"Vivo a humilhação de passar por check points, de ser revistada e de ter todos os dias pessoas a apontarem-me armas apenas para eu ir para a faculdade": Nofouz acredita numa solução pacífica mas foi-lhe "crescendo uma raiva"

17 out 2023, 19:53
An Israeli soldier aims with his gun as a Palestinian woman and her son cross the West Bank Hawara checkpoint,

Vive em Hebron, na Cisjordânia, e estuda medicina em Jerusalém. Decidiu prestar um depoimento à CNN Portugal para explicar complexidades que quem está distante não pode entender na plenitude. "Desculpe se me emocionei, estou a falar de mais, mas é que tenho estado calada, é a primeira vez que estou a falar disto assim"

(nota: a imagem de abertura deste artigo é de arquivo: trata-se de um soldado israelita a apontar a arma a uma mulher e respetivo filho no checkpoint de Hawara, na Cisjordânia)

 

Naquele sábado de manhã, 7 de outubro, Nofouz Ahmed (o apelido é fictício a pedido da própria, por questões de segurança) estava no seu quarto a estudar, em Hebron, na Cisjordânia. "Decidi fazer uma pausa, vim cá fora e encontrei o meu irmão aos gritos: 'Eles invadiram Israel! Eles saíram de Gaza e estão a matar israelitas!'" A televisão tinha muito pouca informação mas nos grupos de Whatsapp com os amigos rapidamente começaram a ser partilhadas imagens e vídeos do que os membros do Hamas estavam a fazer. Nofouz faz uma pausa no seu relato. "Deixe-me ser completamente honesta", diz, "eu sempre fui uma defensora da paz e da não violência. Sou palestiniana e ativista e sempre defendi uma solução pacífica. Mas, nos últimos anos, com tudo o que Israel tem feito, não vou dizer que me fizeram desistir de uma solução pacífica, mas foi crescendo uma raiva e agora confesso que quero vingança, têm morrido muitos palestinianos e eu quero vingar-me. Por isso, para dizer a verdade, naquele momento eu não tive pena dos israelitas que morreram. Eu pensei que era merecido. Mas no minuto a seguir veio o medo. Porque nós sabíamos que Israel iria reagir e atacar a Faixa de Gaza."

Nofouz tem 23 anos e cresceu em Hebron. Desde pequena que sonha ser médica. Neste momento está no sexto ano de Medicina na Universidade de Jerusalém e, além de estudar, passa grande parte do seu tempo livre a trabalhar como voluntária num hospital em Hebron. Pouco antes da hora combinada para a chamada telefónica com a CNN Portugal, Nofouz manda uma mensagem: "Tive uma emergência, pode ser mais tarde?" Teve de ir fazer um cateterismo, explica depois. Fala pausadamente num inglês perfeito. O seu pai é um apoiante incondicional do Fatah, o partido que governa a Cisjordânia e que, ao contrário do Hamas na Faixa de Gaza, tem defendido as negociações com os israelitas e a existência de dois Estados a conviver pacificamente. "O problema é que, ao longo destes 75 anos, demasiadas vezes concluímos que as negociações não nos levaram a lado nenhum e que o Hamas é que tinha razão", diz Nofouz.

Tal como muitos habitantes na Cisjordânia, Nofouz vive entre dois mundos, uma vez que vai todos os dias a Jerusalém: "Tenho de ter uma permissão especial. Vivo a humilhação de passar por check points, de ser revistada e de ter todos os dias pessoas a apontarem-me armas apenas para eu ir para a faculdade e aprender a salvar vidas", diz revoltada. "Apesar de na Cisjordânia termos um governo, na verdade não temos liberdade, vivemos numa prisão. Israel controla o nosso acesso à água e à eletricidade e controla as fronteiras, ou seja, em última análise controla também o nosso acesso à comida. Desde que a extrema-direita chegou ao poder ficou pior, mas sempre foi mau. Os judeus acham que merecem a vida mais do que nós. Comparar-nos a animais não foi só uma coisa que o primeiro-ministro disse agora, é assim que nos tratam há anos. Só em 2023, mais de 200 palestinianos foram mortos na Cisjordânia."

Depois do ataque do Hamas a Israel, todos os palestinianos ficaram em alerta. "Pressentimos logo que a resposta ia ser muito dura, não tão dura quanto está a ser, mas começámos logo a falar com as pessoas em Gaza e eles sabiam que a guerra iria começar", conta Nofouz. A voz volta a ficar muito séria: "Sou completamente contra dizer que o Hamas é um grupo terrorista. Para condenar o que eles fizeram temos também que condenar tudo o que Israel fez nos últimos anos. Pelo menos. Porque na verdade isto acontece há muito mais tempo. O que fariam vocês se tivessem que sair da vossa casa, do vosso território, se pessoas ocupassem os sítios onde antes vocês viviam e vos obrigassem a ir para uma prisão? Foi isso que os israelitas fizeram. Eles dizem que são civis, mas são colonos, é o que eles são. Quem não quereria vingar-se?"

A chamada cai. Mais do que uma vez. Nos céus passam muitos aviões - "Está a ouvir? E também vemos os rockets daqui." Para os palestinianos, a vida tornou-se muito mais complicada nestes dias, conta. "As estradas são superperigosas. Os militares deram armas às colonos. São "civis" mas estão armados e atacam os palestinianos, sem qualquer motivo. Nós não temos quaisquer armas." Outra coisa que mudou: "Quando os militares entram nas nossas cidades, os jovens costumam aparecer com pedras e atirar-lhes. Numa situação normal, os militares usavam gás lacrimogéneo. Agora têm usado balas verdadeiras. Têm aparecido muitos miúdos no hospital com feridas de balas."

Nofouz volta a fazer uma pausa. "Desculpe se me emocionei, estou a falar de mais, mas é que tenho estado calada, é a primeira vez que estou a falar disto assim." Na última semana, Nofouz tem estado deprimida com tudo o que está a acontecer. "Tenho estado sem palavras. Não falo, não como, não funciono como habitualmente. A minha mãe está muito preocupada, até me disse que eu devia ir a um psicólogo. 'Tu não vives em Gaza', disse-me ela. Como se não tivesse que me preocupar. É verdade que não vivo em Gaza mas falo com muitas pessoas que estão lá e não compreendo, não compreendo porque é que as pessoas acham que não merecemos viver só porque somos palestinianos."

Está descrente. "Não vejo uma solução pacífica", volta a dizer. "Não vejo um caminho que limpe todo o ódio que cresceu em nós. Talvez numa próxima geração. Quando uma pessoa vê os amigos estilhaçados, claro que pensa em vingança. Quando uma criança perde toda a família, a mãe, o pai, os irmãos, todos mortos em bombardeamentos, é normal que se queira vingar. Essas crianças serão chamadas terroristas, não serão vistas como pessoas que cresceram em sofrimento. Mas, se virmos bem, elas não têm culpa, não é?" 

Nofouz não tem medo de que a guerra chegue à Cisjordânia. "Nós já estamos em guerra", diz, resignada. "Neste momento, tenho medo de que todas as pessoas que morreram tenham morrido por nada, que todas as crianças que passam por noites de bombardeamentos estejam a sofrer por coisa nenhuma. As pessoas de Gaza estão a lutar por todos nós. Eles não têm opção a não ser lutar. Eles estão a lutar pelo nosso futuro e eu temo que a situação fique na mesma, que, depois da guerra, nada mude."

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