Especialistas dizem que este aumento de diagnósticos é inferior à realidade, mas expectável face à natureza cíclica da doença. No entanto, rejeitam alarmismos e apelam à importância de aumentar a testagem
O cenário que se vinha a assistir na Europa é agora também uma realidade em Portugal: o número de diagnósticos de tosse convulsa disparou, passando dos 22 diagnosticados em todo o ano de 2023 para 200 detectados em apenas quatro meses de 2024. O pico de infeções já terá passado, mas os especialistas com quem a CNN Portugal conversou defendem um aumento da testagem e a avaliação de um reforço vacinal.
Carlos Robalo Cordeiro, diretor de serviço de pneumologia do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC), crê que estes 200 casos estão “dispersos”, descartando a ideia de que possa estar em causa um surto. Manuel Ferreira de Magalhães, pediatra no Centro Materno-Infantil do Norte e Hospital Lusíadas Porto, também valida a ideia de que os casos estão espalhados pelo país e esclarece que esta subida de diagnósticos “era esperada”.
“A bactéria que causa a tosse convulsa - Bordetella pertussis - vem, historicamente, em surtos a cada três, cinco anos”, continua o médico. Embora não consiga precisar o número de casos que já lhe passaram pelas mãos nestes primeiros meses do ano, reconhece que, “sim, houve um aumento”, seja em “internamento, ambulatório ou urgência”, mas apressa-se de imediato a dizer que “o pior já passou” e que a situação vai “agora estagnar”.
A notícia dos 200 casos de tosse convulsa nos quatro primeiros meses de 2024 chegou esta quarta-feira pelo Observador. Destas duas centenas de casos, 86% dos diagnósticos foram feitos em crianças, dos quais 21% em crianças entre os 10 e 13 anos e 20% em bebés com menos de um ano. A CNN Portugal tentou obter dados sobre a localização dos casos junto da Direção-Geral da Saúde, que disse ter apenas disponível a informação enviada às redações sobre o número total de casos.
Número de casos é "bastante mais elevado"
Para o pediatra Manuel Ferreira de Magalhães, que também dá consultas no Hospital Lusíadas, os números que a DGS apresentou “são subnotificados”, explicando que “a maioria” das pessoas infetadas com a bactéria e com sintomas de tosse convulsa “não chega a fazer o teste”, uma vez que a doença pode ser ligeira em adolescentes e jovens adultos. “O número é bastante mais elevado”, continua.
Hugo Rodrigues, pediatra na Unidade Local de Saúde do Alto Minho, e que faz ainda parte do Estudo Clínico-Epidemiológico Multicêntrico da Tosse Convulsa em Idade Pediátrica em Portugal, reforça o lado expectável deste aumento de casos, não apenas pela natureza da bactéria, mas por estar a ser “um fenómeno europeu, generalizado”, em que a maior circulação de pessoas - incluindo de países com taxas de vacinação menores - “justifica sempre” a maior circulação e propagação de agentes infecciosos.
O médico de Viana do Castelo, que é ainda autor da página Pediatra Para Todos, acredita que este fenómeno “está subdiagnosticado” e que seria interessante aumentar a testagem e, sobretudo, o acesso ao teste, uma vez que há hospitais onde “a pesquisa deste microrganismo não é feita” ou cujo resultado apenas é obtido dias depois. “E antes disso já tivemos de medicar”, atira.
Carlos Robalo Cordeiro revela que em Coimbra não tem notado um aumento de casos de tosse convulsa, mas conta que ainda esta quinta-feira esteve reunido com uma médica de uma unidade de saúde familiar da região que está a acompanhar uma família estrangeira, a residir em Portugal, em que todos os elementos foram diagnosticados com tosse convulsa. “Só aqui tem três, quatro casos”, diz, sem adiantar pormenores, mas referindo que é provável que haja agregados familiares infectados.
“Há uma certa oscilação desta doença, é endémica e a sua prevalência oscila muito. Podemos estar anos sem prevalência e depois haver um pico, como acontece este ano. É normal que [estes aumentos de casos] aconteçam com determinada periodicidade e não todos os anos”, continua Carlos Robalo Cordeiro, também diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), adiantando que aumentar a testagem pode ser importante nesta fase. “Não sei se não valeria a pena testar mais, assim poderíamos chegar a mais diagnósticos e promover uma maior prevenção” da disseminação da doença, diz o médico.
Carlos Robalo Cordeiro considera ainda que este aumento de casos “tem importância clínica, sobretudo para as crianças que ainda não foram vacinadas”, mas descarta um cenário de pânico. “É um motivo de alerta, não de alarme”, atira, dizendo que, por isso mesmo, a DGS emitiu recomendações às entidades de saúde para a “tripla necessidade” que este cenário traz: “testar o mais possível situações suspeitas, notificar obrigatoriamente e promover a vacinação, nomeadamente de grávidas”.
Reforço vacinal poderia ser travão
A vacinação é o maior escudo-protetor contra esta doença infecciosa e a cobertura vacinal em Portugal é bastante satisfatória, dizem os especialistas. Segundo o Relatório Síntese Anual da Vacinação 2024, com dados referentes a 2023, a cobertura vacinal da 5.ª dose de vacina combinada (que inclui imunidade contra a tosse convulsa) atingiu os 95% e estima-se que 85% das mulheres grávidas elegíveis tenham sido vacinadas. Ainda assim, esta elevada taxa de crianças e grávidas vacinadas não se mostrou suficiente para travar um aumento de casos, que o pediatra Manuel Ferreira Magalhães diz ser expectável tendo em conta o cenário europeu e o facto de esta doença infecciosa, tal como tantas outras, dar origem a surtos cíclicos. O próprio Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) explica que “a cada três a cinco anos são esperadas epidemias maiores, mesmo com elevada cobertura vacinal”.
A vacinação contra a tosse convulsa acontece cinco vezes durante a infância. A primeira dose é administrada aos dois meses de idade (numa vacina de ação tripla contra a difteria, tétano e tosse convulsa), a segunda aos quatro meses (enquadrada na vacina pentavalente), a terceira aos seis meses (na vacina hexavalente), a quarta aos 18 meses (novamente enquadrada na vacina pentavalente) e a quinta aos cinco anos de idade. Depois, em cada gravidez, é dada às mulheres uma dose única da vacina contra tétano, difteria e tosse convulsa (Tdpa), em doses reduzidas.
Alguns países europeus fazem um reforço da vacinação contra a tosse convulsa e o pediatra Hugo Rodrigues diz que poderia ser importante apostar num reforço, até porque uma boa parte dos casos agora diagnosticados são em crianças entre os 10 e 13 anos, que, apesar de apresentarem sintomas ligeiros da doença, são “veículos de transmissão” para os mais vulneráveis. “Seria importante para travar as cadeias de transmissão”, atira.
Já Manuel Ferreira de Magalhães diz que a adoção deste esquema em Portugal teria de ser avaliado, até porque, esclarece, “o grande problema da tosse convulsa está nos bebés pequenos e nos idosos” e, por isso, “a acontecer, os reforços deveriam ser mais nestas faixas etárias”.