"Qualquer coisa de importante vai ocorrer". O mundo está de olhos postos em Kharkiv mas há "uma surpresa" que pode acontecer no Donbass

9 jun, 08:00
Ruínas de uma estátua de homenagem aos soldados soviéticos em Avdiivka (Kostya Liberov / Libkos via Getty Images)

Com recursos cada vez mais dispersos por uma linha da frente com mais de mil quilómetros, Kiev luta contra o tempo para travar os avanços russos

Todos os olhos estão postos em Kharkiv. As forças russas esbarraram numa forte resistência ucraniana na região, um mês depois de terem aberto a nova frente. A cada hora a situação altera-se e a Ucrânia está agora na ofensiva e a recuperar algum do território perdido. Mas longe da atenção mediática, no Donbass, uma região que engloba Lugansk e Donetsk e tem sido devastada por mais de dez anos de guerra, a Rússia está a fazer progressos que arriscam as linhas defensivas ucranianas em quatro direções.

“A ofensiva russa em Kharkiv obrigou a Ucrânia a retirar algumas brigadas e reservas estratégicas e a deslocá-las para norte. Isto deixou a linha da frente no Donbass desfalcada e tornou a situação no terreno francamente favorável aos russos. Têm tido ganhos territoriais praticamente ao longo de toda a frente. A Ucrânia desfalcou a frente”, afirma à CNN Portugal o major-general Agostinho Costa.

A situação é mais grave nos arredores dos dois antigos bastiões defensivos ucranianos que caíram em mãos russa, Bakhmut e Avdiivka. Nessas duas direções, as forças russas conseguiram conquistar quase duas dezenas de pequenas localidades e aproximam-se cada vez mais de um dos novos bastiões da defesa do Donbass, a pequena cidade de Chasiv Yar.

As forças russas estão a conquistar os territórios a norte e a sul da localização, de forma a conseguir com que a sua artilharia esteja à distância suficiente para atacar as linhas de acesso que abastecem a cidade. Para completar este “cerco operacional”, a Rússia não tem poupado os recursos e tem colocado uma enorme pressão sob os soldados ucranianos que defendem Ivanivkse , uma vila a sudeste de Chasiv Yar, que é atravessa por uma autoestrada que a liga a Bakhmut.

De acordo com a imprensa ucraniana, a queda de Ivanivkse está iminente. Desde fevereiro, quando as primeiras unidades russas de infantaria conseguiram entrar na cidade, que decorre um intenso combate, onde cada casa e cada cave são uma fortaleza contra os soldados russos. Apesar da intensificação do conflito, o exército ucraniano garante que a Rússia não está a ter “qualquer sucesso” nesta região da frente.

“Adivinham-se combates muito violentos e muito sangrentos, à semelhança daquilo que se passou em Avdiivka e Bakhmut. Os russos já tentaram alguns ataques frontais e foram completamente dizimados, agora vão tentar um ataque em tenaz. No entanto, a Ucrânia vai defender com tudo porque sabe bem a importância de Chasiv Yar, a queda desta cidade pode abrir as portas para a conquista russa da região do Donbass”, explica o major-general Isidro de Morais Pereira.

Mas os combates aparentam estar a intensificar-se um pouco por toda a frente de batalha, no sul do país. No dia 3 junho, o comando das forças armadas ucranianas admitiu que Moscovo estava a intensificar as suas operações na frente de Orikhiv, onde decorreu o principal esforço da contraofensiva ucraniana do verão de 2023. Um dia depois, as forças armadas ucranianas reportavam um aumento significativo de atividade inimiga na frente em Kupiansk, mas particularmente na frente de Pokrovsk.

O próprio comandante chefe das forças armadas ucranianas, Oleksandr Syrskyi, admitiu que as forças russas estão a intensificar “os seus principais esforços” nestas direções. Segundo o general, o objetivo russo é “esticar a linha da frente ativa” para impedir que o exército ucraniano seja capaz de transferir unidades de uma aérea para outra. “Em geral, a situação continua difícil”, garante o líder ucraniano, que acrescenta que o inimigo está a “tentar romper as defesas” em múltiplas direções.

O general ucraniano acredita que é possível “mudar a situação” a favor da Ucrânia, mas, para isso, é necessário “dotar esta zona de munições suficientes” e de unidades de reserva, capazes de reforçar significativamente as defesas ucranianas. “A nossa tarefa é parar o inimigo e forçá-lo a passar à defensiva”, defendeu.

A ausência de reservas é um dos principais problemas enfrentados pela Ucrânia, que demorou perto de dois anos a aprovar uma nova lei de mobilização que permitisse recrutar os soldados necessários para fazer a rotação das unidades existentes. Há várias unidades que estão meses na frente de batalha sem qualquer rotação, devido a esta situação. O presidente Volodymyr Zelensky afirmou que o número de soldados recrutados está a aumentar, no entanto, estes recrutas ainda têm de ser treinados.

Este pode ser um problema para Kiev. De acordo com alguns dos comandantes ucranianos na frente de batalha, a instrução militar é um dos principais problemas enfrentados pelos militares ucranianos no terreno. A necessidade de elevados números de soldados para colmatar as baixas, leva a que o comando militar precipite o envio de recrutas para as unidades, antes mesmo de terem concluído o treino na totalidade.

“Nós tivemos um grupo de homens que não sabia sequer desmontar e montar a sua arma”, conta o comandante de um batalhão da 93.ª Brigada Mecanizada, em declarações ao Washington Post, acrescentando que as unidades acabam por ter de treinar os militares no terreno. “Acabamos por perder muito tempo em treino básico. Se, Deus nos livre, houver um avanço perto de Chasiv Yar, e recebermos nova infantaria que não saiba coisas básicas, eles serão enviados para lá apenas para morrer”, insiste.

Muitos dos oficiais ucranianos apontam a falta de soldados ucranianos como a principal causa das recentes conquistas territoriais russas. A situação tornou-se ainda mais crítica com a ofensiva russa em Kharkiv, que obrigou o comando ucraniano a destacar várias unidades e reservas para esta nova frente. Muitas destas unidades estavam na linha da frente no Donbass e a sua movimentação tornou a região mais desprotegida.

“Parece que a Ucrânia conseguiu estabilizar a frente em Kharkiv, mas existem preocupações de que deixaram as frentes de Chasiv Yar e Pokrovsk mais vulneráveis”, afirma Rob Lee, investigador do Foreign Policy Research Institute.

Ao mesmo tempo, paira no ar a ameaça de uma nova ofensiva russa de grande escala. O alerta vem da parte do próprio ministro ucraniano da Defesa, Rustem Umerov, que avisou que a Rússia está a preparar-se para lançar uma nova ofensiva, numa escala quase sem precedentes. De acordo com o governante, a Rússia prepara mais de 300 mil soldados com o objetivo de “abrir uma nova frente de batalha” no norte do país. Nas redes sociais, vários vídeos têm mostrado a transferência de dezenas de carros de combate através de caminhos de ferro.

Essa nova frente pode ter como objetivo a conquista de Kiev, Sumy ou Chernihiv. Uma ofensiva de tal dimensão levaria a uma dispersão ainda maior de recursos e colocaria a Ucrânia numa posição em que seria obrigada a fazer escolhas muito difíceis. A menos que a Ucrânia seja capaz de mobilizar com velocidade um número significativo de militares e de os treinar rapidamente, a Rússia poderá continuar a avançar no terreno.

"Perspetiva-se uma ofensiva russa este verão. A Ucrânia sabe que a Rússia tem 300 mil homens para entrar em combate e que podem atacar pelo Norte, como fizeram no início da guerra. Qualquer coisa de importante vai ocorrer e os ucranianos devem esperar uma surpresa. Acredito que este conflito pode estar a ser decidido em Kharkiv. Se os russos derrotarem os ucranianos nesta batalha, pode estar a ser decidido. Se a Ucrânia perder esta batalha, pode representar o colapso das forças ucranianas”, considera Agostinho Costa.

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