"Só queremos que se saiba que Portugal não é o paraíso da produção sustentável que toda a gente pinta". Este movimento quer denunciar a "fast fashion" em Portugal

22 abr 2023, 12:00
Fast Fashion (Imagem Getty)

Movimento Fashion Revolution Portugal recolheu cerca de 20 denúncias de trabalhadores do setor têxtil português e vai usá-las para discutir um dos assuntos do momento no mundo da moda. Uma delas dá conta que a roupa é praticamente toda feita noutros países, com mão de obra mais barata, mas depois chega cá com etiquetas "made in Portugal"

Camiões a vir da Turquia, Tunísia e Marrocos com roupa etiquetada "made in Portugal", trabalhadores que se sentem apenas parte de uma linha de montagem da "máquina do lixo" e funcionários obrigados a fazer pelo menos mais duas horas, por dia, sem pagamento extraordinário. Estas são três das denúncias que vão ser apresentadas pelo movimento Fashion Revolution Portugal, entre os dias 22 e 29 de abril, a que a CNN Portugal teve acesso mas não conseguiu confirmar. Os testemunhos anónimos são de trabalhadores de cadeias de fast fashion nacionais e empresas que confecionam peças de roupa para grandes marcas internacionais do setor têxtil.

Para este movimento, a fast fashion é vista como sinónimo de várias coleções de roupa, de preços extraordinariamente baixos, de problema climático e condições laborais questionáveis. Até agora, estas denúncias chegam maioritariamente de países como o Bangladesh, Vietname ou China. Mas e em Portugal? Foi esta a questão que levou à criação da Operação Inside Out, do movimento Fashion Revolution Portugal.

Este é um mercado que resistiu à pandemia, está a resistir a uma guerra e, enquanto a maior parte do mundo está a braços com uma inflação histórica, não para de crescer. Em 2022, o mercado da fast fashion estava avaliado em cerca de 97 mil milhões de euros, hoje já passa os 111 mil milhões e, em 2027, as estimativas dizem que já deverá ter ultrapassado os 164 mil milhões, de acordo com o relatório da Business Research Company. O segredo parece estar mesmo na roupa extremamente barata, por vezes quase descartável, e numa estratégia de publicidade desenhada para impulsionar os instintos consumistas dos consumidores, que culmina nestes recordes de vendas que parecem estar longe de estagnar. São cada vez mais as lojas deste tipo espalhadas por Portugal e as marcas que resistiam ao online também já começam a ceder a esta nova via de negócio, como aconteceu com a Primark e com o seu novo site, que não aguentou a afluência no dia inaugural.

Perante este poderoso inimigo, a Fashion Revolution propôs-se a fazer uma radiografia às cadeias de fast fashion nacionais e às empresas que produzem peças para marcas internacionais com grande e rápida procura. A investigação teve um início "espontâneo" como resposta às "situações ilícitas ou atuações que deveriam ser denunciadas", como explica a fundadora Salomé Areias: "Há cerca de cinco anos que tínhamos informantes anónimos, pessoas que trabalham em empresas de fast fashion portuguesas e deliberadamente pediam para nunca dizermos quem eram", e enquanto isso continuariam a dar informações sobre a situação. O movimento aponta que Portugal é e tem sido visto nos últimos anos como "o paraíso da produção sustentável", mas que a realidade revelada por estes "simpatizantes da luta" está distante do mito: "Existe fast fashion em Portugal".

"Só queremos que se saiba que Portugal não é o paraíso da produção sustentável que toda a gente pinta. Há muita gente que tem a ideia que como pertencemos à União Europeia e que toda a gente recebe o salário mínimo as condições laborais estão asseguradas, mas mesmo o salário mínimo é incomportável, não traz uma vida digna para estas pessoas, que são a esmagadora maioria das operárias fabris", refere a responsável.

O presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP), por sua vez, reforça que, ao longo dos últimos anos, o setor têxtil nacional "fez uma evolução para deixar de trabalhar com esse tipo de produto, sobretudo por causa do custo". Mário Jorge Machado defende que "a confeção de vestuário tende a ser cada vez uma economia circular, de peças mais duradouras, mais sustentáveis" e garante que é nesse sentido que a aposta tem vindo a ser feita.

Sobre os baixos salários praticados, o representante do setor lembra que é necessário haver uma distinção entre "o salário médio das empresas e o custo médio de um trabalhador nas empresas". Mário Jorge Machado refere que "o custo médio para uma empresa mensal anda à volta dos 1.200 euros", alertando: "Mas agora, se me diz assim: mas as pessoas só levam para casa à volta de 800 euros, é verdade, mas o custo para a empresa é 1.200". "É muito por aí que deveríamos falar. Justifica-se que um trabalhador para levar 800 euros para casa e haja um incremento de quase 50% nos custos da empresa? Essa é a grande situação. Alguém para ter um salário para casa líquido na ordem dos dois mil euros, a empresa tem um custo de próximo de 3.500 euros. Faz sentido?", questiona.

Até ao momento, foram feitas cerca 20 denúncias. A maioria dos alertas é corroborada por mais do que um denunciante, através de entrevistas de mais de uma hora cada. Estas pessoas não se conhecem nem trabalham na mesma empresa, mas alertam para as mesmas problemáticas. A maioria destes anónimos realça que em algum momento da sua vida laboral já se sentiu afetado do ponto de vista da saúde mental e questionou se deveria continuar no meio. Salomé refere que estes trabalhadores "investiram a sua vida e a vontade de trabalhar nesta área e acabaram por cair num buraco de uma linha de montagem". Até ao momento, nenhuma das denúncias seguiu para o Ministério Público. A fundadora do Fashion Revolution Portugal garante que não querem "difamar as marcas nem expor pessoas", apenas mostrar a realidade crua por traz deste nicho da moda nacional.

As restantes denúncias serão apresentadas na Fashion Revolution Week, que vai decorrer entre 22 e 29 de abril, onde o movimento pretende gerar o debate público sobre este tipo de práticas. As denúncias incidem sobre dois tipos de casos: fábricas portuguesas de fast fashion e empresas que produzem peças para grandes internacionais. 

“Enviávamos camiões para Turquia, Tunísia e Marrocos para ir buscar roupa ‘made in Portugal’”

A primeira denúncia a que a CNN Portugal teve acesso é sobre a origem da roupa feita em Portugal. Questionada sobre quais as condições para que uma peça possa receber a etiqueta "made in Portugal", Salomé confidencia que esta "é uma área muito cinzenta" e que é "uma traição gigante ao consumidor". 

Contactada pela CNN Portugal, a ASAE remeteu o assunto para a DGAE e para a AICEP (Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal) - que não prestaram qualquer esclarecimento até à publicação deste artigo -, mas ressalvou que importar roupa "made in Portugal", pode não ser ilegal em determinados casos, exemplificando que o design das peças pode ser português. A ambiguidade prende-se com o facto de existir uma falta de discriminação de que processos têm de ser feitos em cada país para aferir a origem de uma determinada peça de roupa.

O presidente da ATP confessa não ser um especialista na legislação de origem, mas, a título de exemplo, explica que uma tela vinda da Ásia e, posteriormente, confecionada em Portugal, pode adquirir a etiqueta "made in Portugal", desde que o seu valor acrescentado seja superior a 51%. Quer isto dizer, como explica Mário Jorge Machado, que "um produto que vale 10 euros para ser transformado para um produto de origem portuguesa tem, depois de transformado, de ser vendido por 21 euros". 

"Para mim, é uma traição gigante ao consumidor, que entra numa loja, vê 'made in Portugal' e se sente seguro", explica Salomé Areias.

A fundadora do movimento assegura que houve pelos menos três pessoas a corroborar a prática e a denunciá-la ao movimento, que não se conhecem nem trabalham na mesma empresa: "À terceira, percebi que realmente se falava disto e perguntei se acontecia? 'Isto é uma cena', foi a resposta que obtive". 

A fundadora da Fashion Revolution acredita que esta prática é uma inevitabilidade para grande parte das empresas de confeção nacionais, que estão numa situação financeira "muito vulnerável". Perante os preços altamente baixos e os prazos de fabrico reduzidos, esta é a única solução para dar resposta aos pedidos das cadeias internacionais. 

"Nós somos a China da Europa", reitera Salomé, que explica que "é o mercado livre a funcionar", mas ao mesmo tempo "um tiro no pé". "Existe esta ideia, este mito,  de que vêm produzir para Portugal porque é um paraíso, onde tudo funciona bem. Tudo funciona bem e barato. Mas isso é incompatível", explica.

"Sinto-me a contribuir para esta máquina do lixo"

A segunda denúncia prende-se com a saúde mental e o que sentem os trabalhadores do setor: "Sinto-me a contribuir para esta máquina do lixo, olhas para a produção apenas com o objetivo de fazer render os minutos e sentes o desperdício. Ficas com a sensação que só estão a gerar lixo". Salomé Areias explica que este é um sentimento comum: "Estes trabalhadores um dia acordam e percebem que estão a criar lixo".

Salomé acredita que este modo de vida é debilitante para a saúde mental destes trabalhadores: "São oito horas por dia ou mais e não fazes mais nada" para além daquela realidade. A fundadora do movimento adjetiva este sentimento como "uma alienação e a perda do propósito da vida".

"Trabalho pelo menos duas horas a mais por dia e nunca me pagaram horas extra"

A terceira não é exclusiva do setor: "Trabalho pelo menos 2 horas a mais por dia do que o que diz o contrato e nunca me pagaram horas extra", conta o denunciante anónimo. "Acho que esta é a coisa mais grave e a mais transversal de todas as indústrias, porque parece que quase ninguém recebe horas extra em Portugal", explica Salomé Areias. "As pessoas são obrigadas a trabalhar, em média, mais duas horas por dia. Ou seja, 10 horas. Entre os testemunhos, nunca nenhum tinha recebido horas extra neste tipo de empresas. Isto é a realidade existente em Portugal", refere.

Este tipo de pressão laboral é descrito pela Fashion Revolution como "preocupante" e uma consequência direta da "pressão da moda, dos ciclos da moda e da obsolescência percebida". Salomé lembra que estes trabalhadores têm agora de dar resposta a "um calendário anual ou de ano e meio em que as peças têm de sair". "O trabalho acaba por perder o sentido, estas pessoas apenas pedem o mínimo: poder fazer um bom trabalho", alerta.

Questionado sobre esta situação, o presidente da ATP é perentório: "Não existem horas extra não pagas, essa é uma situação que não existe, é uma questão que não existe". 

O futuro do têxtil

A ATP sublinha que o futuro da indústria têxtil nacional está dependente do recente arrefecimento da economia nacional, como consequência da guerra na Ucrânia e dos aumentos das taxas de juro e do preço da energia. Contudo, apesar das circunstâncias, no último ano o setor teve um crescimento das exportações na ordem dos 13%, o que representa mais de 6.000 milhões de euros.

Este aumento, lembra Mário Jorge Machado, está assente na produção de produtos mais duráveis, mais sustentáveis e com incorporação de produtos feitos de forma circular.

"Nos próximos anos, tem a perspetiva de se tornar num setor muito dinâmico na economia portuguesa, em termos das exportações. Nós podemos chegar ao final desta década com exportações acima dos 10 mil milhões de euros. Este é um dos cenários que a ATP traçou, tendo em conta a importância que vai ganhar a circularidade da economia e a sustentabilidade e o peso que isso vai ter nos consumidores. Temos aqui uma excelente perspetiva nesta década para sermos um setor ainda mais importante na economia nacional", garante.

A Operação Inside Out e a Fashion Revolution Week

O passo seguinte deste movimento será "questionar  as marcas para fazer um cross-check de informação, como a quantidade de peças produzidas ao ano, quantidade de peças vendidas ao ano, preço de produção versus preço de venda ao público, ou seja, fazendo o levantamento das margens, quantidade de plástico, de fibras de plástico, quantidade de produção feita em Portugal, salário do chief executive versus salário da entrada do operário fabril".

A Fashion Revolution garante que quer acima de tudo "perceber como é que é possível contrariar as estruturas dentro do sistema, ou seja, até onde é que vai a liberdade de cada profissional". Posto isto, contam que este primeiro trabalho fomente uma "investigação efetivamente bem feita na indústria portuguesa". 

A queda da Rana Plaza, em 2013, colocou debaixo dos holofotes mundiais as condições de trabalho dos trabalhadores das fábricas de fast fashion. Há 10 anos, a 24 de abril, uma fábrica de produção de fast fashion colapsou no Bangladesh e o mundo assistiu à retirada de 1.134 corpos dos escombros da Rana Plaza. Foi um alerta global para as condições laborais precárias e levou à criação de movimentos como o Fashion Revolution. E, assim, começou a "guerra": de um lado, os custos baixos e a possibilidade de renovar guarda-roupas quase mensalmente; do outro, o meio ambiente e as condições de trabalho sub-humanas que permitem os preços até então impossíveis e que, por vezes, parecem irreais.

O movimento também está em território nacional desde 2014 e, agora, está a tentar fazer uma radiografia da realidade nas fábricas têxteis do país. O projeto Operação Inside Out tem como propósito expor o “cenário laboral e os processos de produção, mas também o estado emocional dos profissionais” do setor, através de denúncias anónimas, e promete revelar várias denúncias na Fashion Revolution Week, evento anual que vai decorrer entre os dias 22 e 29 de abril, e em que o principal propósito é discutir o futuro e a direção para uma moda mais sustentável. Todos os anos, o evento acontece a 24 de abril, no dia do aniversário do colapso da fábrica Rana Plaza, que completa uma década este ano.

Agenda do Fashion Revolution week.

Catarina João Vieira, responsável pelo contacto com a imprensa da Fashion Revolution, destaca que a Fashion Revolution Week é um evento à "escala mundial" e que terá ações também em Lisboa, Porto e Covilhã. "Esta envolvência coletiva só torna ainda mais possível a nossa missão: lutar por uma indústria mais justa, sustentável e transparente", destaca a responsável.

O destaque desta edição vai para o décimo aniversário do colapso Rana Plaza. Marta Barata, membro da organização da Fashion Revolution, explica que este é o momento de "olhar para o passado e discutir o que mudou", mas também de focar "no futuro e conversar sobre como podemos transformar esta indústria".

"O nosso público é principalmente do sexo feminino, de várias idades, e temos visto nos últimos anos alguns homens a juntar-se à conversa, muitas vezes ligados à indústria da moda. As idades variam muito, dependendo da localização do evento e das atividades. Temos quase sempre pessoas ligadas à indústria da moda, das mais variadas vias profissionais, muitos designers, estudantes de design, costureiras e vendedores", explica.

No seu manifesto, a associação explica que este é um movimento que recorre a workshops, palestras e conversas circulares com o objetivo único de “educar, incentivar e acima de tudo sensibilizar a sociedade para o consumo e produção mais consciente e responsável”.

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