"Causa aflição" que se apliquem medidas salariais no setor público sem instrumentos para avaliar "os seus custos e eficácia"

24 jun, 07:00
Rui Baleiras, coordenador da Unidade Técnica de Apoio Orçamental, entrevistado pela CNN Portugal. 11 janeiro 2023. Imagem: DR

ENTREVISTA || Rui Baleiras, coordenador da UTAO, garante que fica mais barato para o Estado deixar sair para a reforma os professores que querem fazê-lo ao atingir a idade legal, e substituí-los por novos, do que manter no sistema educativo até aos 70 anos os atuais docentes do quadro

A Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) e o Ministério da Educação usaram pressupostos diferentes para contabilizar o impacto financeiro da reposição do tempo de serviços dos professores. Diferenças que para o coordenador da UTAO mostram a independência do trabalho feito pelos técnicos que dão apoio aos deputados e que não justificam uma alteração de cálculos por parte da unidade.

Nas contas feitas para avaliar o impacto da reposição do tempo de serviço dos professores há diferenças entre os números do Governo e os da UTAO...

Temos de distinguir o que é o impacto bruto e o impacto líquido. O bruto resulta do acréscimo na remuneração base dos docentes e nas contribuições do Ministério da Educação para a proteção social desses docentes. E aí, segundo as nossas contas, varia entre 41 milhões de euros em 2024 e os 469 milhões de euros em 2028, ano cruzeiro. Em termos líquidos, isto é, descontando as receitas que vão ocorrer por conta do IRS, por conta das contribuições dos trabalhadores e do empregador público para a Caixa Geral de Aposentações ou Segurança Social, e ainda por conta das contribuições dos trabalhadores beneficiários da ADSE [sistema de saúde dos funcionários públicos], o impacto é menos de metade: 18 milhões em 2024 e 202 milhões em 2028.

Os números do Governo apontam para um impacto líquido superior, na ordem dos 300 milhões de euros. O Ministério da Educação emitiu mesmo um comunicado a esclarecer as contas depois do trabalho da UTAO ter sido divulgado. Há alterações a fazer na análise da UTAO?

Não há nada a mudar. Os esclarecimentos do gabinete do ministro da Educação são bem-vindos e a sua necessidade justificou-se por as previsões de impacto orçamental da UTAO diferirem das elaboradas pela equipa técnica do Ministério. A UTAO fez o seu trabalho sem conhecer o estudo do Ministério e vice-versa. Foi uma boa prática. Não restam dúvidas sobre a independência do relatório da UTAO face aos legítimos interesses políticos do Governo.

De acordo com a melhor informação que tenho neste momento, não conhecemos nenhum outro trabalho que tenha sido feito com o nível de profundidade deste. Usámos microdados, usámos dados individuais sobre cada um dos 108 mil docentes que existem na carreira.

Como se explica a diferença entre as duas contabilizações?

A explicação ministerial para a diferença nas previsões dos dois estudos faz sentido. O próprio relatório da UTAO já antecipava que seria natural existirem diferenças nas conclusões numéricas das duas entidades. O comunicado indica que a diferença nos impactos quantificados resulta, nomeadamente, de hipótese diferente sobre a idade de saída da carreira para a aposentação. Tem lógica. O modelo da UTAO assumiu que cada docente se reforma ao atingir a idade legal para aposentação sem penalizações. Pelo que afirma o comunicado do Governo, o seu estudo assume que a aposentação só acontece aos 70 anos.

Ou seja, recebem durante mais tempo já com a reposição do tempo…

… o que redunda num maior encargo global com pessoal docente do que no estudo da UTAO. Poderá haver outras diferenças metodológicas, não sei. Teria de ler o estudo, em particular, a descrição do modelo, da base de dados e das hipóteses embutidas no mesmo para descobrir outras causas eventuais para a diferença de resultados. Seja como for, julgo que o sentido qualitativo a extrair do relatório da UTAO é análogo ao que transparece do comunicado do gabinete do ministro.

Se os docentes se reformarem na idade legal, usando o modelo seguido pela UTAO, haveria uma diminuição do corpo docente. Mas a UTAO também avaliou a hipótese de se manter o corpo docente com a substituição de quem se aposenta por um novo professor em início de carreira. O que acontece nesse cenário?

Estudámos a possibilidade de os docentes que saírem para a reforma serem substituídos por profissionais novos, contratados para o 1.º escalão da carreira. Fizemos as contas com base na atribuição do crédito de tempo acordada entre Governo e sindicatos. Assumimos então que, por cada saída para a aposentação, entra para o quadro, na 1.º posição remuneratória, um novo docente, de tal modo que o quadro de pessoal terá sempre o mesmo número de profissionais ao serviço entre 2024 e 2027.

E o que é que acontece?

Somando os resultados para estes quatro anos, prevemos que haverá a renovação de 17.470 docentes (num quadro sempre com 108.289 docentes). As 17.470 saídas libertarão 527,8 milhões de euros de despesa líquida e as 17.470 entradas para o 1.º escalão aumentarão a despesa líquida em 285 milhões de euros. Em conclusão, a manutenção do número de docentes no sistema fará reduzir a massa salarial, líquida de receita para o setor público, em 242,7 milhões de euros.

Fica mais barato deixar sair para a reforma?

Fica mais barato para o Estado deixar sair para a reforma quem quiser fazê-lo ao atingir a idade legal mínima para o efeito, e substituir quem se reforma por docentes novos, do que manter no sistema educativo até aos 70 anos os atuais docentes do quadro. A razão é a diferença entre o salário auferido no ano da reforma e o salário de entrada na carreira. Poderá até acontecer que com esta troca haja menos ausências por doença e horários com mais horas por docente. Julgo saber que, a partir de determinada idade, os docentes têm direito a uma redução no número semanal de horas letivas.

Para além de avaliar a reposição do tempo de serviço dos professores, também tinham como missão fazer o mesmo trabalho para as restantes carreiras da função pública. Mas já disseram que não é possível fazê-lo. Porquê?

O trabalho possível está feito. Sabe quantas carreiras existem nas Administrações Públicas? É que o pedido era para todas: central, regional e local. São, no mínimo, 194 carreiras. Digo no mínimo, porque, por exemplo, três carreiras de funcionários da Assembleia da República não estão na lista. Portanto, imagino que haverá outras carreiras que não conseguimos apanhar. É um universo superior a 650 mil trabalhadores. E, portanto, respondendo objetivamente à pergunta, não é viável conceber uma medida de compensação equitativa ao crédito de tempo que foi ou vai ser atribuído aos docentes do ensino não superior.

Isso não vai criar um problema político? Arranjou-se uma solução para os professores, uma das 194 carreiras, as outras 193 vão sentir-se prejudicadas e os sindicatos vão exigir igualdade de tratamento. 

Sim e não. Uma das razões para a dificuldade de fazer um exercício de previsão para pelo menos 193 carreiras é o facto de muitas dessas carreiras terem conhecido benefícios exclusivos nos últimos cinco anos. Já tiveram reestruturações das tabelas remuneratórias, redução de escalões, aumentos na remuneração base, já tiveram aumentos de suplementos remuneratórios… Isto, por um lado, torna extremamente complicado estabelecer o que é a base equitativa de partida para se conceber a tal medida de compensação, mas, por outro lado, também retira argumentos reivindicativos às organizações sindicais representativas das muitas carreiras que foram beneficiadas de 2019 até hoje. 

Por outro lado, para fazermos este exercício para os professores, tivemos acesso a microdados, ou seja, dados individuais ao nível de cada docente, com indicação do escalão, da última classificação de avaliação obtida, se beneficiaram ou não do chamado acelerador, e muitas outras variáveis individuais. Precisaríamos de ter uma estrutura de dados primários equivalente a esta para as tais 193 carreiras. Ora, não existe. Falámos com a Direção-Geral da Administração e do Emprego Público, que nos disse que não tem. Há um projeto que já se desenvolve há vários anos no sentido de chegar a esse objetivo, mas a verdade é que não existe, e, portanto, não poderíamos fazer contas. 

Está a dizer que todas as decisões sobre remunerações na administração pública que vão sendo tomadas ao longo do tempo, vão sendo tomadas sem uma avaliação prévia e sem uma avaliação posterior. 

Exatamente.

Os governos não sabem o que andam a fazer? 

Exatamente. Já tenho alertado para aquilo que é uma característica negativa da política económica em Portugal, que não é de agora, tem décadas, que é a ausência de fundamentação técnica e previsão de impactos económicos, sejam os impactos nas contas públicas, seja nos beneficiários. Às vezes avançamos com uma medida que custa 80 milhões de euros por ano, mas o benefício para o cidadão pode ser apenas equivalente a mais um café por mês. Não há medidas de eficácia nos resultados, não há medidas de custo e de implementação das medidas.

Uma das recomendações que sai deste trabalho é precisamente para o Governo tomar as medidas necessárias para dispor de bases de microdados, pelo menos para as carreiras profissionais mais densas, enfim, com mais trabalhadores ou com mais despesa pública. Causa aflição que todos os anos sejam postas em prática medidas sobre emprego e remunerações no setor público e não se tenha, na verdade, os instrumentos essenciais de medida de custo e eficácia. E depois não há, nunca, avaliação do desempenho das medidas de política. É outro grande defeito que temos. E se calhar na base de tudo isto está uma crença infantil de que há um problema, faz-se uma medida de política, um grande anúncio na comunicação social e acredita-se que o problema fica resolvido. Nada mais ingénuo.

Economia

Mais Economia

Patrocinados