Manuel Beja foi escolhido para representar o Estado, mas acabou por ser ultrapassado pela tutela. A audição com o "chairman" da TAP em nove pontos

12 abr 2023, 01:06

Manuel Beja entrou no Parlamento a garantir que tinha mantido o silêncio por “dever institucional”. Mas, na hora de quebrá-lo, disparou em várias direções, em especial na do Governo

1. Saída de Alexandra Reis “poderia e deveria ter sido evitada”

Manuel Beja não tem dúvidas: Alexandra Reis saiu da empresa por “vontade” da presidente executiva Christine Ourmières-Widener. Mas, desse processo, lava as próprias mãos. Passou tudo pela francesa: da escolha dos advogados ao contacto com o Governo, passando pelos valores. E a decisão foi “tomada pelo acionista”: o Estado.

A tensão entre Alexandra e Christine foi “crescendo ao longo do mandato”, mas não punha em causa “a execução do plano de reestruturação”. Manuel Beja diz que tentou sanar o conflito, sem sucesso. “Acreditei na altura, e continuo a acreditar que a saída poderia e deveria ter sido evitada”.

A 25 de janeiro de 2022 – já a CEO andava a negociar com o Governo desde o início do mês –, o presidente não executivo da TAP diz ter sido informado da saída de Alexandra Reis por Christine. Já imaginava que fosse acontecer, embora não consiga identificar o “ponto zero”.

E, a 4 de fevereiro, de “manhã cedo”, a CEO da TAP questionou-o sobre se estava disponível para assinar o documento que formalizava a saída de Alexandra Reis nesse mesmo dia. “No dia 4, conheci o texto do acordo.”

Sobre o que se passou antes, Manuel Beja diz não ter feito parte. Mas, se estivesse a par de todos os contornos deste caso na altura, assegura agora, não teria assinado o documento. “Se conhecesse as normas de destituição, não só não teria assinado o acordo, como teria invocado o estatuto de gestor público para não prosseguir com essa saída”, garantiu várias vezes.

Pôs o nome no documento porque essa era a vontade do acionista e lhe devia lealdade. E porque sabia que, se não fosse a assinatura dele, bastaria a de outro acionista para o polémico acordo ser formalizado.

2. Há “ingerência” do Governo na TAP: a tutela “perdeu o norte”

Manuel Beja era o representante escolhido pelo Estado para a companhia aérea. Mas, pela versão que contou aos deputados, o Estado – ou, antes, o Governo – não queria grandes relações com ele.

A tutela política da TAP “começou muito bem, mas perdeu o norte ao longo do caminho”. “O tempo foi diluindo as boas intenções. O princípio da não interferência foi sendo substituído pelo controlo”. Quando havia polémica e o assunto se tornava mediático, os ministérios das Infraestruturas e das Finanças queriam controlar tudo. “Ingerência” do Governo, sim, mas nunca diretamente do primeiro-ministro, garantiu.

Só que quando havia decisões para tomar sobre o dia a dia da empresa, as respostas tardavam a chegar. Entre outras, às propostas para melhorar o modelo de governança da TAP, “sem resultados”. Mas Manuel Beja mantém a esperança de que ainda sejam adotadas.

Foi também por decisão do acionista que o conselho de administração que lidera, explicou, foi afastado do processo de privatização da TAP, que ficou concentrado na CEO e no administrador financeiro Gonçalo Pires. E porquê? “A resposta que recebi desse tema é que era do interesse do acionista.” Galamba ter-lhe-á dito que, se quisesse pormenores, teria de consultar o acionista – o mesmo que o tinha escolhido como seu representante.

(António Cotrim/Lusa)

3. Tentou quatro vezes falar com Pedro Nuno Santos sobre a saída de Alexandra Reis

Um dos governantes que cultivou o silêncio na relação com Manuel Beja foi o então ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, com quem o presidente do conselho de administração da TAP tentou conversar sobre a saída de Alexandra Reis. Não uma, mas quatro vezes.

“Procurei chegar à fala, por quatro ocasiões, com o ministro Pedro Nuno Santos, sem sucesso. À época, não era do meu conhecimento a existência dos contactos entre a presidente da comissão executiva e o acionista sobre este tema, que foram posteriormente revelados”, contou aos deputados.

Por muito que fosse mantendo o contacto com o secretário de Estado Hugo Santos Mendes, “era claro que não era o decisor”.

Foi por isso que também não estranhou que Hugo Santos Mendes fizesse parte da equipa que ajudou a preparar as respostas exigidas por Pedro Nuno Santos e Fernando Medina sobre a indemnização a Alexandra Reis, sendo um forte conhecedor do processo.

Contudo, nesse processo de respostas, haveria um outro nome na equipa: Guilherme Dray, ex-chefe de gabinete de José Sócrates, contratado pela TAP para negociar com os sindicatos. Manuel Beja também não estranhou essa presença, dado o conhecimento dele na área do direito laboral. “É alguém que não hesita em dizer quando discorda. Fiquei muito satisfeito por o ter nessa conversa”.

4. Só houve reunião com Medina oito meses depois de a ter pedido

Pedro Nuno Santos não foi o único a cultivar a falta de respostas aos pedidos de Manuel Beja, segundo o próprio. Em novembro de 2021, o “chairman” da TAP enviou uma carta a Pedro Nuno Santos e a João Leão a alertar para o perigo de potenciais conflitos de interesse no conselho de administração devido ao número insuficiente de não executivos e para o facto de as administrações da TAP SA e TAP SGPS serem as mesmas.

Só “oito meses” depois, é que o substituto de João Leão, Fernando Medina, o recebeu numa reunião – já o caso de Alexandra Reis tinha sido tornado público. A reunião, essa, foi agendada pelo atual ministro das Infraestruturas, João Galamba.

Mas fonte conhecedora do processo no ministério das Finanças garantiu à CNN Portugal que, apesar das queixas de Manuel Beja, “o acompanhamento da TAP no ministério está delegado no secretário de Estado do Tesouro (SET)”, com quem o “chairman” da transportadora aérea se reuniu. “Isto para além de oito outras reuniões do SET com membros do conselho de administração da TAP”.

O próprio Manuel Beja havia de confirmar esta versão, admitindo duas reuniões com Alexandra Reis enquanto esta era secretária de Estado do Tesouro. E, se a princípio havia “dúvidas” de que seria ela a tutelar a TAP, elas acabaram dissipadas.

Mas há mais queixas nesta relação com as Finanças, onde os canais de comunicação ficaram “menos fluídos” com a passagem de Leão para Medina: passaram “18 meses desde a primeira vacatura de [administradores] não executivos” e, até agora, “nenhum foi nomeado” por falta de resposta do executivo às propostas que apresentou.

Ao longo da audição, Manuel Beja destacou vários momentos em que a tutela financeira acabou por bloquear a ação da TAP: “houve vários momentos em que a vontade de fazer acontecer do ministério das Infraestruturas era desacelerada pelo imobilismo do Ministério das Finanças”.

E há um exemplo claro desta realidade: a devolução da indemnização de Alexandra Reis está “à espera de uma orientação da DGTF – Direção-Geral de Tesouro e Finanças”. Mesmo que a antiga administradora já tenha pedido três vezes indicações sobre como deve proceder.

(António Cotrim/Lusa)

5. PS usa parecer sobre contratos de gestão e estatuto do gestor público para “proteger o Governo”

A audição haveria de ser marcada por uma descoberta paralela cultivada pelo Partido Socialista: um parecer da Linklater a dar conta de que a TAP se enquadrava no âmbito do estatuto de gestor público, invalidando a solução encontrada para Alexandra Reis. O socialista Carlos Pereira fez mesmo uma declaração, no exterior da comissão de inquérito, enquanto ela decorria, para apontar culpas a Manuel Beja, mas sobretudo à CEO: “ou omitiu ou não falou a verdade nesta comissão, o que é verdadeiramente grave”.

No interior da comissão, o deputado informou que esse parecer tinha sido enviado às tutelas, embora não tenha conseguido garantir que os governantes estariam a par do seu conteúdo.

“Que estávamos ao abrigo do gestor público era do nosso conhecimento. Que no caso da TAP e da Caixa Geral de Depósitos há exceções que não se aplicam, é do conhecimento público. O limite dessas exceções têm-nos suscitado dúvidas”, argumentou Manuel Beja.

“Se tivesse a consciência da aplicabilidade do estatuto de gestor público no momento em que assinei o acordo, teria usado isso para impedir a saída de Alexandra Reis. Não resiste ao menor teste de lógica esse tipo de assunções”, garantiu.

Então, porque surge, nesta altura, este argumento socialista do parecer da Linklaters? Manuel Beja foi categórico na resposta: “Como tem sido evidente, o papel do grupo parlamentar do PS não é o papel de escrutínio, é de proteção do Governo. Poderá ser a melhor forma que têm para protegerem o Governo”.

Mas não foi a única vez que insinuou que os documentos estavam a ser usados em benefício do Governo em toda esta polémica da TAP. Para o “chairman” da companhia aérea, há também o relatório da Inspeção-Geral de Finanças, que precipitou a sua demissão. Fernando Medina e António Costa, disse, “quiseram colocar a IGF como o decisor neste processo”.

6. Ainda não sabe se vai contestar a demissão por “conveniência de política partidária”

Manuel Beja foi informado, na manhã da sua demissão, de que seria afastado da TAP. Foi João Galamba quem lhe ligou, mas sem “qualquer referência” à possibilidade de ser uma saída por justa causa. Agora, mais de um mês depois, continua em funções. E ainda aguarda os fundamentos da demissão para decidir se vai contestá-la – tal como a CEO.

O “chairman” da TAP assegura que vai defender a sua “honra profissional", perante quaisquer conveniências políticas que este processo possa encerrar. Porque a sua demissão “injustificada” “só pode ser interpretada à luz de fatores de conveniência de política partidária”.

7. CMVM vai abrir um processo contraordenacional contra a TAP

Já a audição ia longa quando Manuel Beja foi questionado sobre o texto enviado à CMVM, dando conta da saída de Alexandra Reis – sobre o qual o regulador dos mercados viria a exigir uma correção, para mostrar que a saída tinha sido uma vontade da empresa.

Manuel Beja revelou que a CMVM abriu um processo contraordenacional contra a TAP, uma informação que apurou cerca de uma hora antes do início dos trabalhos no Parlamento.

Sobre o texto enviado à CMVM, insistiu que foi acertado entre os advogados, tendo-se limitado a “copiar e colar” na hora de partilhar com o conselho de administração e a comissão executiva – incluindo o administrador financeiro Gonçalo Pires, que fez essa comunicação ao mercado.

(António Cotrim/Lusa)

8. “Perdi a paciência” com CEO e o uso privado dos motoristas da TAP

Foi através de uma conversa informal que Manuel Beja diz ter descoberto que havia motoristas da TAP ao serviço dos familiares da CEO. A situação gerou-lhe “perplexidade”. Christine Ourmières-Widener mostrou-se disponível para pôr fim à situação, depois encarou-a como “perseguição pessoal” e terá depois tentado justificar a prática.

“Foi das poucas situações em que perdi a paciência. Achei que estava a tentar justificar o injustificável”, confessou. E classificou: “revelava uma liderança pouco servidora” dada a situação difícil da empresa.

9. “O senhor deputado está a mentir”: a resposta a um caso de alegado assédio moral na TAP (e a tensão que ele provocou)

Manuel Beja garantiu que nunca teve interferência em qualquer processo disciplinar. Mas o Chega, através de Filipe Melo, queria ir mais além, recuperando o caso de um técnico de manutenção que se viu “forçado a assinar um acordo de rescisão” e que terá acabado “colocado dois meses numa sala vazia, num piso vazio”.

O “chairman” da TAP disse não reconhecer o caso de assédio laboral na TAP, mas condenou os seus princípios.

 “E se eu lhe dissesse que almoçou com este trabalhador que lhe reportou essa situação?”, ripostou Filipe Melo. A resposta foi imediata: “Digo que o senhor deputado está a mentir”.

O clima tornou-se tenso na comissão de inquérito, com o deputado do Chega a ameaçar que não continuava a audição enquanto não recebesse um “retratamento público”.

Essas desculpas não chegaram. Mas os trabalhos seguiram, com a intervenção do presidente da comissão de inquérito Jorge Seguro Sanches.

Manuel Beja admitiu que teve dois almoços com técnicos de manutenção da TAP. Mas, em nenhum deles, garantiu, lhe falaram de “intimação” nem de “depressões”.

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