"Temos ouvido bastantes comentários desagradáveis e não estávamos à espera": comunidade LGBTQI+ está na JMJ a lutar por "uma Igreja para todos"

3 ago 2023, 14:26
Movimento "Uma Igreja para todos"

Um grupo de leigos criou o Centro Arco-Íris, espaço seguro para a comunidade que está na JMJ e local de partilhas e debates. Jovens de todo o mundo juntam-se em Lisboa para reclamar o seu espaço da Igreja. Nem todos os participantes da JMJ concordam, mas os ativistas têm esperança: "Temos muita esperança que o Papa Francisco nos ouça e interceda a nosso favor. É importante que ele saiba o que a juventude pensa"

Clemens e Julia caminham nas ruas de Lisboa com a sua enorme bandeira ao alto, com as palavras "Church for everyone", ou seja, "Igreja para todos". Pertencem a um grupo de jovens da diocese de Dresden-Meissen, na Alemanha, e foi aí que lançaram uma petição a pedir o sacerdócio das mulheres e que a homossexualidade deixe de ser considerada um pecado. A petição tem já três mil assinaturas. "Queríamos entregar a petição ao Papa Francisco, mas não nos deixaram, então, queremos que ele veja a nossa bandeira, que repare em nós, foi por isso que viemos à Jornada Mundial da Juventude (JMJ)", explica Clemens.

"Temos falado muito sobre estes tópicos, por causa do movimento sinodal, e sentimos que as coisas estão a melhorar. Há cada vez mais pessoas a apoiar-nos. Mas, mesmo assim, ainda é muito duro, porque dentro da Igreja ainda há muitas pessoas que dizem que a homossexualidade é um pecado e que é uma doença de que temos de ser curados", diz o jovem ativista.

"Na Alemanha, vemos que as pessoas mais novas são mais abertas, mas no resto do mundo não sabemos como é. Aqui, na Jornada Mundial da Juventude, temos ouvido bastantes comentários desagradáveis, e não estávamos à espera. Dizem-nos que é o lugar errado para falar deste tema ou que a nossa bandeira é muito grande." Não terá sido único. Nas redes sociais, já surgiram outros relatos de peregrinos da comunidade LGBTQI+ que foram insultados por outros jovens católicos.

"Mas também há pessoas que nos agradecem por estarmos a fazer isto. E temos tido boas discussões. Por isso, o balanço é positivo", conclui Clemens.

Foi também para isso - por um lado, para haver um "lugar seguro" para a comunidade LGBTQI+ na JMJ, e, por outro, para estimular as discussões sobre este tema - que um grupo de leigos decidiu criar o Centro Arco-Íris, instalado até domingo na Casa da Cidadania do Lumiar. 

"Isto começou logo em 2019. Quando soubemos que a JMJ seria em Lisboa dissemos: temos de fazer alguma coisa", conta Ana Carvalho. Depois meteu-se uma pandemia pelo meio e o grupo inicial acabou por desfazer-se, mas quando se aproximou a data do encontro de jovens em Portugal as vontades voltaram a juntar-se: "É uma comunidade que está à margem da Igreja mas que existe, não pode ser ignorada. E esta era uma excelente oportunidade para os jovens desta comunidade, vindos de vários países, se cruzarem e se escutarem, inteiros. Isso é muito importante: os jovens precisam dessa verdade", diz.

Num momento em que a sociedade está cada vez mais disponível para debater estes temas e em que as pessoas da comunidade LGBTQI+ em todo o mundo estão a lutar pelos seus direitos, a Igreja não pode continuar a fechar os olhos, dizem os jovens que, todos os dias, têm passado por este espaço. Aqui, têm acontecido conferências e conversas, partilham-se os contactos de grupos de vários países e há também um "Mural dos Afetos", com um excerto do poema de Eugénio de Andrade ("É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas") e espaço para cada pessoa escrever o que sente. Também haverá uma Eucaristia, na Igreja da Ameixoeira: "Para nós, católicos, era essencial."

As bandeiras de todas as cores dão as boas-vindas a quem chega. E são muitos os que aparecem. Como aconteceu ao final da tarde desta quarta-feira, quando a pequena sala do Centro Arco-Íris se encheu para ouvir, em videoconferência, Cristina Inoges-Sanz, teóloga espanhola que integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos, e Teresa Toldy, portuguesa, doutorada em teologia e membro do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Para ambas, a mensagem da Bíblia é clara: é de inclusão, não de exclusão. "Jesus sempre defendeu os mais fracos, os que estavam à margem da sociedade, as mulheres, os pobres, os doentes, os sem esperança. Esses foram os escolhidos por Jesus e foi a lutar por eles que ele morreu, morreu a desafiar os mecanismos de poder", sublinha Teresa Toldy.

Cristina Inoges-Sanz cita aquela que considera a passagem mais inclusiva da Bíblia: "Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós" (Evangelho segundo São João, capítulo I, versículo 14): "O que a Bíblia aqui diz é que o verbo é carne, essa carne é absolutamente humana. Estamos aqui todos incluídos, qualquer carne, sem discriminação. Jesus na cruz salva toda a condição humana, todo o género humano, não salva só alguns."

Por isso, não existe qualquer contradição em pertencer à comunidade LGBTQI+ e ser católico. A única contradição que existe é na própria Igreja. "Temos muita esperança que o Papa Francisco nos ouça e interceda a nosso favor. É importante que ele saiba o que a juventude pensa", defende o jovem ativista alemão, Clemens.

Em Lisboa, Francisco tem dado alguns sinais aos jovens. Na quarta-feira, perante a comunidade eclesiástica reunida no CCB, apelou a "que a Igreja não seja uma alfândega para selecionar quem entra ou não". "Todos. Cada um com a sua vida, com os seus pecados, como está diante de Deus, como está diante da vida. Todos, todos. Não coloquemos alfândegas na Igreja. Todos", sublinhou.

Cristina Inoges-Sanz insiste que é preciso continuar a trabalhar, mas não está assim tão otimista. "Há uma vontade de mudar. Há algumas mudanças, ainda não são as que queríamos, mas, pelo menos, temos a certeza que a realidade da comunidade LGBTQI+ está presente e é reconhecida no Sínodo de 2024", afirma a teóloga espanhola. "Francisco tem manifestado o seu apoio à comunidade e estendeu a mão. Mas não há muitas pessoas na Igreja que lhe tenham estendido a mão de volta", lamenta Cristina Inoges-Sanz, sublinhando que em Espanha, até agora, são as paróquias dirigidas por congregações religiosas, mais do que as diocesanas, que têm sabido acolher esta comunidade. "Ainda temos um longo caminho pela frente", observa, explicando que muito do trabalho a fazer passa pela formação nos seminários, pelos novos sacerdotes que são o futuro da Igreja.

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