palestina como Estado de pleno direito.

“Só num plano de igualdade e de paridade é que dois Estados podem negociar”, sustenta Jerónimo Martins. “É evidente que a história demonstra que um conflito da natureza militar só tem solução do ponto de vista político. Foi assim no caso do domínio colonial português, em que se encontrou uma solução política – se foi a melhor ou não é discutível, é outra matéria, mas do ponto de vista militar nunca há solução.”

Assim, o passo que Noruega, Irlanda e Espanha se preparam para dar – seguindo as pisadas de países como o México, que anunciou o reconhecimento da Palestina no ano passado, ou a Suécia, outro Estado-membro da UE que reconhece o Estado palestiniano desde 2014 – é, acima de tudo, uma forma de pressionar a comunidade internacional a garantir essa paridade.

“O reconhecimento da Palestina como Estado significa a plena assunção de um conjunto de obrigações, de deveres e de direitos, à luz do direito internacional público, inerentes a essa qualidade, desde logo pela importância do ponto de vista político e do momento que atravessamos”, defende o advogado da ADVSF. “Esta semana, o Presidente da República disse que este ‘não é o momento adequado’ para o fazer. A minha opinião, e a da minha associação, que é obviamente discutível, é diferente. Não é o momento adequado? Como tudo na vida, o momento só é adequado quando entendemos que vale a pena.”

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