Exclusivo: Tratamento das gémeas em Portugal poupou milhões a seguradora no Brasil

27 jun, 21:53

Seguradora brasileira e hospital privado Lusíadas em Portugal tinham a mesma empresa proprietária. Lusíadas terá prometido ajuda do diretor à família, mas garante que a propriedade deste grupo de saúde não teve influência. 

O tratamento com Zolgensma administrado às gémeas luso-brasileiras no hospital de Santa Maria poupou milhões de euros à seguradora brasileira que até aí pagava o outro medicamento que as crianças faziam no Brasil e que teria de ser repetido de quatro em quatro meses. 

Esta poupança é uma consequência lógica de uma decisão judicial que obrigou a seguradora brasileira a pagar esse outro medicamento e foi referida pela mãe das crianças na gravação captada em outubro de 2023 pela CNN Portugal. 

Após meses a acusar a CNN Portugal de ter feito uma gravação ilegal e de ter descontextualizado as suas palavras sobre o chamado “pistolão”, na semana passada, na Comissão Parlamentar de Inquérito, Daniela Martins admitiu que queria mesmo falar numa cunha com influência da família do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, mas teria afinal mentido, numa versão que a própria classificou como um “erro” que cometeu. 

A mentira, segundo a mãe das crianças, foi dita “por vaidade” e por ser aquilo que ouviu durante muito tempo dentro do Hospital de Santa Maria. 

Seguradora obrigada a pagar outro medicamento (no Brasil)

Além da frase do “pistolão”, nessa mesma gravação, noutro momento já referido noutra reportagem da CNN Portugal em dezembro, Daniela Martins dava a entender que tinha feito um acordo com a seguradora brasileira para que esta lhe pagasse as despesas que iria ter ao vir para Portugal. 

Recorde-se que em setembro de 2019 - antes da viagem - um tribunal de São Paulo tinha confirmado que a referida seguradora teria de pagar o medicamento Spinraza para evitar a progressão da atrofia muscular espinhal e a inevitável morte das crianças se não tivessem tratamento. 

O facto das crianças já estarem a tomar este medicamento no Brasil ajudou os médicos em Portugal a resistirem a marcar a consulta para as crianças tendo em conta que com o Spinraza a doença já estaria estabilizada, tendo de ser administrado de 4 em 4 meses com uma injeção na coluna - a maior desvantagem deste fármaco. 

Numa resposta da seguradora a um tribunal brasileiro, a que a CNN Portugal teve acesso, esta explica que "é evidente o desequilíbrio que esse tipo de tratamento traz ao plano de saúde. Em se tratando de um contrato coletivo (...) elevará à estratosfera o valor mensal a ser pago pela coletividade dos usuários". 

"Considerando o caso" [das gémeas], diz a seguradora nesse mesmo documento, “tem-se o custo em dobro, sendo possível estipular o custo anual de 2,6 milhões de reais", ou seja, cerca de 600 mil euros, tendo em conta o câmbio da época.  

Seguradora economiza milhões

É neste contexto que surge a explicação de Daniela Martins na conversa com a CNN Portugal que indiciava um acordo com a empresa do seguro de saúde: “Como eu estava indo para lá e ia retirar esta ‘conta’ das costas deles, porque a medicação [em Portugal] era de dose única… Então falei: eles vão economizar os 22 milhões que as minhas filhas iam custar aqui para eles… e estou indo lá e quem vai pagar é Portugal, então eles vão-me bancar o período em que eu estou lá para receber a medicação. Aí eu fui lá [para Portugal] com toda a estrutura. No avião teve de ir médico, fisioterapeuta, enfermeira. E quando eu cheguei uma fisioterapeuta morava comigo em casa” porque as crianças faziam seis sessões de fisioterapia por dia, contou a mãe das crianças.

Os 22 milhões referidos por Daniela Martins serão, em princípio, na moeda brasileira (reais) - quase 5 milhões de euros ao câmbio da época. 

Com uma fisioterapeuta, uma enfermeira e uma “babá” nos primeiros tempos em Portugal, Daniela Martins descreveu à CNN Portugal que foi este cenário que levou as pessoas do Hospital de Santa Maria a pensarem que seria “bilionária”. 

Questionada na Comissão Parlamentar de Inquérito pela deputada Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda, sobre a existência ou não de um acordo com a seguradora que teria pago pelo menos parte das despesas em Portugal, a mãe das crianças respondeu, porém, que não, este não existiu. 

Contactada agora pela CNN Portugal, a seguradora no Brasil das crianças garante, igualmente, não ter feito qualquer acordo com a família para financiar a sua vinda para Portugal, subscrevendo, na prática, aquilo que Daniela Martins afirmou na Assembleia da República.   

O apoio do diretor dos Lusíadas

Joana Mortágua, a deputada do BE, também revelou, nessa mesma audição, outro dado que a própria considerou estranho: um e-mail de resposta a Daniela Martins, do hospital privado dos Lusíadas, onde se pode ler que “com o apoio do dr. Vitor Almeida, diretor dos Lusíadas, será contactada a diretora clínica dos Lusíadas Lisboa, para através dela obtermos o envolvimento da dra. Teresa Moreno”.

A bloquista estranhou tanto empenho do diretor de um dos maiores hospitais privados do país.

Teresa Moreno era a médica perita em atrofia muscular espinhal que meses antes tinha tratado a bebé Matilde com o Zolgensma no Serviço Nacional de Saúde, o medicamento que custava 2 milhões de euros por cada criança tratada com uma dose única.  

A médica dava consultas nos Lusíadas e no Santa Maria e resistiu a marcar a primeira consulta das gémeas no hospital público até esta ser imposta pelas ordens da Secretaria de Estado da Saúde, à época liderada por Lacerda Sales. 

A médica das gémeas já disse à Inspeção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) que nem sabia da marcação no hospital privado onde também trabalhava. 

Seguradora (no Brasil) e Lusíadas (em Portugal) tinham o mesmo dono 

Outro facto estranho destacado por Joana Mortágua é que o e-mail a revelar a disponibilidade dos Lusíadas para ajudar foi enviado para a mãe das crianças por José Magro, um empresário com contactos em Portugal e no Brasil, sem qualquer relação aparente com o setor da saúde, mas que a deputada disse que teria alguma relação com Nuno Rebelo de Sousa. 

Os dados entretanto consultados pela CNN Portugal e confirmados pelo grupo Lusíadas indicam que o grupo Lusíadas e a seguradora brasileira da família das gémeas tinham, na época, a mesma empresa internacional proprietária. 

O Lusíadas recusa, no entanto, qualquer influência do proprietário que tinha em comum com a seguradora: "As entidades seguradoras com as quais os nossos clientes ou potenciais clientes têm uma relação contratual não interferem nos cuidados de saúde prestados nas unidades do Grupo Lusíadas Saúde."

A consulta das gémeas no hospital Lusíadas de Lisboa acabou desmarcada mais ou menos na mesma altura em que foi agendada a consulta diretamente no hospital de Santa Maria que daria acesso ao tratamento. 

Não se sabe quem desmarcou a consulta no Lusíadas, mas já é certo que no Santa Maria esta foi obtida por ordem da secretaria de Estado da Saúde, após contactos do filho do Presidente da República. 

Segundo a IGAS, se tivessem sido observadas no privado/Lusíadas, as crianças teriam de ser encaminhadas para o público onde acabariam, também, por receber o Zolgensma que fez a família atravessar o Atlântico, contra a vontade dos médicos do Hospital de Santa Maria.

Para os médicos do serviço de neuropediatria deste hospital público, que escreveram uma carta à administração, era essencial haver critérios para atender no SNS famílias de luso-descendentes, que não pagavam impostos em Portugal, e que procuravam o país para ter acesso àquele que na altura era o medicamento mais caro do mundo, apesar da alternativa terapêutica que tinham nos países de origem.

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