Nem um copo cheio de cêntimos safou Ventura do "complexo de Tânger": o debate sobre os polícias onde os polícias não ganharam nada

4 jul, 19:56

Os polícias tentaram entrar nas galerias para ouvir a sua vida a ser discutida. Os procedimentos de segurança acabaram por atrasar tudo. O Chega aproveitou a circunstância para se afirmar. Aguiar-Branco respondeu que estava tudo “normal”. Seguiram-se três horas em que todos sacudiram as culpas para outros. Ao Governo por condicionar a negociação, ao PS por não ter feito enquanto podia, ao Chega por tentar instrumentalizar o debate. Ninguém ganhou. Só perderam os polícias

Andaram todos, durante três horas, a ver quem protegia mais quem nos protege. Mas houve quem tenha preparado, ao pormenor, “números de teatro e de circo”. Palavras de um social-democrata, António Rodrigues, nada impressionado com o cabeça de cartaz.

André Ventura lá tentou montar a tenda do hemiciclo à sua maneira. Primeiro, a criticar as demoras nas entradas de quem queria assistir ao debate nas galerias, respondendo a um convite dele próprio. Depois com um copo, meio cheio, com moedas de um cêntimo, que diz terem sido enviadas por polícias. Vai entregá-las a Luís Montenegro, o mesmo que disse que, para os polícias, “nem mais um cêntimo”.

“No chocalhar dos cêntimos, está o único barulho que eles podem fazer em termos públicos”, ouviu-se da bancada laranja. É que, a esta fase do campeonato, para todos os partidos, à exceção do Chega, uma coisa era clara: o partido de extrema-direita estava a tentar “instrumentalizar” o debate.

Os partidos foram vincando uma posição: nem os polícias caíram na cantiga do bandido. Os sindicatos fizeram questão de se distanciar do Chega: não confiaram em “falsos amigos”, segundo Rui Tavares do Livre.

O liberal Rui Rocha veio fazer o diagnóstico: Ventura está, desde as eleições europeias, com “complexo de Tânger, quer fazer prova de vida”. E, no último discurso, o presidente do Chega voltou a tentar um “número político” – expressão da líder do PAN, Inês de Sousa Real. Mas acabou tramado pelo próprio entretenimento. Ia mostrar insígnias de polícias que morreram ou desistiram da profissão. O tempo chegou ao fim, o microfone desligou-se, não houve explicação.

O resumo destas três horas de debate faz-se, mais ou menos, assim: andaram todos a elogiar a importância das forças de segurança, andaram todos a atirar culpas uns aos outros. Ao Chega por usar esta luta para ganhar destaque, ao PS por não ter feito enquanto podia, a Montenegro por ter condicionado as negociações com o seu “nem mais um cêntimo”, ao Bloco por acusar polícias de racismo e abuso de poder.

Para os polícias, no que respeita ao subsídio de missão que motivou o debate, é que não saiu nada de concreto. A proposta do Chega foi chumbada. E o Governo mantém que 300 euros é um valor que, superando todos os limites, ainda está dentro do limite.

Rui Rocha, presidente da Iniciativa Liberal, quis mostrar como uma greve de polícias poderia dar margem a que membros do Chega com problemas da justiça continuassem com as suas atividades (Lusa)

Os que estavam dentro e os que estavam fora (a tentar estar dentro)

Enquanto no hemiciclo se discutia a vida deles, os polícias tentavam entrar no hemiciclo. Ou, pelo menos, nas galerias, para ouvir tudo o que lá dentro se discutia. Mas não foi um processo nada fácil. Horas e horas de espera, longa fila, a passagem pelos procedimentos de segurança. E o Chega a aproveitar a situação para passar a mensagem de que esta luta estaria a ser condicionada.

Houve polícias a acusar o PSD de ter usados jovens da “jota” para ocupar lugares nas galerias, algo que, entretanto, foi desmentido. O Chega, através de André Ventura, Pedro Pinto ou Cristina Rodrigues foi aproveitando todas as oportunidades para vincar que algo de anormal se estaria a passar, com “centenas” de pessoas a tentar entrar num “debate público”.

O Presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco fez logo questão de averiguar o que se passava, para concluir que tudo estava a ser feito “de forma normal”. Em seu auxílio vieram Hugo Soares do PSD e Pedro Delgado Alves do PS para lembrar os procedimentos de segurança da casa da democracia, sem exceções ou “privilégios”. Mas o Chega não se vergava nesta crítica.

"Não nos dignifica. Há pessoas que só vão entrar quando terminarmos o debate", dizia Ventura. O certo é que, mal a proposta do Chega para o subsídio de risco foi chumbada, as galerias começaram a ficar logo mais vazias. Por sua vez, o Sindicato Independente dos Agentes da Polícia (SIAP) anunciou que vai pedir esclarecimentos a Aguiar-Branco por aqueles que não conseguiram lugar.

Fila de polícias na lateral da Assembleia da República, que tentavam entrar para as galerias (Lusa)

O rol de críticas ao Governo

Vamos por partes. Primeiro as críticas ao Governo, com uma ideia chave: a de que o executivo de Luís Montenegro não está a cumprir as promessas que assumiu na campanha eleitoral. “Mentiu” e tem “zero projetos” para os polícias, apontou Ventura. Para atirar: “Os polícias não querem mais um cêntimo, querem dignidade.”

À esquerda, PS, Bloco e PCP também vieram vincar as diferenças entre a campanha e a governação, acusando Montenegro de estar a tomar opções erradas. O comunista António Filipe disse mesmo que o primeiro-ministro veio “estragar tudo” ao colocar um travão enquanto decorrem as negociações.

“A Luís Montenegro faltou firmeza do Capitólio e clareza na campanha eleitoral”, atirou a socialista Isabel Moreira, naquilo que classificou como um “ultimato que gerou um bloqueio nas negociações”. O primeiro-ministro, acrescentou, “ultrapassou os mínimos” “quando disse o que disse no meio de uma negociação”.

A defesa do Governo veio por João Almeida, do CDS-PP, ao dizer que o executivo já se mostrou disponível para “fazer o triplo” do PS, propondo mais 300 euros para o subsídio de missão: “Pode não ser suficiente, será a mesa das negociações a dizer onde devemos ir.”

Mas ninguém defenderia a honra do Governo como Hugo Soares, líder parlamentar do PSD, argumentando que não houve mentiras em campanhas e que “não haveria dúvidas” se este valor tivesse sido oferecido a outras classes da Função Pública. A defesa fica completa com o ataque ao PS, que não tem “sentido de Estado”, por ter criado uma “injustiça gritante” e não assumir agora uma posição sobre o valor proposto aos sindicatos.

Hugo Soares, líder parlamentar do PSD, defendeu a honra do Governo (Lusa)

PS responde: só não fizemos mais porque não deixaram

As críticas ao anterior Governo do PS não se fizeram esperar, inclusive de antigos parceiros. O bloquista Fabian Figueiredo acusou o Executivo de António Costa de ter comprado um “conflito prolongado e inútil com as forças de segurança”.

Também categórico foi André Ventura, ao falar de uma “injustiça histórica” que, vincou, representou a “humilhação de uma classe”. Também à direita, o liberal Rui Rocha apontou o desconforto socialista nesta matéria, com o “silêncio do então ministro da Administração Interna [José Luís Carneiro]”, que não foi capaz “de esclarecer”. “Suponho que seja porque ele próprio tem vergonha do que aconteceu nesse processo.”

Os socialistas, através de Pedro Delgado Alves, defenderam também a honra: só não foi possível resolver o problema porque a legislatura “foi dissolvida” e porque o novo Governo não se disponibilizou para um orçamento retificativo.

Polícias que conseguiram assistir ao debate já nas galerias (Lusa)

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