Coordenador da Comissão para a Reforma da Saúde Pública demite-se por causa da nova lei das Ordens

CNN Portugal , MJC
14 jun 2023, 10:08
Médicos (imagem Getty)

"Não me prestarei, em circunstância alguma, em fazer um papel de colaboracionista com qualquer tipo de atentado à minha dignidade de médico", afirma Mário Jorge Neves, que apresenta profundas discordâncias com a nova lei-quadro das ordens profissionais e o novo estatuto da Ordem dos Médicos

O médico Mário Jorge Neves apresentou esta terça-feira a demissão de membro da Comissão para a Reforma da Saúde Pública, de que era coordenador desde 2020. "A minha dignidade profissional como médico não me permite continuar a desempenhar essas funções porque isso significaria muito simplesmente colocar-me como cúmplice ativo desta ofensiva liquidacionista do Governo contra os médicos e o SNS", escreve o médico na carta endereçada à secretária de Estado da Promoção da Saúde, e à qual a CNN teve acesso.

Nessa carta, bastante incisiva, Mário Jorge Neves expõe os motivos que o levaram a tomar esta decisão e que se prendem com o profundo desacordo com a nova lei-quadro das ordens profissionais e o novo estatuto da Ordem dos Médicos. "Estas medidas governamentais constituem uma violenta e escandalosa tentativa de liquidação de elementares competências legais da Ordem dos Médicos e de ingerência política e governativa na autonomia e independência técnico-científica da profissão médica", acusa o médico, especialista de saúde pública e de medicina do trabalho.

Na opinião de Mário Jorge Neves, na nova legislação, "as disposições da livre concorrência sobrepõem-se a tudo, esmagando as garantias da qualidade do exercício da profissão médica e os níveis de segurança dos atos próprios dos médicos". "Em nome dessa livre concorrência até chega ao ponto de possibilitar o exercício da profissão médica sem necessidade de inscrição na Ordem dos Médicos", afirma. "Estas medidas passam a ficar registadas como o exemplo dramático da capitulação político-ideológica do Partido Socialista ao neoliberalismo mais extremista de inspiração thatcheriana."

Entre as questões levantadas pelo novo estatuto, o médico sublinha, por exemplo, a criação de “estágios” e de os médicos no início da sua atividade profissional deixarem de ser considerados médicos internos e passarem a ser “estagiários”. O contrato de trabalho passa a ser um “contrato de estágio” e o salário mensal passa a ser “ bolsa de estágio mensal”. "São disposições mais que suficientes para podermos concluir muito facilmente que Governo está a escancarar as portas para em seguida poder ser liquidada a Carreira Médica e ser estabelecida uma extrema precariedade laboral a nível dos médicos mais jovens", conclui Mário Jorge Neves.

Já na nova lei-quadro das ordens, "as disposições visam instaurar o clima do comissariado político cavaquista inaugurado em 1988 com as nomeações político-partidárias para os vários níveis de gestão dos serviços públicos de saúde e que tem sido um decisivo factor de erosão e debilitamento do SNS", critica. "Existir um chamado provedor de serviços não médico, estabelecer a criação de um órgão de supervisão para regular o exercício da profissão médica, presidido por um cidadão não médico e constituído maioritariamente por não médicos, que vai ao extremo de intervir na definição de regras dos estágios profissionais e até das próprias especialidades e, ainda, estabelecer órgãos disciplinares integrados por não médicos, constituem um somatório monstruoso destas medidas governamentais."

Mário Jorge Neves foi dirigente da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa, de 1978 a 1981 e membro do secretariado da Reunião Inter Associações de Estudantes da Academia de Lisboa (R.I.A), de 1979 a 1981. Foi presidente do Sindicato dos Médicos da Zona Sul e vice-presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM) em três mandatos alternados. Em 2021 foi-lhe atribuída a medalha de mérito da Ordem dos Médicos.

Além de coordenador da Comissão para a Reforma da Saúde Pública, é também coordenador para a elaboração do Novo Relatório sobre as Carreiras Médicas da Ordem dos Médicos, membro do Conselho Consultivo para o SNS e das carreiras médicas da Ordem dos Médicos e membro fundador do Observatório de Saúde António Arnaut.

"A minha intervenção política e cívica processou-se sempre sem 'amarras' e tendo como pedras angulares a defesa e dinamização do SNS como pilar humanista e solidário de uma sociedade democrática, bem como na defesa da Carreira Médica como mecanismo inquestionável de garantia da qualidade do exercício da profissão médica. Ao tomar conhecimento da nova lei-quadro das ordens profissionais e do novo estatuto da Ordem dos Médicos, entendi que, sendo eu um cidadão livre e com bons costumes de coerência e de ética políticas, era incontornável uma tomada de posição da minha parte", escreve Mário Jorge Neves para justificar a sua demissão. "A gravidade brutal destas medidas impõe à minha consciência cívica um imperativo de intervenção enérgica na luta que, inevitavelmente, se avizinha."

"Não me prestarei, em circunstância alguma, em fazer um papel de colaboracionista com qualquer tipo de atentado à minha dignidade de médico", conclui.

Contactado pela CNN Portugal, Mário Jorge Neves escusou-se a fazer mais comentários: "Penso que os meus motivos estão bem explicitados na carta que apresentei à senhora secretária de Estado", disse, sublinhando: "A minha preocupação foi fundamentar bem as críticas às medidas que se irão refletir não só nos médicos mas terão reflexos e repercussões diretas em toda a a saúde". O médico garantiu ainda que, tendo em conta a enormíssima gravidade da situação", a sua decisão é "irreversível".

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