Pressões políticas, reuniões secretas, negócios com familiares, o voo de Marcelo: o que se descobriu em apenas quatro audições sobre a TAP

9 abr 2023, 07:59
A presidente executiva da TAP, Christine Ourmières-Widener, na Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP (Lusa/António Cotrim)

A trama na TAP está cada vez mais densa

Esta semana ficou marcada pela ida da CEO da TAP e de Alexandra Reis ao Parlamento. O que se ficámos a saber até agora: Alexandra Reis era uma força de bloqueio aos planos de Christine Ourmières-Widener, a CEO decidiu afastá-la e comunicou a intenção ao Governo, o Governo autorizou e a saída efetivou-se. Alexandra Reis havia de seguir o seu caminho na NAV e na secretaria de Estado do Tesouro, onde entrou sem falar da indemnização da TAP. Só que, ao tornar-se pública a compensação de 500 mil euros, o Governo tentou sacudir a água do capote. Mas ainda há muito mais para desvendar. Os deputados ainda vão ouvir o  "chairman" da TAP, Manuel Beja, e o presidente da CMVM, Luís Laginha de Sousa e, depois, ainda vão decidir quem poderá ser questionado a seguir, de entre uma lista com quase 60 personalidades entregue pelos deputados.

Porque foi despedida Alexandra Reis?

Para Christine Ourmières-Widener, Alexandra Reis “não tinha o perfil necessário”, “estava desajustada” e revelava um “desalinhamento” face ao plano de reestruturação. Mas quais eram efetivamente essas divergências? Nunca concretizou aos deputados. A vontade de fazer mudanças na comissão executiva da TAP foi comunicada ao Governo a 4 de janeiro. O processo prosseguiu. E só a 25 de janeiro é que Alexandra Reis foi informada da saída. “Quero que saias da empresa”, disse-lhe a CEO, depois de explicar que iria distribuir os pelouros da administradora.

Mas, tirando isto, Alexandra Reis confessou não saber os reais motivos da saída. Pelos argumentos traçados pela antiga administradora, é fácil perceber que esta era encarada como um ponto de bloqueio ao plano estratégico que a CEO tinha para a empresa. Porque Alexandra Reis se mostrou reticente quanto à escala da operação traçada para a TAP, a mudança de sede para o Parque das Nações com custos adicionais ou o recrutamento de quadros estrangeiros “mais caros”. “Saí por vontade da CEO. Foi uma destituição por conveniência. Razão pela qual eu teria direito a uma indemnização”, argumentou aos deputados. Para Alexandra Reis, não se trata de uma questão de “perfil” ou de “desalinhamento”. Como seria de esperar, duas versões contraditórias, que não encaixam.

Foi acordo ou renúncia?

Era uma das questões que mais importava clarificar: Alexandra Reis foi despedida ou despediu-se? Nem uma nem outra. Ou melhor, as duas. Nisto, a versão da CEO exonerada e da antiga administradora encontram-se. “Tratou-se de uma renúncia precedida de um acordo”, afirmou Alexandra Reis. Para a francesa também foi claro: foi atingido um acordo, que ditou a renúncia. Por isso, insistiu, a TAP "não mentiu" à CMVM, o regulador dos mercados. Os termos do comunicado, enviado pelo administrador financeiro Gonçalo Pires à CMVM, faziam parte integrante do acordo alcançado entre os advogados da TAP e de Alexandra Reis. Mas a informação teria de ser corrigida pela TAP, por exigência da CMVM, para deixar claro que a saída da administradora “ocorreu na sequência de um processo negocial de iniciativa da TAP”.

(António Cotrim/Lusa)

CFO sabia ou não do acordo de saída de Alexandra Reis?

Uma vez mais, as versões diferem. Para a Inspeção-Geral de Finanças (IGF), Gonçalo Pires não sabia do acordo nem dos termos para a saída de Alexandra Reis da TAP. “Toda a negociação terá ocorrido à margem do conselho de administração e da comissão executiva”, concretizou o inspetor-geral António Manuel Ferreira dos Santos. E a mesma versão foi reiterada pelo administrador financeiro quando foi ouvido pelos deputados: “Não tive qualquer envolvimento na elaboração do acordo para a saída de Alexandra Reis”. Desse acordo, reconheceu, só soube “informalmente” poucos dias antes de se efetivar. Mas, mesmo dizendo estar fora do processo, não deixou de reconhecer que esse cenário era do conhecimento geral.

Mas Christine Ourmières-Widener tem outra versão: a de que Gonçalo Pires sabia da saída de Alexandra Reis desde o início: “Ele estava ciente do projeto para a nova organização”.

De quem partiu a iniciativa na “reunião secreta” antes da audição da CEO no Parlamento?

A revelação, feita por Christine Ourmières-Widener, deixou os deputados perplexos: a 17 de janeiro, na véspera de ser ouvida na comissão de Economia, para dar explicações sobre o caso Alexandra Reis, teve uma reunião com vários socialistas. Entre eles, Carlos Pereira, o deputado que a confrontava agora na comissão parlamentar de inquérito à gestão da TAP.

A gestora francesa afastou os receios dos deputados de que esse encontro tivesse servido para “combinar perguntas” para a audição do dia de seguinte. E de quem partiu a iniciativa? Do Ministério da Infraestruturas, respondeu. Dois dias depois da audição da CEO, o gabinete de João Galamba sentiu necessidade de se explicar, com uma versão que contraria a da francesa: foi a TAP quem demonstrou “interesse em participar na reunião com o Grupo Parlamentar do PS”.

Ainda assim, as duas partes estão de acordo noutros aspetos: a reunião não serviu para combinar perguntas e não havia nenhum governante presente.

Quem sabia, no Governo, da indemnização a Alexandra Reis?

Depois de quatro audições, a resposta parece clara: o ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos e o seu secretário de Estado Hugo Santos Mendes. Com “inegável intervenção no processo”, disse o líder da IGF, tirando também responsabilidades a todo e qualquer responsável no ministério das Finanças. Já segundo Christine Ourmières-Widener, o primeiro passo foi numa reunião de 4 de janeiro, onde foi comunicado o “desalinhamento” com Alexandra Reis, e a luz verde de Pedro Nuno Santos para as mudanças.

Foi esta tutela que, segundo a gestora, começou por considerar os valores iniciais “muito altos”, a dar indicação para seguir as negociações e aprovar o valor final, de 500 mil euros. A gestora foi então informada, por Hugo Santos Mendes, que Pedro Nuno Santos aprovou o pagamento e que podia “fechar” o processo. Deste modo, a francesa insistiu que a decisão final não é dela. “Não me parece que se possa dizer que eu tomei a decisão. Eu coordenei o processo. Sou a CEO, mas não sou portuguesa, contratei advogados. Mas não tomei a decisão”.

E Alexandra Reis teria abdicado da indemnização se o ministro lhe tivesse respondido?

Segundo Alexandra Reis, teria deixado o mandato como administradora da TAP “sem contrapartida” se fosse essa a vontade do ministro Pedro Nuno Santos. Ou seja, teria abdicado dos 500 mil euros de indemnização – que, insiste agora, tem direito, porque, além da saída da administração, foi também afastada como trabalhadora da TAP.

Isto porque, a 29 de dezembro de 2021, o ministro Pedro Nuno Santos recebeu um email de Alexandra Reis a colocar o lugar à disposição, após a mudança da estrutura acionista na TAP. Um ato de cortesia, descreveu. Desse contacto, revelou, nunca recebeu resposta.

“Entendi que era ética e institucionalmente correto mostrar a minha disponibilidade para continuar com ânimo reforçado, mas caso fosse essa a vontade do senhor ministro e dos senhores secretários de Estado, estaria disposta a sair da empresa”, garantiu.

Mas, menos de um mês depois do email, Alexandra Reis estava a pedir à TAP uma indemnização de quase 1,5 milhões de euros.

(António Cotrim/Lusa)

Houve pressão para Christine não apresentar lucros antecipados na TAP?

Também nesta questão, as versões diferem. Gonçalo Pires explicou que a decisão de anunciar os lucros da TAP por comunicado, sem uma conferência de imprensa com a CEO, que já tinha sido demitida pelo Governo, foi uma sugestão dele próprio.  “O momento ‘sui generis’ que a TAP atravessa obrigava a alguma discrição na apresentação de resultados”, argumentou.

Foi essa posição que expressou ao Governo: em concreto ao ministro das Infraestruturas, João Galamba, que é também seu amigo pessoal. Da tutela haveria de receber um email a confirmar as “instruções” pedidas sobre “a data e o conteúdo”. Ou seja, Galamba confirmou que o esforço devia concentrar-se no comunicado à CMVM e numa apresentação aos investidores. Mas Christine Ourmières-Widener tem outro entendimento. Quando confrontada sobre se existiram pressões políticas para que ela não desse a cara pelos lucros alcançados antes do tempo, foi categórica: “Não sou fluente em português. Mas esse foi o meu entendimento”.

Medina convidou Alexandra Reis para o Governo sem saber da indemnização da TAP?

O convite para a secretaria de Estado do Tesouro chegou poucos dias, “três ou quatro dias antes”, da tomada de posse. Fernando Medina ligou a Alexandra Reis, dando-lhe conta da reestruturação que ia levar a cabo no ministério. “Fui fazendo questões, fui colocando as minhas dúvidas. E ele, nessa conversa, deu-me nota de que gostaria de me convidar. Tive de fazer a minha ponderação. Estava há cinco meses na NAV, contente pelos resultados que estávamos a atingir”, recordou Alexandra Reis.

Mas esta explicação inicial não satisfez os deputados, que estranharam que nada tivesse sido referido quanto a uma das empresas por onde Alexandra Reis tinha passado e que iria agora tutelar, a TAP. A antiga administradora assegurou que a conversa teve traços mais gerais, não entrando em detalhes sobre nenhuma empresa tutelada pelo ministério das Finanças. E clarificou: “Não falei sobre o meu processo de saída da TAP nem sobre a indemnização”.

Christine Ourmières-Widener soube que foi despedida pelas televisões?

A fazer fé na versão da CEO da TAP, foi esse o caso. No dia anterior a ser despedida, através de uma conferência de imprensa conjunta de Fernando Medina e João Galamba, Christine Ourmières-Widener teve uma reunião no ministério das Finanças. Foi nesse encontro que Medina, apesar de lhe elogiar os resultados, a convidou a apresentar a demissão.

“Para mim foi uma reunião muito difícil, porque o tom da reunião era bastante triste. Diziam-me que os resultados eram fenomenais e que tinha feito um trabalho fantástico, que era a pessoa certa para o cargo, que o processo tinha sido conduzido de boa-fé pela minha parte. Mas que, tendo em conta toda a pressão de várias partes, não havia outra opção para o Governo que não passasse por travar o avanço do meu mandato. Ainda é muito doloroso para mim. Pediram que me demitisse”.

Era “a única via devido à pressão política”, ter-lhe-á dito Medina. Mas a gestora, considerando não ter feito “nada errado”, não cedeu. Medina não abriu o jogo, não colocando o cenário de uma demissão por justa causa em cima da mesa. Algo que ela viria a descobrir pelas televisões.

“Estes dois ministros, ao despedir-me por justa causa, arruinaram a minha reputação. E eu tenho de limpar a minha honra. E fá-lo-ei”. E o problema de Christine está mesmo na expressão “justa causa”. Porque da reunião com Galamba, no mesmo dia em que foi despedida, tinha saído com a convicção de que seria afastada mas não que seria por "justa causa".

Governo pressionou a TAP a mudar um voo de Marcelo?

As comunicações entre Christine Ourmières-Widener e Hugo Santos Mendes mostram que sim. Em fevereiro, a CEO foi questionada internamente sobre um pedido de alteração de um voo, com partida de Maputo, de onde viria Marcelo Rebelo de Sousa. A presidente executiva decidiu então pedir a opinião do secretário de Estado das Infraestruturas, concretizando que discordava dessa potencial alteração.  

Mas, do Governo, recebeu uma posição diferente: Marcelo podia “colocar o resto do país contra nós”. “É o nosso maior aliado, mas pode tornar-se no nosso maior pesadelo", resumiu Hugo Santos Mendes.

A CEO acabaria a confirmar que o pedido não vinha da Presidência. “Não houve uma alteração da data. O Presidente encontrou outra solução”. Após a audição no Parlamento, também a Presidência da República se apressou a negar ter pedido para mudar esse voo: “A Presidência da República nunca contactou a TAP nem nenhum membro do Governo sobre tal assunto. A Presidência da República nunca solicitou a alteração do voo da TAP, se tal aconteceu terá sido por iniciativa da agência de viagens”.

(Bienvenido Velasco/EPA)

Alexandra Reis bloqueou mesmo negócios da TAP com o marido de Christine?

Alexandra Reis foi categórica na resposta: “mantive a equipa de sobreaviso” de que “não faria sentido avançar” com aquele negócio, tendo dado “indicações muito claras” sobre não haver qualquer contratação com a Zamma Technologies.

É que nesta empresa, que apresentou propostas à TAP para comprar as suas soluções tecnológicas, trabalha o marido de Christine Ourmières-Widener. As “incompatibilidades” eram claras para Alexandra Reis. E os negócios nunca avançaram.

Ainda assim, garantiu, não teve qualquer contacto com a CEO sobre este tema. O deputado do Chega Filipe Melo insistiu que teria sido neste tema que começaram os “desaguisados” com a CEO. Mas Alexandra Reis não confirmou.

Também Christine Ourmières-Widener fez questão de garantir que nunca houve qualquer contrato assinado. Uma questão “irrelevante”, já que nunca se concretizou qualquer negócio, classificou. “Essa solução não foi contratada. Não era do mandato de divisão de compras, mas das operações. Não percebo bem qual a vantagem de estar a falar disso agora, qual o objetivo.”

Christine tentou afastar um motorista por não ser vacinado contra a covid-19?

A revelação foi feita por Alexandra Reis, quando confrontada pelos deputados sobre os usos pessoais que Christine Ourmières-Widener dava ao carro da empresa: a CEO terá tentado demitir um motorista por não estar vacinado contra a covid-19.

Mas a história teria outros contornos ainda mais caricatos: este motorista era “o mesmo” que terá tornado público os usos pessoais que a CEO fazia do carro da empresa, transportando familiares da presidente executiva por Lisboa. E este motorista era também familiar do líder de um dos sindicatos da TAP.

“A CEO deu-me nota de que um dos motoristas não estava vacinado contra a covid-19 e que, nessas circunstâncias, não poderia continuar na empresa a exercer aquelas funções. Mas essa situação foi contornada. Fiz a gestão do tema e o rapaz quis vacinar-se. A situação foi ultrapassada.”

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