Marcelo, Lacerda Sales e mais 9 protagonistas: como ninguém sabe ou se recorda do caso das gémeas

7 dez 2023, 07:00

Ao longo dos últimos dias, vários decisores políticos, do Presidente ao secretário de Estado têm procurado esclarecer se tiveram intervenção no caso das gémeas tratadas no Santa Maria. Mas entre as declarações, quase todos assumem que ou não conheciam o caso, ou não sabem responder a vários dos mistérios que o rodeiam

“Não tenho a mínima das ideias”, “não tenho memória exata”, “não comento”, “não tenho conhecimento”. Da Presidência ao Ministério da Saúde, dos hospitais aos decisores políticos, ninguém consegue explicar vários dos mistérios que têm rodeado o caso do tratamento milionário das gémeas. Ao mesmo tempo, desde a declaração-surpresa de Marcelo Rebelo de Sousa ao país no início da semana, a lista de protagonistas políticos neste processo, que está a ser investigado pelo Ministério Público, tem se tornado cada vez mais evidente.

Desde Nuno Rebelo de Sousa, que terá sido o catalisador principal para a intervenção da Presidência da República neste processo, a Marcelo, que desviou esclarecimentos adicionais para o Governo, passando por Marta Temido, antiga ministra responsável por esta pasta, e por Lacerda Sales, ex-secretário de Estado da Saúde, e chegando mesmo ao primeiro-ministro demissionário que, esta quarta-feira, explicou que o seu gabinete agiu como “habitualmente fazemos”, “ponto final”.

As dúvidas, essas, permanecem. Porque é que o Zolgensma, o medicamento utilizado para tratar a atrofia muscular espinal tipo 1 - que custa dois milhões de euros por paciente - foi utilizado neste caso, mesmo perante a oposição dos neuropediatras do hospital? Como é que a autorização especial para o uso deste medicamento foi dada em dois dias (a um sábado, quando o Infarmed estava encerrado)? Porque é que o medicamento milionário, que na altura não tinha entrado no mercado em Portugal, foi utilizado, mesmo “não havendo qualquer vantagem terapêutica”, como explicou o antigo presidente do Infarmed José Aranda da Silva à CNN Portugal? Porque é que o assunto foi remetido para o Governo já depois de o hospital ter comunicado à Presidência que “a prioridade” seria dada a residentes em Portugal?

Entre as questões, estes são os 11 protagonistas e a história do seu envolvimento no caso.

Marcelo Rebelo de Sousa

“Como é que foi? O que se passou a seguir? Por que tramitação saiu? Não tenho a mínima das ideias"

O Presidente da República começou por dizer que não se recordava do caso, mas esta segunda-feira explicou que, no dia 21 de outubro de 2019, recebeu um email do filho a apresentar a situação das gémeas luso-brasileiras e a questionar sobre “se era possível o tratamento” no Hospital de Santa Maria - que até àquela data não tinha dado resposta à família, já depois de o Hospital Dona Estefânia ter apresentado objeções

Esse pedido, no qual era questionado a Marcelo se “é possível saber se há resposta possível ou não há resposta possível sobre a matéria”, foi despachado pelo Presidente da República para a Casa Civil no mesmo dia, interrogando-se: “Será que Maria João Ruela, assessora para assuntos sociais, pode perceber do que se trata?”. 

Dez dias depois, a Casa Civil remeteu o assunto para o Governo, já depois de Fernando Frutuoso de Melo ter comunicado que “a prioridade” seria “dada aos casos que estejam a ser tratados nos hospitais portugueses”, pelo que não seria “previsível” que os pais das gémeas tivessem as suas pretensões atendidas “rapidamente”.

Marcelo, que garante que foi “neutral” neste despacho, rejeitou também ter falado com o filho sobre o assunto. "O que disse, disse. Se, na altura, disse que não tinha falado, é porque não falei".

O que aconteceu depois do assunto sair da Presidência? “Como é que foi? O que se passou a seguir? Por que tramitação saiu? Não tenho a mínima das ideias (...) Não acompanho o que se passa a seguir. Nem é possível acompanhar, nem é desejável acompanhar”, disse o Presidente da República na segunda-feira.

Nuno Rebelo de Sousa

 

“Não tenho nada a comentar, obrigado”

Terá sido o filho do Presidente da República o catalisador para toda a intervenção ligada a Marcelo Rebelo de Sousa no caso. Enviou um e-mail ao pai no dia 21 de outubro a explicar que “um grupo de amigos da família das duas crianças gémeas se tinha reunido e estava a tentar, a todo o transe, que elas fossem tratadas em Portugal” e, dois dias depois, recebeu uma resposta de Maria João Ruela, consultora para assuntos sociais do Presidente. 

“O processo foi recebido”, terá dito a assessora, segundo relato de Marcelo Rebelo de Sousa, “e estão a ser analisados vários casos do mesmo tipo. Estando a ser analisados doentes internados e seguidos em hospitais portugueses. Sendo que a capacidade de resposta é, naturalmente, muito limitada. E depende inteiramente de decisões médicas do hospital e do Infarmed”.

Depois desta resposta, Rebelo de Sousa voltou a insistir no assunto. “Voltou a perguntar à Dra. Maria João Ruela, que confirmou, nos mesmos e exatos termos, aquilo que tinha dito por escrito”. Já depois da segunda resposta, Nuno Rebelo de Sousa dirigiu-se ao chefe da Casa Civil, sublinhando que a situação estava a ser “muito angustiante” para a família, sendo que Frutuoso de Melo, de acordo com o relato de Marcelo, apenas “confirmou a informação recebida da consultora”.

Até ao momento, o filho do Presidente da República ignorou as perguntas sobre qual seria a sua relação com as gémeas. “Não tenho nada a comentar, obrigado”, afirmou à CNN Portugal no dia 24 de novembro.

Fernando Frutuoso de Melo

O chefe da Casa Civil do Presidente da República foi responsável por coordenar a resposta ao pedido de informações de Nuno Rebelo de Sousa. Delegou a tarefa a Maria João Ruela de obter informações junto do Santa Maria, respondeu ao pai das gémeas sobre o facto de não ser “previsível” uma resposta do hospital aos pedidos da família e enviou duas cartas sobre a matéria ao Governo, uma para o chefe de gabinete do primeiro-ministro e outra para o gabinete do secretário de Estado das Comunidades Portuguesas.

Mas antes desta informação ter sido confirmada pelo Presidente da República, o chefe da Casa Civil disse ao programa Exclusivo com Sandra Felgueiras “que não havia nenhuma carta, apenas dois relatórios médicos”. 

Na segunda-feira Marcelo garantiu que nas cartas o chefe da Casa Civil havia “matéria de identificação e os exames respetivos” das gémeas. E, no documento enviado para o gabinete do primeiro-ministro a que a CNN Portugal teve acesso, constava a informação de que o medicamento em Portugal era “a única esperança de cura".

Maria João Ruela

A antiga jornalista é desde abril de 2016 consultora da Casa Civil do Presidente da República com responsabilidade pelos assuntos sociais. Foi ela que, segundo Marcelo, inquiriu o Hospital de Santa Maria sobre a possibilidade de as crianças serem lá tratadas. Nesses contactos, apurou que o processo das gémeas foi “recebido”, mas que vários casos do mesmo tipo estavam a ser analisados, nomeadamente doentes internados e seguidos em hospitais portugueses. “Sendo que a capacidade de resposta é, naturalmente, muito limitada e depende inteiramente de decisões médicas do hospital e do Infarmed”.

Foi esta a resposta que deu por escrito a Nuno Rebelo de Sousa a 23 de outubro de 2019 e, perante insistência do filho do Presidente da República, “confirmou, nos mesmos e exatos termos, aquilo que tinha dito por escrito”. Após este contacto, Nuno Rebelo de Sousa dirigiu-se a Frutuoso de Melo. 

António Lacerda Sales

O médico detinha o cargo de secretário de Estado da Saúde durante o período em que ocorreu o tratamento milionário às gémeas luso-brasileiras no Santa Maria e, como mostram documentos do processo clínico obtidos pela CNN Portugal, foi ele quem solicitou ao Santa Maria a primeira consulta das duas crianças.

Os documentos afirmam que esta primeira consulta foi “solicitada pelo secretário de Estado à professora Ana Isabel Lopes”, a diretora do departamento de Pediatria do Santa Maria. Mas esta não é a única vez em que o nome do ex-governante surge nos documentos clínicos associados a este caso. 

Há outros dois documentos, uma informação clínica e uma justificação do pedido do medicamento ao Infarmed, onde é referido que a solicitação aos diferentes departamentos foi feita por Lacerda Sales.

Sales na terça-feira negou ter marcado a consulta, sublinhando que “nenhum secretário de Estado tem poder para marcar e influenciar ou violar a consciência e a autonomia de qualquer médico”. Mas esta quarta-feira admitiu que, afinal, não se lembra. “Não posso negar uma coisa de que não me lembro”, afirmou em declarações à SIC Notícias.

Tanto a Iniciativa Liberal, como o Chega já pediram para que Lacerda Sales e a anterior ministra da Saúde, Marta Temido, sejam ouvidas no Parlamento sobre este caso.

Marta Temido


 

A ex-ministra da Saúde já veio sublinhar que “não deu qualquer orientação sobre o tratamento” das gémeas e que “não teve qualquer contacto com o Presidente da República relativamente a este caso”. 

Em entrevista ao Público e à Renascença, referiu que teve necessidade de "ir refazer o circuito documental" daquilo que eventualmente teria conhecimento sobre o caso e destacou que o pedido de verificação vindo da Presidência da República sobre o processo das gémeas entrou no Ministério da Saúde junto com outros pedidos. "É o circuito normal. Foi normal o que o Ministério fez a esse documento, que vinha do gabinete do primeiro-ministro e que canalizava um documento da Casa Civil da Presidência da República", afirma.

Mas o diretor de Neuropediatria do Hospital de Santa Maria, Levy Gomes, referiu em entrevista à TVI que o encaminhamento das gémeas luso-brasileiras não foi “normal” e que beneficiaram de direitos que outras crianças não tiveram. "Acredito 100% na minha colega”, disse, referindo-se a uma terceira pessoa que estaria envolvida na marcação das consultas. “Ela diz que houve telefonemas da secretária da ministra Marta Temido e escreveu que houve pressões do secretário de Estado".

Os pais das gémeas

O primeiro contacto com a mãe e o pai das gémeas foi com o Hospital Dona Estefânia, a 14 de outubro de 2019, uma semana antes de Nuno Rebelo de Sousa ter contactado o pai sobre o caso das gémeas.

O Dona Estefânia foi claro ao sublinhar que não havia condições para administrar o tratamento, destacando que o mesmo “não está incluído no orçamento do hospital e é primeiro inserido numa plataforma informática do Ministério da Saúde para integrar o orçamento deste ministério”. Mais tarde o hospital referiu à família o caso da bebé Matilde - a quem foi atribuído um tratamento semelhante: “Em Portugal, houve um caso muito excecional de administração de Zolgensma. Contudo as autoridades de saúde não têm uma posição definida e uniforme quanto aos casos restantes. Nomeadamente para os bebés com mais de oito meses de idade”.

O advogado da família sublinhou à CNN Portugal que Daniela e Samir desconhecem que a consulta tenha sido marcada por Lacerda Sales, tal como “que tenha havido qualquer intervenção fora da legalidade e, se a houve, a qual se refuta, não dependeu de qualquer pedido ou influência sua”.

O advogado, Wilson Bicalho, garante também que não houve qualquer cunha e que "em momento algum [falaram com Nuno Rebelo de Sousa]. [A família] nem sequer conhece o filho do senhor Presidente da República", frisou. 

A resposta surge depois de a TVI/CNN Portugal terem tido acesso a um vídeo que mostra a mãe das crianças a admitir a existência de uma cunha. “Nós usámos os nossos contactos. Foi aí que entrou o pistolão. Eu conhecia a nora do Presidente, que conhecia o ministro da Saúde, que mandou um e-mail para o hospital e disse: 'E o caso das meninas? Começaram a receber ordens superiores", afirmou.

Jamila Madeira 

“Comigo, nada. Os casos clínicos não passavam pelo meu gabinete"

A ex-secretária de Estado adjunta e da Saúde destacou também que não tem qualquer conhecimento do caso. “No meu gabinete nunca tivemos conhecimento de nenhum caso clínico em concreto, nem associado a essa patologia, doença, medicamento ou outro”, afirmou, em declarações à Renascença.

À Lusa, admitiu que as comunicações enviadas da Casa Civil da Presidência da República para o gabinete do primeiro-ministro fossem depois reencaminhadas para os respetivos ministérios, mas sublinhou que tal não chegaria aos secretários de Estado. “Comigo, nada. Os casos clínicos não passavam pelo meu gabinete. À partida, não passariam pelo Ministério, mas pelo meu gabinete muito menos. Só questões de financiamento ou de coisas desse género”.

 “Nunca tive no meu gabinete nenhum pedido que viesse do gabinete do primeiro-ministro. Se havia noutros, não me posso pronunciar, isso não sei”, assegurou.

Luís Pinheiro

“Essa preocupação, não tenho memória exata"

Foi a Luís Pinheiro, à data diretor clínico do hospital, que vários neuropediatras entregaram em mão uma carta, datada de 28 de novembro de 2019, com preocupações e objeções ao tratamento milionário administrado às gémeas. Em declarações à TVI/CNN, o médico disse não se lembrar da missiva: “Essa preocupação, não tenho memória exata. Estamos em 2023 e estamos a falar de 2019 e pelo caminho muita coisa aconteceu”.

Já em entrevista esta quarta-feira, António Levy Gomes, diretor do serviço de Neuropediatria do Hospital de Santa Maria, revelou que foi este diretor clínico quem foi o interlocutor das pressões externas que acabariam por levar ao tratamento das gémeas. “Ele é que sabe tudo, ele é a pessoa chave, ele é o pivot entre o Ministério, o doutor Rebelo de Sousa pai, o doutor Rebelo de Sousa filho, ele é quem recebeu a mensagem, que transmite à minha diretora, que marca a consulta”.

Daniel Ferro 

"Não me lembro de carta nenhuma"

Ferro, que ocupava o cargo de administrador do CHULN em 2019 e 2020, foi o nome a quem foi endereçada a polémica carta de oposição dos neuropediatras ao tratamento. À TVI, respondeu que “não se lembra de carta nenhuma”. Já sobre os argumentos dos médicos, na mesma missiva, que se manifestaram insatisfeitos por existir deficiências a nível de recursos e mesmo assim gastar-se milhões no tratamento, Daniel Ferro respondeu que “nunca houve falta de dinheiro para qualquer projeto, nem para medicamentos”.

António Costa

"Fazemos o que habitualmente fazemos com esse expediente"

 

O primeiro-ministro demissionário confirmou durante a tarde de quarta-feira que recebeu uma comunicação da Casa Civil da Presidência da República e que o processo das gémeas seguiu o trâmite habitual: Fazemos o que habitualmente fazemos com esse expediente: há um reencaminhamento para os ministérios competentes em razão da matéria. Ponto final", adiantou, no Porto.

Na primeira vez que falou sobre o assunto, sublinhou que as "entidades competentes" estão a investigar e disse estar a aguardar as "averiguações necessárias" sobre este caso. Para além do inquérito aberto pelo Ministério Público, foi determinada uma investigação pela Inspeção-Geral de Atividades em Saúde e uma auditoria pelo Hospital Santa Maria.
 

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