O cancro já não é uma doença só dos mais velhos. Casos abaixo dos 50 anos estão a aumentar e não sabemos porquê

31 mar, 08:00
"Tudo isto foi um grande choque". Kate Middleton anuncia diagnóstico de cancro

Está o cancro a aumentar entre os mais jovens? Sim. Porquê? Não se sabe ao certo. São más notícias? Sim e não: há mais casos diagnosticados, mas a maioria é numa fase precoce e curável, dizem os especialistas

Kate Middleton apanhou muitos de surpresa ao revelar, num vídeo emotivo, que tem cancro e que está a realizar quimioterapia preventiva. O facto de a princesa de Gales ter apenas 42 anos trouxe novamente à baila o impacto da doença em faixas etárias mais jovens. Está, de facto, a crescer o número de novos cancros em pessoas com menos de 50 anos? A resposta é sim. 

“Temos visto que os cancros têm vindo aparecer na sua globalidade nas pessoas mais jovens. Em Portugal, os cancros mais globais, até nestas idades mais jovens, são o da próstata no homem, da mama na mulher e o do pulmão em ambos”, começa por dizer António Araújo, diretor do Serviço de Oncologia Médica do Centro Hospitalar Universitário de Santo António, no Porto.

A mesma questão foi colocada a Daniela Macedo, oncologista no Hospital Lusíadas Lisboa. E a resposta é idêntica: “Sim, em Portugal os dados epidemiológicos não são tão atualizados como os dados lá fora, mas parece estar a existir uma tendência de crescimento.” “O que parece estar a acontecer é um aumento da incidência [do cancro em pessoas] com menos de 50 anos, quer nos homens, quer nas mulheres, e que isso tem ocorrido em taxas variáveis, segundo o que é descrito na literatura, em que uns estudos dizem 20-30% outros menos”, esclarece a médica.

Em 2022, foram estimados mais de 66 mil novos casos de cancro em Portugal, segundo o relatório da OCDE Portugal: Perfil de Saúde do País 2023. No entanto, faltam dados recentes sobre as faixas etárias onde há maior incidência: os últimos tornados públicos, segundo o Registo Oncológico Nacional (RON), referem-se a 2020. Este relatório indica que a maior parte dos casos de cancro (40,0%) ocorreu entre os 60 e os 74 anos, seguindo-se o grupo acima dos 75 anos (32,4%), confirmando a visão convencional de que o cancro ainda é uma doença do envelhecimento. Mas a verdade é que a idade avançada já não é, de todo, exclusiva desta patologia: o cancro não escolhe mesmo idades e o mesmo relatório do RON explica que 20,1% dos cancros detetados há quatro anos foram em pessoas entre os 45 e 59 anos e que 5,8% dos novos diagnósticos foram em pessoas entre os 30 e os 44 anos e 1,2% entre jovens com 15 a 29 anos.

Olhando para os tipos de cancro, Daniela Macedo explica que, por cá, cancros como linfomas, sarcomas e leucemia são já “comuns em jovens”, mas, tal como explicou António Araújo, o que se tem notado é um aumento de casos de cancros da mama (o maior número de novos casos de cancro da mama registados foi na faixa dos 45 a 49 anos) e pulmão. A médica destaca ainda o cancro colorretal em pessoas com menos de 50 anos.

Luís Costa, diretor do Departamento de Oncologia do Hospital Santa Maria, em Lisboa, destaca que este fenómeno tem sido “amplamente documentado em várias publicações científicas” e que não se foca apenas “num tipo de cancro”, é, na verdade, uma realidade transversal aos vários tipos de tumores malignos que podem surgir. Mas deixa o aviso: “não sabemos o porquê” deste aumento de incidência.

Segundo os mais recentes dados do Registo Oncológico Nacional, o maior número de novos casos de cancro da mama foram registados na faixa dos 45 a 49 anos (Freepik)

O que tem descoberto a ciência sobre este (não tanto) admirável mundo novo?

A ciência tem dado provas claras de que esta é uma realidade transversal e olhando apenas para o mundo das celebridades é possível perceber que tem havido mais casos de cancro entre pessoas na casa dos 30 e 40 anos na última década. Além de Kate Middleton, este ano também a atriz Olivia Munn, de 43 anos, revelou ter sido diagnosticada com um tipo de cancro da mama agressivo (mesmo depois de ter feito um teste para 90 genes que deu negativo). 

O ator australiano Hugh Jackman teve o seu primeiro diagnóstico de cancro da pele em 2013, na altura com 44 anos. No ano seguinte, quando tinha apenas 48 anos, o também ator Ben Stiller revelou ter sido operado a um cancro da próstata. Michael C. Hall, protagonista da série Dexter, recebeu em 2010, o diagnóstico de Linfoma de Hodgkin - na altura tinha apenas 39 anos, a idade do seu pai quando morreu de cancro da próstata, conta a CBS. Também aos 39 anos, Chadwick Boseman foi diagnosticado com cancro do cólon e recto, tendo acabado por morrer quatro anos depois, em 2020. E a lista de personalidades com diagnósticos de cancro antes dos 50 anos continua: Christina Applegate teve cancro da mama aos 36 anos (e agora luta contra uma esclerose múltipla), a mesma idade com que Kylie Minogue descobriu o mesmo tipo de cancro, e Sofia Vergara recebeu o diagnóstico de um tumor maligno na tiroide aos 28. A atriz Sofia Ribeiro foi diagnosticada com cancro da mama em 2015, na altura tinha apenas 30 anos.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o cancro entre adultos na casa dos 30 anos parece mesmo ser uma tendência crescente. Segundo um estudo financiado pelo governo norte-americano e publicado na revista JAMA Network Open, há certos tipos de cancro que estão a ser diagnosticados com maior frequência em adultos mais jovens, em particular os cancros da mama, tiroide e recto. A investigação, que analisou meio milhão de casos de cancro entre 2010 e 2019, revela ainda que é nas mulheres que o cancro tende a aparecer mais cedo. Esta mesma conclusão foi reiterada num estudo publicado este ano, que revela um aumento da incidência de cancro de mama entre mulheres norte-americanas com idade entre 20 e 49 anos.

Na Europa, indica um estudo publicado na ESMO Open (revista digital da Sociedade Europeia de Medicina Oncológica) e que se focou em pessoas entre os 15 e 39 anos, os cancros da mama (na mulher, embora os cancro da mama possam também ocorrer em homens, como mostra esta reportagem da CNN Portugal), da tiroide e dos testículos foram os mais comuns entre os mais jovens de todos os países europeus, seguindo-se os cancros como o do colo do útero e o melanoma.

Em todo o mundo, de acordo com um estudo publicado no BMJ Oncology, os novos casos de cancro entre pessoas com menos de 50 anos aumentaram 79,1% entre 1990 e 2019, enquanto o número de mortes subiu 27,7%. E se os dados não são, por si só, animadores, o cenário futuro pode mesmo ser assustador: o número de cancros nesta idade poderá aumentar 31% e 21%, respetivamente, até 2030, com maior risco para as pessoas com cerca de 40 anos.

O oncologista António Araújo, também diretor do Mestrado Integrado em Medicina do ICBAS- Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, diz que esta previsão é a mais expectável, embora seja “evidente que queremos que, a aparecer cancro, que seja em idades tardias”, até porque, segundo explica a Universidade de Yale, nos Estados Unidos, a partir dos 50 anos, os danos celulares começam a acumular-se no organismo e a taxa de incidência de cancro aumenta de forma acentuada nas décadas seguintes. No entanto, o médico destaca que a “maior adesão” das pessoas às consultas médicas e rastreios poderá fazer com que este aumento da incidência resulte em diagnósticos atempados e taxas de cura elevadas.

Tal como aconteceu com Angelina Jolie, também o anúncio de Kate Middleton poderá ter um impacto positivo na procura de acompanhamento médico e numa maior atenção aos sintomas que o corpo dá, reconhece o médico António Araújo (BBC Studios via Associated Press)

Causas podem ser muitas, poucas ou até mesmo nenhuma. Ainda há todo um caminho a descobrir

Embora esteja já documentada uma maior incidência de cancro em pessoas com menos de 50 anos, António Araújo diz que “não sabemos qual o impacto” dos múltiplos fatores que podem estar em jogo e que vão da genética aos hábitos alimentares, do estilo de vida ao exercício físico, da poluição à exposição de agentes, entre outros. “É possível que possa haver fatores que não conhecemos”, reconhece o médico.

O cancro nos jovens adultos - definição que a médica Daniela Macedo diz que não é consensual, pois há estudos que colocam os 39 e outros os 45 anos como limite - poderia ser resultado, sobretudo, de um fator genético, como se suspeitou durante muito tempo. Mas, embora o peso da genética exista “sempre” é numa percentagem “relativamente pequena em quase todos os tumores, ronda os 3% a 5% no máximo e já estou a exagerar nos 5%”, diz a médica.

É uma doença multifatorial, achamos que nessas idades [a causa] deveria ter a parte genética, uma herança familiar, mas cada vez mais vemos pessoas sem qualquer história familiar, sem mutações hereditárias, a desenvolver cancros”, adianta.

Mas António Araújo acredita que a genética pode, na verdade, ter um peso considerável, mesmo que ainda não tenha sido possível quantificá-lo isoladamente, tal é a quantidade de causas que podem estar envolvidas. O oncologista do Centro Hospitalar Universitário de Santo António diz que “o facto de as pessoas fazerem mais exames, irem mais periodicamente ao médico, tem um impacto positivo na descoberta destes tumores mais cedo, mas também é provável que a própria poluição atmosférica e as condições de trabalho possam ser as responsáveis por esse aumento de incidência nos mais jovens”, mas, adianta, “pode eventualmente, por razões que não conhecemos, também estar a haver alguma instabilidade genética, fragilidade genética, que os suscetibiliza mais ao aparecimento de cancro”. É preciso ainda estudar este fenómeno.

Para a médica oncologista Daniela Macedo, “há, de facto, uma mistura de várias coisas” em jogo no caso dos diagnósticos de cancro em pessoas mais jovens, sendo um deles o facto de as pessoas estarem “mais atentas e mais informadas, apesar de ainda haver alguma iliteracia em saúde”. No cancro da mama, exemplifica a médica, “há muitos casos em mulheres jovens, as mulheres estão mais atentas e vão mais ao médico, mas estamos a falar sobretudo de estadios precoces, que é o que se está a encontrar, são cancros em fase curativa de doença”. No entanto, a médica destaca que “tem-se notado uma diminuição da idade no diagnóstico”, explicando que, para tal, também contribui o facto de “a partir dos 35 anos” haver “uma preocupação por parte dos médicos de ginecologia e obstetrícia nesse sentido”.

“Mas por outro lado, nota-se que o estilo de vida e fatores ambientais estão a influenciar”, continua a médica, apontando mais uma possível causa para esta tendência mundial. E diz a ciência que o estilo de vida pode, de facto, ter um papel. Um estudo publicado em 2022 na Nature indica que quase 50% das mortes por cancro em todo o mundo são causadas por factores de risco evitáveis, como o tabagismo e o consumo de álcool. E Daniela Macedo dá o exemplo do cancro colorretal, que diz que poderá estar “relacionado com a alimentação e consumo de alimentos processados, verificamos isso em países subdesenvolvidos, que tinham um determinado regime de alimentação e que estão agora mais ocidentalizados”, fenómeno que diz que tem sido estudado e que está já “descrito na literatura”. 

O impacto da alimentação não se nota apenas na diabetes tipo 2 e na obesidade, pode mesmo influenciar negativamente o microbioma intestinal (também ele negativamente afetado pelo uso excessivo de antibióticos), o que poderá levar a caso de cancro gastrointestinal. À CNN Internacional, o médico Jalal Baig explica que “uma vez que o cancro é uma doença que se desenvolve ao longo de décadas, à medida que as alterações no ADN se acumulam e geram tumores, uma pessoa diagnosticada numa idade mais jovem pode ter sido exposta a factores de risco quando era bebé ou no útero”. 

Atualmente, a investigação também se centra neste aspeto, com estudos que associam um maior risco ao parto por cesariana nas mulheres e a uma forma sintética de progesterona utilizada para prevenir o parto prematuro”, adianta o oncologista Jalal Baig.

O cancro é uma doença multifatorial, mas os especialistas dizem que ainda não se sabe tudo sobre os diagnósticos em pessoas mais jovens, podendo a genética, meio ambiente e estilo de vida ter um peso determinante (Freepik)

Há forma de travar este cenário?

Nem por isso. Por ser uma doença multifatorial, o cancro é, por si só, complexo, muitas vezes silencioso e outras tantas matreiro. E no caso dos diagnósticos mais jovens, há fatores que se mantêm desconhecidos, sendo este um dos novos desafios da ciência: saber o porquê. Ainda assim, os especialistas ouvidos pela CNN Portugal são unânimes num aspeto: quanto mais as pessoas fizerem por serem saudáveis, melhor. E quanto mais cedo encontrarem a doença, igualmente melhor.

Perante esta constatação teremos de saber responder e dar a resposta adequada, ter médicos assistentes, médicos de família a fazer a investigação adequada quando há sintomas. As pessoas têm de aderir aos programas de rastreio e vamos ter mesmo de adaptar alguns programas de rastreio para as pessoas mais jovens, não sei como, mas teremos de o fazer em breve”, adianta o médico Luís Costa.

O oncologista dá o exemplo de como alargar os rastreios pode ser uma porta escancarada para encontrar cancros em fase inicial, muitas vezes silenciosa, referindo-se a um projeto europeu no qual o Hospital Santa Maria está envolvido e que inclui rastreios a mulheres jovens e saudáveis. Ao todo, serão analisadas cerca de 700 e o certo é que, nas primeiras 500 já vistas, foi feito um diagnóstico. “Houve um caso em que a mulher já tinha um cancro da mama, uma pessoa nova. Nem ela, nem nós sabíamos”, conta.

“Há tumores que víamos em idades mais avançadas que estão a vir para idades mais jovens, como é o caso do cancro colorretal. O rastreio que era só para os 50 anos está indicado e recomendado para que seja iniciado aos 45 anos”, diz a médica, adiantando que as análises atempadas podem ser uma forma de prevenir, pelo menos que a doença seja encontrada numa fase “precoce e curativa”.

A prevenção é, muitas vezes, um oásis, tal o jogo de sorte e azar que acompanha esta doença. Por isso mesmo, Daniela Macedo diz que o foco deve estar no diagnóstico o mais precocemente possível. “É sobretudo estar atento a sinais, a sintomas do corpo, não desvalorizar, tentar fazer o máximo de rotinas médicas e rastreios específicos.” No entanto, ir ao médico de forma regular não é a única forma de (tentar) controlar a situação. “Ter um estilo de vida saudável” é importante, sublinha a médica.

Primeiro temos de incutir nas crianças hábitos de vida saudável, boa alimentação, ingestão de água, evitar o álcool e o tabaco, praticar exercício com regularidade, isto são pormenores na vida da pessoa que farão com que, em princípio, viva mais saudável mais tempo. Depois, temos de implementar e reforçar os rastreios, temos o da mama, colorretal e colo do útero, é fundamental que seja incluído o rastreio do cancro do pulmão”, defende António Araújo, sobre um cancro que tem apresentado “um padrão diferente: era muito típico do fumador e agora é visto em pessoas não fumadoras e em idades mais jovens”, podendo “fatores ambientais, poluição e falta de exercício físico” contribuir.

O alargamento dos programas de rastreio oncológico aos cancros do pulmão, da próstata e do estômago foi incluído no Orçamento do Estado para 2024 em novembro do ano passado. Falta saber se, com o novo Executivo, esta medida se irá manter. Mas mais do que rastreios, é preciso incentivar as pessoas a aderir. No caso do rastreio do cancro do colo do útero, o médico destaca a adesão “muito grande”, no caso do da mama é já “mediana” e no do cólon e reto temos uma “adesão baixa”, tendo aderido apenas 36% das pessoas convocadas.

“É importante sensibilizarmos as pessoas”, continua António Araújo, defendendo que anúncios como o de Kate Middleton podem ajudar. “É um aspeto fundamental”, considera, partindo para um outro exemplo de como o facto de uma celebridade dar a cara pela doença pode influenciar positivamente as pessoas. “Repare que há uns anos surgiram notícias do cancro da mama hereditário na Angelina Jolie, com os genes BRCA1 e BRCA2. Isso trouxe uma consciencialização das pessoas para este facto e procurarem ativamente se eram portadoras dos genes [algo que a ciência reportou]. E levou à procura de formas de tratamento”, exemplifica o médico.

“É também importante a forma como a princesa poderá manejar a doença, poderá trazer consciencialização às pessoas, trazer, entre aspas, uma maior normalização para a existência da doença e apelar para as pessoas não terem medo de ir ao médico e encarem a doença de forma positiva. Pode transmitir aqui um sinal de esperança”, conclui António Araújo.

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