O mundo "viciante" das compras e vendas em segunda mão: um estilo de vida sustentável ou um negócio?

27 nov 2022, 08:00
Compras online (Pexels)

Catarina Barreiro trabalhava numa loja e assume que era viciada em "fast fashion", mas decidiu mudar radicalmente a sua forma de consumir e Marta Cerqueira conta que opta por tudo o que é "vintage" por estar preocupada com o mundo. Mas há também quem veja na venda de produtos usados uma forma de fazer dinheiro

Catarina Barreiros resolveu deixar um estilo de vida "consumista" para trás e vendeu quase todo o conteúdo do seu armário de roupa, Marta Cerqueira enveredou pelo mundo "viciante" da sustentabilidade e Joana Ferreira decidiu desfazer-se dos fatos de dança que a acompanharam durante tantos anos e pelos quais tinha um carinho especial.

Se há uns anos a compra de artigos em segunda mão era uma prática exclusiva da moda 'vintage', hoje já há quem só recorra a esta via para adquirir quase tudo, do vestuário aos móveis da casa. E os motivos são diversos, havendo mesmo quem faça da segunda mão um "autêntico negócio".

Catarina Barreiros costumava ser "bastante consumista" em relação à roupa e assume mesmo que era "viciada em fast fashion". "Trabalhar numa loja de roupa não ajudava", diz, entre risos. Em 2018, porém, tomou uma decisão que surpreendeu o seu círculo mais próximo: "Criei um grupo no WhatsApp onde juntei todas as minhas amigas e convidei-as a aparecerem em minha casa. Disse 'tenho a minha sala de estar instalada como se fosse uma loja, podem levar o que quiserem'." 

E foi assim, por "valores simbólicos", que Catarina vendeu a maior parte das suas roupas. Depois, aplicou a mesma lógica noutras áreas, como o imobiliário da casa. Agora, só compra o que é mesmo necessário e, quando o faz, tenta sempre que seja em segunda mão. "Cá em casa, quando precisamos de alguma coisa, o primeiro passo que fazemos é ver se existem opções em segunda mão. Não só porque não faz sentido comprar uma coisa nova que consumiu recursos a ser produzida, como energia e água, mas também pela vertente económica. Sai muito mais barato comprar tudo em segunda mão."

Fazer compras em segunda mão permite não só fazer escolhas mais económicas, mas também mais ponderadas, desde que saibamos o que realmente queremos e precisamos. É muito fácil cair na tentação do 'envio grátis a partir de x peças ou euros', mas a verdade é que "é muito difícil" encontrar uma pessoa que esteja a vender várias coisas do que procuramos nestas aplicações, diz Catarina Barreiros, que hoje trabalha como criadora de conteúdos digitais onde partilha dicas para uma vida mais sustentável.

Marta Cerqueira partilha as mesmas preocupações ambientas de Catarina Barreiros e foi por essa razão que decidiu optar pelas lojas de segunda mão. Na verdade, já o fazia quando era mais nova para vestuário, porque sempre gostou de "roupa diferente" que só encontrava em lojas de segunda mão. Hoje, recorre a esta via para quase tudo, da roupa do filho à decoração da casa. 

À semelhança de Catarina, sempre que Marta precisa de alguma coisa, procura sempre primeiro por opções em segunda mão, e dá o exemplo mais recente, para o qual nem precisou de recorrer às aplicações com esse propósito. "Este fim de semana estive a remodelar o quarto do meu filho e precisava de duas estantes. Claro que o primeiro impulso é ir a uma loja, mas normalmente o que faço até antes de recorrer à internet é perguntar a amigos e familiares se por acaso alguém tem o que procuro. E uma amiga minha que vive mesmo perto de mim estava a 'destralhar' a casa e tinha umas estantes para dar."

"Geralmente pensamos logos nas aplicações como a Vinted, OLX ou até o Marketplace no Facebook, mas às vezes nem precisamos de sair do nosso grupo mais próximo para encontrar o que procuramos", sugere.

Jornalista de profissão, o interesse de Marta pela sustentabilidade despertou quando escrevia mais e mais sobre este assunto e recorda que batalhou muito para mostrar que há espaço na comunicação social para falar sobre isto. Até que, em 2020, criou o Peggada, um site com dicas e recomendações para uma visa mais sustentável. 

"Estas mudanças sustentáveis são viciantes. Começamos por mudar uma coisinha e vamos alterando outras coisas com o tempo. [É uma lógica que] vai tomando conta da nossa vida, sem esforço", diz. É certo que seria muito mais fácil e rápido comprar o que precisamos numa loja, mas, para Marta, este processo de procura pela segunda mão "até é estimulante e divertido" quando se encontra o que queremos a preços mais baixos, e às vezes até nem se gasta dinheiro.

Apesar de todas as vantagens, Catarina e Marta reconhecem que ainda há algum preconceito em relação às compras em segunda mão. Para as crianças, por exemplo, a compra de roupa em segunda mão "é muito mais normalizada". "A minha filha tem três anos e não tem uma peça de roupa comprada nova, porque não vale a pena.  Quando são pequeninos, às vezes usam as coisas uma ou duas vezes, portanto não faz sentido nenhum", diz Catarina.

Na idade adulta, porém, o cenário há diferente. "É comum olharem para a roupa em segunda mão como suja ou de alguém que não tem dinheiro. Não. Eu tenho dinheiro para ir a uma loja comprar uma camisola, mas escolho não o fazer", argumenta Marta, salientando que comprar em segunda mão pode e deve ser uma opção. 

Nem sempre é fácil alterar comportamentos e ideias, mas, de acordo com Catarina e Marta, "as pessoas estão hoje mais dispostas a fazer compras em segunda mão", seja porque a capacidade financeira das famílias assim o obriga ou por uma maior consciência ambiental.

"Cada vez que faço uma boa compra em segunda mão, faço questão de a partilhar precisamente para mostrar que as coisas estão em bom estado e que isto faz sentido. Não só é inteligente do ponto de vista ambiental, como também do ponto de vista económico, não tem desvantagem. Eu tenho coisas que não compraria novas porque não estou disposta a dar aquele dinheiro ou ás vezes não tenho mesmo dinheiro", assume Catarina Barreiros.

O "negócio" da segunda mão

Joana Ferreira resolveu colocar à venda alguns fatos de dança que já não utilizava há algum tempo, mas pelos quais tinha um carinho especial: “Tenho muitos artigos de dança e, apesar de sempre ter doado roupa, não me fazia sentido estar a dar estes artigos de dança só por dar. Pensei que teria um bom retorno se os conseguisse vender, nem que fosse a um baixo custo. Nem é tanto pelo dinheiro, mas sim pelo espaço, e porque não me faz sentido dar [fatos de dança] a qualquer pessoa, tem de ser alguém que precise realmente deles."

Em cerca de um ano, Joana conseguiu ganhar 200 euros em vendas através de aplicações online, com artigos que rondam entre os 10 e os 20 euros, e as suas roupas já viajaram para a Alemanha, França, Espanha, Finlândia. "Claro que não tiro nenhum balúrdio destas vendas, mas é uma enorme satisfação saber que as pessoas que compram as minhas coisas ficam mesmo felizes, era mesmo o que procuravam e para mim já não serviam para nada."

Mas há um vestido em particular pelo qual Joana não é capaz de abrir mão, mesmo que lhe apresentem as melhores propostas. "Coloquei um fato de dança à venda e recebi uma boa proposta, até era o preço que estava a pedir, mas desisti, não consegui vender. Já vendi outros fatos de dança, mas este não sou capaz. É a questão do apego emocional que temos pelas coisas ou até o valor que sabemos que demos por elas", resume.

Segundo Joana, há quem faça da segunda mão um negócio, comprando já artigos com intenção de os vender. "É um autêntico negócio. Há quem compre uns ténis em promoção e os coloque à venda por um preço mais alto. As pessoas têm de estar muito atentas".

Nestas aplicações "encontra-se de tudo", desde um simples gorro por um euro a uma carteira de Louis Vuitton por mil euros, diz. Como se tratam de compras online, e porque há pessoas que fazem disto negócio, é natural que se desconfie da autenticidade de artigos de marca, mas, de acordo com Joana, algumas aplicações, como a Vinted, já foram desenvolvidas com um sistema que permite fazer esse controlo e eliminar publicações com réplicas falsas.

"Estamos sujeitos a um risco acrescido de algo correr mal" ao comprar em segunda mão

Ainda assim, corre-se sempre um risco de sermos enganados nestas plataformas, como alerta o jurista da DECO Luís Pisco. Isto porque, ao contrário do que acontece nas compras que efetuamos a vendores profissionais, quando recorremos a um vendedor particular não somos considerados consumidores e, por isso, não gozamos dos direitos específicos a este título, como o direito de retratação ou compensação. Na prática, se recebeu um artigo cujo estado não é em nada semelhante ao artigo que comprou online, nada obriga a que seja devidamente recompensado. 

"Comprando um bem através de um sistema que não é do clássico vendedor profissional, que é controlado por leis e entidades como a ASAE [Autoridade de Segurança Alimentar e Económica], estamos sujeitos a um risco acrescido de algo correr mal", salienta o jurista contactado pela CNN Portugal. Corremos o risco, por exemplo, de comprar um bem contrafeito ou um bem que foi furtado a terceiros, uma prática comum nas aplicações de segunda mão, acrescenta.

O cumprimento das vendas e compras acordadas é, por isso, responsabilidade das aplicações e dos próprios consumidores, diz Luís Pisco, que alerta para a necessidade de "uma maior responsabilização por parte das plataformas neste tipo de vendas, funcionando quase como um garante do cumprimento do contrato quando alguma coisa corre mal".

Ao mesmo tempo, acrescenta, o consumidor deve "desconfiar quando a oferta é demasiado boa para ser verdade - porque geralmente não é verdade" e nunca aceder a pedidos de fornecimento de dados que vão além do necessário, como o nome e a morada de envio do artigo que pretendemos comprar. Se o vendedor pedir o IBAN ou dados do cartão de crédito, por exemplo, o jurista aconselha-o a recuar na compra: "Não faz sentido fornecer o IBAN para uma transação em que sou eu que vou pagar a outra pessoa."

"Não existe um método completamente seguro de que não sejamos enganados quando compramos em segunda mão", resume.

Relacionados

Estilo de Vida

Mais Estilo de Vida

Na SELFIE

Patrocinados