Serhiy soube pelo Twitter que a mulher e os filhos morreram num ataque russo: a história de uma fotografia "que representa um crime de guerra"

12 mar 2022, 10:00

Todos esperavam que a fuga de Irpin fosse segura. Tetiana e os filhos Mykyta e Alisa foram até onde puderam. Foram apanhados, assim como o voluntário que os ajudava, por um ataque russo. Serhiy, marido de Tetiana e pai de Mykyta e Alisa, quer agora que o mundo conheça a história do que aconteceu

Não era a primeira vez que Tetiana Perebyinis fugia da guerra. Em 2014, quando vivia em Donetsk, as forças separatistas fizeram-na, a ela e ao marido Serhiy, pegar nos dois filhos e mudar-se para Irpin, nos arredores de Kiev.

No domingo passado, aos 43 anos, Tetiana viu-se obrigada a repetir a decisão num conflito de maior dimensão. Desta vez, sem o marido, que estava a tratar da mãe doente numa outra cidade a leste da Ucrânia.

A primeira tentativa tinha sido no sábado, mas os tanques nas ruas fizeram-na recuar - com Mykyta de 18 anos e Alisa de nove – para mais uma noite no abrigo. Na casa onde viviam já não havia condições. No bunker, em conversas por telefone com a família, Tetiana procurava fazer piadas com a situação para tornar o ambiente mais leve.

Mas o medo era real: o filho dormia durante o dia para estar vigilante à noite, quando os ataques tornavam tudo mais incerto. E foi a força dos bombardeamentos que os fez, juntamente com os pais de Tetiana, voltar a tentar a fuga no domingo, 7 de março.

A mulher conduziu o máximo que conseguiu mas, ao chegar à ponte destruída onde muitos outros procuram fugir da cidade, teve de seguir a pé. E foi então que o pior aconteceu: Tetiana, Mykyta e Alisa – e o voluntário da igreja que os acompanhava, Anatoly Berezhnyi, de 26 anos, que chegou a ser identificado como o pai - foram apanhados no meio de um ataque de morteiro.

Do outro lado da rua

Naquele domingo, Lynsey Addario foi até Irpin porque estava previsto um corredor para a saída de civis. “Fui para um local que achava seguro, porque era uma retirada de civis.” Mas os militares ucranianos tinham-na avisado de que o perigo era real, de que havia ataques a acontecer fora de bases militares. Como fotógrafa, Lynsey interiorizou que é preciso ver para acreditar. E comprovou-o da pior maneira.

Quando se deu o ataque, o corpo da fotojornalista foi de imediato coberto por um elemento das forças ucranianas. Mas ela sentiu o impulso de imediato: queria fotografar. Ao chegar perto do corpo de Tetiana, percebeu que também havia crianças. “Pensava que, por mais horrível que aquilo fosse, tinha de documentá-lo. Porque vi uma mãe e dois filhos a serem atingidos de uma forma intencional”, contou numa entrevista a Anderson Cooper (CNN).

Noutros momentos, Lynsey tem descrito a fotografia de uma forma emocional. Também ela estava lá, sabendo que por sorte não foi atingida. “É a coisa mais desoladora que já vi. Esta foto representa, para mim, um crime de guerra.”

Os retratos da certeza

A fotografia foi capa do The New York Times. Outras publicações, como a Folha de São Paulo, replicaram-na. Nas redes sociais, foi energeticamente partilhada. A discussão lançou-se sobre o que se deve ou não partilhar de uma guerra. Um retrato explícito, com os rostos de quem morreu à mostra. A fotojornalista e o jornal fizeram o mesmo exercício antes de publicarem o registo, chegando a uma conclusão: “Não se pode higienizar a guerra” quando há civis a morrer.

A fotografia que chegou até Serhiy Perebyinis terá sido outra, dos minutos que se seguiram, onde os panos cobrem já a identidade de Tetiana, Mykyta, Alisa e Anatoly. Porque foi outro pormenor que o fez perceber que aquela família deitada no chão, morta, era dele: as malas de viagem. “Reconheci as malas e percebi que eram eles”, contou ao The New York Times, para que o mundo saiba o verdadeiro impacto da guerra na Ucrânia.

Antes dessa confirmação, Serhiy tinha tentado contactar a família das mais variadas maneiras. Como alguém que trabalha com tecnologia, e porque não conseguia que nenhum dos três lhe atendesse as chamadas, tentou a localização dos telemóveis. Primeiro não apareceram resultados. Pensou que poderia ser um problema de rede no bunker, de onde chegou a receber sinal. Mas quando a localização passou a ser a de um hospital, a preocupação tomou conta de Serhiy.

O perdão de quem não tem culpa

Conheceram-se no secundário, mas só se tornaram um casal anos depois, ao cruzarem-se na noite ucraniana. Tetiana trabalhava para a mesma empresa de tecnologia que o marido, que lhes ofereceu ajuda para que escapassem para a Polónia mal a guerra começou. Mas a mulher adiou o mais que pôde a ida por causa da mãe, que sofre de alzheimer. Os pais de Tetiana seguiam um pouco mais atrás e acabaram por não ser atingidos no ataque russo.

A família contava com o apoio de um grupo da igreja. O plano era ir até Kiev e, a partir daí, para um outro lugar mais seguro. Serhiy procura uma culpa que não tem, por estar a proteger a mãe quando a restante família estava em fuga. “Disse-lhe 'perdoa-me por não vos ter conseguido defender'.”

A vida deles, como todas, tinha muitos momentos bons para contar. Como as férias na neve na Geórgia, de onde tinham voltado há pouco tempo. Numa frase, Serhiy resume como se queriam: “Mobilámos três apartamentos e não discutimos uma única vez”.

Não os esquecerá. Nem ele nem o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, que prometeu vingar as suas mortes. “Não vamos perdoar. Eles estavam só a tentar sair da cidade, escapar.” E foram apanhados por uma guerra que não era deles.

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