"Todas as doenças degenerativas são bastante complexas, mas o Alzheimer é sem dúvida um dos grandes desafios da humanidade"

14 out 2023, 22:00
Banco Português de Cérebros

ENTREVISTA || Ricardo Taipa, coordenador executivo do Banco Português de Cérebros, explica a complexidade de investigar a doença de Alzheimer e a diferença entre a análise da patologia em vida e após a morte. O único banco de cérebros do país já desenvolveu estudos relativos à doença e um dos focos de investigação é como a patologia de Alzheimer apresenta perfis diferentes dentro do cérebro

O Banco Português de Cérebros (PBB), sediado no piso zero do Serviço de Neuropatologia do Centro Hospitalar Universitário de Santo António no Porto, coleciona e fornece tecido cerebral com doenças neurológicas para investigação a nível nacional e internacional. Em entrevista à CNN Portugal, o coordenador executivo do PBB, Ricardo Taipa, explica a complexidade de investigar a doença de Alzheimer e a diferença entre a análise da patologia em vida e após a morte, sendo que depois do falecimento é possível obter um diagnóstico mais percetível. 

Nestes dez anos, o que já conseguiu o Banco Português de Cérebros ajudar no tratamento da doença de Alzheimer?

O mais importante foi estabelecer um programa de doação de tecido cerebral para investigação em doenças neurológicas. No contexto dos bancos de cérebros mundiais já estabelecidos somos ainda muito recentes. Apesar disso, já conseguimos desenvolver estudos relativos à doença de Alzheimer que mostraram que a neuroinflamação que se observa pode ter diferenças quando constatamos cérebros de doentes com formas precoces da doença (antes dos 65 anos), das tardias. Temos trabalhado, em colaboração com outros grupos de investigação, essencialmente na área da neuroinflamação com o intuito de perceber se esta inflamação faz parte da doença ou é algo secundário. Os dados ainda são controversos, mas levam a apontar que, numa fase inicial, pode ter um papel primordial.

Do que se trata essa neuroinflamação?

Sabemos que a neuroinflamação é um processo que acontece nos cérebros com doenças neurodegenerativas e em particular com a doença de Alzheimer. Chegámos à conclusão que tem uma assinatura própria e que a doença de Alzheimer tem uma distribuição que é típica do Alzheimer e não de outras doenças. Também tentámos perceber se a neuroinflamação era igual nos doentes que tinham Alzheimer de início precoce ou Alzheimer de início tardio e descobrimos que pode existir uma diferença, não conseguimos saber o porquê, mas existe alguma neuroinflamação de base com a idade, o que será normal, mas nos doentes com Alzheimer de início precoce essa neuroinflamação está mais exacerbada. Dá a impressão de que a neuroinflamação de início precoce poderá ter um perfil diferente. Mais recentemente temos tido colaboração com outros grupos que estão a estudar as vias pelas quais a neuroinflamação pode estar a afetar os cérebros. Sabemos que existe a neuroinflamação, mas estamos a investigar como essa neuroinflamação está a lesionar ou a destruir os neurónios. 

Qual é a média de idades dos cérebros que têm armazenados?

O nosso banco de cérebros tem um perfil de doação muito jovem, sendo a média de idades à data da morte de cerca de 68 anos. 

Têm algum cérebro jovem?

Sim, são poucos, mas temos cérebros de jovens que faleceram de formas genéticas de doenças neurodegenerativas.

Quais são as caraterísticas da doença de Alzheimer?

A doença de Alzheimer é uma doença neurodegenerativa que desenvolve a perda progressiva de neurónios em certas regiões do cérebro, como o hipocampo, que controla a memória e é o mais afetado pela doença. Mas não é só a perda de memória no Alzheimer, como também a existência de proteínas que não deviam estar ali, ou mesmo a acumulação de proteínas que estão numa posição anormal do cérebro.

Como é que o Alzheimer prejudica a memória?

O que sabemos sobre a doença de Alzheimer é que esta trata-se da morte celular, mas o processo que o leva a acontecer, apesar de muita investigação, ainda não foi descoberto. O que conhecemos é a assinatura da doença, os doentes que morrem com patologia de Alzheimer têm uma acumulação anormal de proteínas no cérebro, particularmente de tranças neurofibrilares de proteína Tau e placas de beta-amiloide. A questão que fica é como é que estas proteínas se formam e induzem a morte neuronal. Isto ainda não se sabe. A investigação anda em torno desta questão, perceber o que leva a que estas proteínas se desenvolvam no cérebro, quando não deviam se formar, e depois como lesionam os neurónios, com o objetivo de descobrirmos como travar esse processo. Este é um processo muito complexo e poderá não ter apenas uma causa que provoca a doença, mas um conjunto de fatores que fazem com que ela se desenvolva. Da mesma forma que também é variável a idade que a patologia se forma, o mais frequente são indivíduos com 70 ou 80 anos, mas há pessoas que desenvolvem a doença muito cedo, por exemplo aos 50 ou 60 anos. Não se sabe o que leva pessoas tão novas a desenvolverem a doença de Alzheimer.

Placas de beta-amiloide típicas da doença de Alzheimer

Quantos cérebros com a doença de Alzheimer têm armazenados?

Atualmente temos 30 cérebros. Nestes dez anos já foram doados cerca de 120 cérebros com diferentes patologias. Possuímos mais cérebros com Alzheimer, por isso é a doença que mais investigamos. O Banco Português de Cérebros tem uma década e agora abrange um número suficiente de amostras de tecido cerebral para fazer análises de grupo com o objetivo de comparar. Cada cérebro é um cérebro, mas num grupo pode se descobrir algo anormal. Os investigadores realizam estudos no tecido cerebral para tentar compreender estas doenças, permitindo desenvolver tratamentos futuros.

Quando receberam o último cérebro?

Na semana passada. Este mês temos tido doações quase todas as semanas.

Dos 30 cérebros de Alzheimer, quantos pertencem a homens e quantos são de mulheres?

Não sei ao certo, mas posso dar a minha opinião, acho que temos mais dadores homens, embora a diferença não seja muito significativa. Contudo, não me parece que isto seja uma tendência que se possa generalizar. Da experiência do Banco Português de Cérebros não temos um perfil de mais homens ou mais mulheres. As doações têm sido transversais em toda a sociedade, o que é bom acontecer, não obedece a um perfil demográfico.

Onde ficam guardados os cérebros?

São armazenados de duas formas: parte do cérebro congelado de imediato fica em arcas a -80º e devidamente rotulado por áreas, a outra parte do cérebro fica ou armazenada em formol, um líquido que conserva, ou fica em parafina no qual fazemos os cortes para ir ao microscópio. Todo este arquivo biológico fica no Centro Hospitalar Universitário de Santo António devidamente catalogado e armazenado no piso zero, no Serviço de Neuropatologia.

Armazenamento dos cérebros. Banco Português de Cérebros

Como é desenvolvido todo o processo?

O cérebro é examinado por neuropatologistas que irão realizar o diagnóstico histológico. Após a realização do diagnóstico, metade do tecido cerebral é congelado para uma investigação mais laboratorial e bioquímica, e a outra metade fica em formol a fixar para depois ser feito o corte diagnóstico, destinado a investigação de microscópio.

Poderia distinguir a investigação laboratorial e bioquímica da investigação de microscópio?

A investigação bioquímica trata-se da expressão de proteínas, que se faz por análises laboratoriais com recurso a técnicas de laboratório que não passam pela utilização do microscópio. Com o microscópio vemos as células e o que está depositado nelas, como os anticorpos. 

Os investigadores analisam todas as doenças ou uns estão mais ligados a umas do que outras?

O Banco Português de Cérebros funciona com técnicos e dois neuropatologistas que trabalham no serviço. Fazemos o trabalho diagnóstico, a análise de todos os cérebros. Depois existe um perfil de investigação em que uns se dedicam mais a uma área e outros mais a outra, mas aqui no Banco Português de Cérebros fazemos o primeiro trabalho que é a caraterização neuropatológica para depois fazer a investigação muitas vezes em colaboração com grupos de universidade que trabalham connosco. Há certos grupos de universidade que têm mais interesse na doença de Parkinson, outros na doença de Alzheimer e vai sempre dividindo de acordo com os grupos de interesse dos diferentes investigadores.

Que grupos de investigação trabalham convosco?

Temos colaborações nacionais, particularmente com o i3S, Instituto de Investigação e Inovação em Saúde no Porto, o ICBAS, Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto e com a Escola de Medicina da Universidade do Minho. Nestes grupos há um conjunto de pessoas que colaboram connosco e usam o Banco Português de Cérebros para as suas investigações. Além disso, também fazemos investigações com grupos internacionais, por exemplo com investigadores da Mayo Clinic dos Estados Unidos e com grupos do Reino Unido.

Quantos estudos ao todo fizeram sobre o Alzheimer?

Não tenho um número certo, mas nestes dez anos do Banco Português de Cérebros temos seguramente investigações para cima de uma dezena com grupos nacionais e internacionais, tanto americanos como europeus.

Quando se olha para um cérebro com a doença de Alzheimer percebe-se alguma diferença física?

Sim. Tipicamente os doentes de Alzheimer que têm a doença ao longo de vários anos, apresentam um perfil de atrofia cerebral mais típico da doença comparativamente com outras, nomeadamente a atrofia da região do hipocampo e da região temporal medial que é a área mais afetada ou inicialmente afetada na doença de Alzheimer. Globalmente este é o principal achado do Alzheimer e o mais diferenciador de outras patologias degenerativas.

O que difere o cérebro com Alzheimer do cérebro com Parkinson e termos de estrutura física?

São duas doenças degenerativas, querendo isto dizer que as duas desenvolvem a morte de neurónios progressiva. O que difere é o local onde o processo se inicia (no Alzheimer mais relacionado com estruturas da memória e no Parkinson em estruturas ligadas ao movimento) e no tipo de patologia de base, isto é, as proteínas.

Todos os cérebros apresentam as mesmas lesões?

Não, essa é a parte interessante. Existe uma patologia unificadora, que foi a que expliquei das proteínas típicas do Alzheimer, mas depois quer a distribuição, quer a severidade e a existência de patologias adicionais varia de doente para doente e este é um dos focos da investigação, como é que a mesma doença pode dar perfis diferentes dentro do cérebro.

Cérebro. Banco Português de Cérebros

O que é possível detetar em vida?

O diagnóstico inicialmente era feito tendo em consideração os sintomas e os estudos de imagem estrutural, particularmente a atrofia, mas percebíamos que numa fase inicial essa atrofia podia não existir. No entanto, hoje, temos um conjunto chamado biomarcadores que detetam em vida a patologia amiloide, mais recentemente a patologia Tau, que possam estar a acontecer. Estes biomarcadores podem ser detetados num líquido próprio ou pode ser feito um estudo de imagem com um marcador específico para a amiloide e que indica que determinada pessoa tem a patologia em curso. O diagnóstico da doença de Alzheimer em vida, hoje, é bastante mais robusto e seguro do que era há uns anos.

E após a morte? O que é que a análise do cérebro pode mostrar?

O que temos vindo a perceber é que muitas vezes os doentes não têm só uma patologia, ou seja, podem ter a doença de Alzheimer e os biomarcadores demonstram isso, mas depois quando analisamos o cérebro, alguns deles têm outras patologias que não suspeitávamos pela clínica e tentamos perceber se essas patologias adicionais têm algum papel na progressão, nos sintomas ou mesmo na severidade da doença ou não. E isso só se vê nos cérebros depois da morte. 

Que outras patologias os doentes de Alzheimer têm?

Existem demências que podem ser difíceis de distinguir em vida. É frequente os doentes acumularem diferentes tipos de patologias, principalmente em idades mais avançadas. Um doente pode ter patologia compatível com a doença de Alzheimer associado a outras patologias como a demência de corpos de Lewy. O estudo do cérebro permite ter este detalhe e tentar perceber qual a patologia que teve mais importância em vida e ajudar a perceber como é que conseguiremos no futuro antecipar isto.

O Alzheimer é uma das doenças neurológicas mais complexas de se entender?

Não. Há muitas doenças neurológicas bastante complexas. A doença de Alzheimer é sem dúvida uma doença muito complexa e tem claramente um padrão que a distingue das outras, que é a sua prevalência, ou seja, é uma doença muito frequente. O que a torna mais intrigante é o facto de, por ser tão frequente e ter tanta investigação em torno dela, ainda não conseguirmos perceber como é que a doença funciona. É natural que as doenças mais raras sejam mais difíceis de entendermos pois não há tanta gente a investigar sobre elas. Nesse sentido, a doença de Alzheimer é mais complexa dada a sua prevalência e a continuidade de investigação mundial que foi feita nas últimas décadas. Onde estamos hoje demonstra bem o quão multifatorial e complexa é esta doença. Não consigo dizer que é a doença neurológica mais complexa porque todas as doenças degenerativas são bastante complexas, mas é sem dúvida um dos grandes desafios da nossa humanidade. Todas as doenças neurológicas envolvem processos e mecanismos muito díspares, complexos e por isso o sistema nervoso continua a ser um grande desafio, assim como as suas doenças.

Equipa do Banco Português de Cérebros

As pessoas estão a desenvolver mais esta patologia?

Não há muito essa perceção. O que mostra é que, com o envelhecimento da população, o número de doentes com a doença de Alzheimer vai aumentando, mas será em relação com a idade e não porque a doença se está a tornar por efeitos ambientais mais comum. Contudo, há um conjunto de doentes que aparentemente estão a ser diagnosticados em idades mais precoces, mas ainda não sabemos se realmente a doença está a aumentar em idades mais jovens ou se, agora, devido ao facto de termos uma capacidade diagnóstica maior, o estamos a detetar como tal. Antigamente já podia existir, mas como não era diagnosticado não se sabia. Há uma dúvida se realmente nas idades mais jovens está a aumentar o número de doentes e esta é uma investigação interessante para se fazer.

Qual é a estimativa de pessoas que sofrem desta patologia em Portugal?

Perto de 200 mil pessoas.

As pessoas aderem muito à doação?

Tive essa dúvida no início do projeto quando estava em Inglaterra. Foi lá que tentei adaptar a logística, as burocracias e a clínica laboratorial. A sociedade portuguesa é diferente da sociedade anglo saxónica, por isso tinha alguma incerteza. Havia a ideia de os portugueses acharem estranho, mas foi totalmente o contrário. Há pacientes que seguem consultas há muitos anos e percebem a importância de saber o que se passa e como é possível evoluir relativamente a determinadas doenças.

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