Cada bomba consegue retirar água do Mar Mediterrâneo e mover milhares de metros cúbicos de água por hora para dentro dos túneis
As informações oficiais são escassas, como em quase tudo na guerra, mas ao final de semanas de especulação, parece ser oficial: Israel começou a pôr em prática o plano de inundar os túneis usados pelo Hamas na Faixa de Gaza. A meio da semana, depois de vários rumores sem respaldo dos hebraicos ou do seu maior aliado, os EUA, o Wall Street Journal (WSJ) foi o primeiro a noticiar que o plano já estaria em marcha – informações que o Times of Israel, um dos principais jornais do país, confirmou esta sexta-feira.
“As Forças de Defesa de Israel concluíram a instalação de grandes bombas de água do mar, cerca de uma milha [1,6 quilómetros] a norte do campo de refugiados de Al-Shati, em meados do mês passado”, tinha indicado o mesmo jornal semanas antes, referindo que “cada uma das cinco bombas consegue retirar água do Mar Mediterrâneo e mover milhares de metros cúbicos de água por hora para dentro dos túneis, inundando-os no espaço de semanas”. Esta madrugada, o Times of Israel adiantou que os primeiros testes foram “um sucesso” e que as forças hebraicas estão preparadas para avançar com o que classificam de “novos métodos de combate” para destruir o Hamas.
Confrontado com a reportagem do WSJ, o presidente norte-americano limitou-se a responder que os EUA não sabem se nesses túneis há reféns do Hamas – serão, neste momento, 139 pessoas de um total de mais de 200 de várias nacionalidades, incluindo idosos, mulheres, crianças e bebés, que foram levados pelo grupo islamita após o ataque de 7 de outubro. Nesse dia, mais de 1.200 pessoas foram mortas em território israelita. Também nesse dia, Israel lançou uma ofensiva armada por ar e terra, ainda sem fim à vista, que em dois meses e uma semana já provocou mais de 18 mil mortos no enclave palestiniano, na sua maioria mulheres e crianças.
De acordo com alguns media israelitas, familiares dos reféns disseram ao primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, que temem a morte dos seus parentes se os túneis forem inundados. A alimentar os receios estão as imagens de alguns deles mantidos na rede de passagens subterrâneas que o Hamas usa para movimentar homens e armas no território, bem como relatos de reféns libertados em novembro, em troca de palestinianos presos em Israel, durante uma trégua de cinco dias.
O Exército israelita diz ter informações fidedignas sobre onde os reféns estão a ser mantidos e garante que não vai pô-los em risco. Mas a inundação dos túneis acarreta outros riscos, de curto e longo prazo, para quem vive na Faixa de Gaza, o território do mundo com maior densidade populacional, onde a água potável já era um bem escasso antes desta guerra.
Face às notícias, o gabinete da ONU para os Direitos Humanos veio alertar que “a inundação dos túneis com água salgada por Israel pode ter impactos adversos profundos nos direitos humanos, alguns deles a longo prazo”, quer na água para consumo, quer noutros “bens indispensáveis à sobrevivência de civis”, a juntar aos “danos ambientais severos, generalizados e de longo prazo” no território.
Riscos e dúvidas
Entre os riscos citados pelo Wall Street Journal e por várias organizações não-governamentais (ONG) contam-se os potenciais danos aos aquíferos e ao solo da Faixa de Gaza, se a água salgada e substâncias perigosas presentes nos túneis se infiltrarem neles, para além de potenciais danos nas fundações dos edifícios que se mantêm de pé. Esse é um risco real se Israel conseguir inundar os 1.300 túneis continuamente, algo que segundo Abdel-Rahman al-Tamimi, diretor da organização Grupo de Hidrólogos Palestinianos, levaria 40 dias.
“A salinização é um fenómeno conhecido, sabemos que se tirarmos demasiada água dos aquíferos que estão perto do mar, parte da água doce vai ser substituída por água do mar”, explica o engenheiro Joaquim Poças Martins à CNN Portugal. “Há quem diga que se [os túneis do Hamas] forem inundados com água do mar, a água sai e fica a areia. [Mas] o que estará aqui em causa é a quantidade de água que eventualmente se ponha lá, face à quantidade de água que ali existe.”
Com a ressalva de que existe pouca informação disponível sobre a extensão e a natureza da rede de túneis ou sobre a operação de inundação que Israel tem em marcha, o professor da Faculdade de Engenharia do Porto faz a distinção entre usar a água do Mediterrâneo para inundar as passagens subterrâneas uma vez ou continuamente.
“Acho que são 400 quilómetros de túneis, se for encher aquilo uma vez não é muita água. O problema é que não é só uma vez, porque ao final de um tempo a água sai, então tem de se pôr mais e mais e mais. Uma vez não teria grande impacto, mas encher continuamente sim.”
Desde o início da ofensiva terrestre em Gaza, as autoridades israelitas dizem que já foram descobertos mais de 800 poços de entrada na rede subterrânea e que cerca de 500 túneis já foram destruídos. O Hamas garante, por seu lado, que os túneis foram desenhados para aguentar todo o tipo de manobras de guerra, com o porta-voz da milícia a assegurar na quinta-feira que foram “construídos por engenheiros com grau superior e bem treinados, que consideraram todo o tipo de possíveis ataques da ocupação, incluindo o bombeamento de água”. Falando a partir de Beirute, capital do Líbano, Osama Hamdan acrescentou: “Os túneis são uma parte integral da resistência e todas as consequências e ataques antecipados foram tidos em conta.”
Poças Martins lembra, como outros especialistas e media, que a inundação dos túneis do Hamas não é inédita. Em 2015, o Egito – que, a par de Israel, mantém a Faixa de Gaza sob bloqueio económico há 16 anos, desde que o Hamas assumiu o controlo do território – alagou alguns dos túneis com água do esgoto, numa operação de combate ao contrabando de armas. Desta vez, as águas residuais dão lugar a água salgada, com os impactos que isso acarreta.
“Se a diluição [de sal nos aquíferos] for excessiva, o que vai acontecer é que essa água não vai poder ser usada para agricultura durante muitas décadas, e para consumo humano menos ainda”, sublinha o especialista em gestão de água. “Podemos beber um bocadinho de água salobra [mais salinizada do que a água doce, mas menos do que a água do mar] durante algum tempo, mas não durante muito tempo. E na zona de Gaza, muita dessa água subterrânea já está inutilizável, porque foi sobreexplorada. A situação atual já é muito má. Se fosse uma pequena inundação uma vez, não alterava significativamente o que está; se for muito, altera uma situação que já está má.”
Arma de guerra
Os conceitos envolvidos no processo de salinização são conhecidos, mas este depende sempre da envolvente. Poças Martins dá como exemplo zonas costeiras de Portugal, como a Póvoa de Varzim ou o Algarve. “Em Portugal nós sabemos que há limitações, eu no Algarve não posso estar a tirar muita água do aquífero de Bensafrim, porque se o fizer a água do mar vai ocupar o lugar da água doce. No caso da Faixa de Gaza, aquela zona é muito plana e não há grandes chuvas, pelo que a quantidade de água doce é muito pequena. E já tem água muito salinizada e imensa dificuldade em obter água. [Antes da guerra] abasteciam-se com dois ou três canos que vinham de Israel e que eles fecharam...”
O engenheiro português nunca esteve em Gaza, mas esteve em Israel, a norte do enclave, antes da pandemia, quando decidiu “dar uma volta pelo mundo” para ver com quem Portugal pode aprender mais a otimizar a gestão da água. “Fui ver quem vive melhor do que nós tendo menos água – Namíbia, Singapura e Israel", explica, invocando o transvase do Mar da Galileia para o sul, "um projeto muito controverso por causa do rio Jordão, onde Jesus foi batizado, e [com Israel] sempre em guerra com os países vizinhos, também muito por causa da água”.
Graças a esse projeto, e apesar de ser um dos países mais secos do mundo, cerca de 90% da água consumida hoje pelos israelitas é retirada do mar, indica o engenheiro. Contudo, "o que se pensa é que parte da infiltração afeta o norte da Faixa de Gaza, parte da sobrecarga dos aquíferos [de Gaza] poderá estar relacionada com o que é feito do lado de Israel". Sobre isto ressalva: "Estamos a falar de informação escassa e muito protegida."
Um outro projeto desenvolvido por Israel nas últimas décadas é o centro de tratamento de águas residuais de Shafdan, a norte da Faixa de Gaza, onde as águas do setor industrial e dos colonatos são sujeitas a tratamento rigoroso, como comprovou no local. "Em Singapura, por exemplo, já se bebe água que foi de esgoto e em Israel essa água é usada na agricultura e é uma das melhores que têm, melhor do que a filtrada. Israel é o país do mundo que reutiliza mais água."
A chancela vem com um preço elevado para os palestinianos, que não têm o mesmo acesso à água, alertam a ONU e diferentes organizações há vários anos. A israelita B’Tselem diz que 96,2% da água que sai das torneiras das casas palestinianas em Gaza não é potável. O WASH, coligação liderada pela ONU dedicada a questões de água, saneamento e higiene, refere que, neste momento, cada pessoa em Gaza tem apenas três litros de água disponíveis por dia – contra os entre 7,5 e 20 litros recomendados pela Organização Mundial da Saúde em contexto de emergência, para garantir as necessidades básicas de cada pessoa.
Com a guerra, a água tornou-se ainda mais um bem de luxo em Gaza. Sob bombardeamentos intensos e sem fornecimento de bens ao enclave, os armazéns esvaziaram-se de água engarrafada e o custo das garrafas disponíveis disparou. E sem combustível para manter os poucos serviços e infraestruturas a funcionar, o relator especial da ONU para os direitos humanos no acesso a água potável e saneamento voltou a apelar a Israel que deixe de usar a água como “arma de guerra”.
“A cada hora que Israel impede o fornecimento de água potável segura à Faixa de Gaza, em violação do direito internacional, os habitantes de Gaza ficam mais e mais em risco de morrer à sede ou por doenças relacionadas com a falta de água potável”, avisou Pedro Arrojo-Agudo. “Quero recordar a Israel que impedir conscientemente a entrada de água potável na Faixa de Gaza viola quer o direito humanitário internacional, quer as leis de direitos humanos. O impacto na saúde pública e higiene será inimiginável e pode resultar em ainda mais mortes de civis, para além do já colossal balanço de mortos nos bombardeamentos a Gaza.”
Com a inundação dos túneis a avançar, amontoam-se apelos e avisos, alguns relacionados com potenciais crimes de guerra, outros com os riscos ambientais de salinizar água que há muito não corre o seu curso. Mas para Poças Martins, essa questão é “quase um pormenor face à realidade atual que nos perturba a todos”.
“Toda esta parte técnica não se desprende da componente bárbara da guerra. É perturbador para um técnico do setor falar em impacto ambiental do alagamento dos túneis quando por cima deles está gente a morrer, perturbador falar em questões ambientais quando estamos a lidar com mortos e casas destruídas. Nós do ambiente falamos de barriga cheia."