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Há grávidas a fazer 80 km por uma ecografia, há outras que pagam mais de 100 euros por cada. São poucos os médicos aptos para este exame e "não há resposta" no SNS

17 jun, 07:00
Ginecologista/obstetra a fazer ecografia

Os dados mais recentes dizem que pouco mais de 200 médicos estão inscritos no colégio de competência de Ecografia Obstétrica Diferenciada, que lhes dá aval para realizar estes exames. À boleia disso e dos acordos pouco vantajosos com o privado, há cada vez menos opções para as grávidas

Estávamos na véspera da celebração dos 50 anos do 25 de abril quando Cátia Matias, de 35 anos, decidiu recorrer às redes sociais para mostrar a sua indignação: “Grávida de 18 semanas e desde março a tentar ter acesso a uma consulta na Unidade de Saúde da minha morada, neste caso a UCSP Alameda”, em Lisboa. Cátia conseguiu essa consulta para o dia 22 de abril e indignou-se porque já só conseguiu uma nova marcação no centro de saúde para 10 de julho, “quanto estarei grávida de 30 semanas”. Desde que soube da sua gravidez, foi garantindo “consultas e análises necessárias” por conta própria no privado. “Se estivesse à espera, até agora tinha feito um total de zero ecografias e outros exames pelo Serviço Nacional de Saúde”, relata. Depois de ter partilhado a sua situação no Instagram, Cátia percebeu que o mesmo “tem acontecido a imensa gente”, tendo até recebido o testemunho de uma grávida com risco de pré-eclâmpsia. Mas basta uma breve pesquisa online por fóruns para perceber que esta é uma realidade transversal em todo o país.

A dificuldade em aceder aos cuidados de saúde primários é um problema para os quase dois milhões de cidadãos sem um médico de família atribuído, mas torna-se mais crítica no caso das grávidas, uma vez que impacta num dos aspetos mais importantes da gestação: a realização das ecografias obstétricas.

Existem grávidas que não as conseguem marcar. Hoje em dia, as ecografias têm de ser marcadas com muito tempo de antecedência e ao segundo mês [de gravidez] pode marcar para o quinto mês, mas o problema é a ecografia das 12 semanas ou aquelas que têm de ser feitas no imediato. Não há resposta [no SNS]”, revela Nuno Clode, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal.

Segundo os especialistas com quem a CNN Portugal conversou, são três os fatores que contribuem para que seja cada vez mais difícil uma mulher fazer as ecografias obstétricas dentro dos tempos recomendados: o valor pago pelo Estado nos acordos com o privado não é atrativo, os médicos ginecologistas e obstetras que estão no público rápida e constantemente são ‘sugados’ para as urgências e são pouco mais de cem os clínicos com competência para este exame, cujo escrutínio ficou maior depois da polémica do ‘bebé sem rosto’

Em breve entro de férias e vou ter de as interromper para vir fazer ecografias obstétricas, porque não temos quem faça”, conta-nos Fernando Cirurgião, diretor do serviço de ginecologia e obstetrícia do Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa.

Em Lisboa e Vale do Tejo, adianta a médica e delegada sindical Sara Proença, “há muitos poucos [médicos] a fazer” estas ecografias e conhece casos de grávidas que tiveram “de ir a Santarém ou Torres Vedras” para conseguir realizar o exame, que é como quem diz, entre 50 e 80 quilómetros.

Fernando Cirurgião diz ainda que “a ecografia obstétrica é das situações potencialmente desprezadas por se centralizar os recursos médicos nas urgências, o que facilmente acontece”. No fundo, lamenta, “é um acumular de situações que se arrastam ao longo dos anos, vão sendo postos grãos de areia e calhaus e estamos a assistir a esta derrocada” no SNS.

Pouco médicos para realizar o exame

Segundo os mais recentes dados da Ordem dos Médicos, há 1.913 especialistas em Ginecologia/Obstetrícia, mas a verdade é que são poucos os que têm competência para fazer ecografias obstétricas. De acordo com a informação facultada à CNN Portugal pelo organismo, apenas 235 médicos estavam inscritos no colégio de competência de Ecografia Obstétrica Diferenciada níveis 1 e 2. O primeiro nível destina-se ao rastreio e permite fazer os três exames recomendados durante a gestação, o segundo permite a “realização de exames de avaliação anatómica e funcional detalhada na presença de fatores de risco e quando uma anomalia é detetada na ecografia de rastreio”, como explica a OM. Ou seja, apenas 12% dos especialistas nesta área estão aptos para realizar os exames.

Este número de médicos habilitados é consideravelmente baixo, até porque, a título de exemplo, se dividirmos 235 pelos 18 distritos de Portugal Continental e pelos dois arquipélagos, temos apenas 11 médicos aptos por região para a realização destas ecografias (mas o certo é que há distritos com bem menos em detrimento de outros, como veremos mais à frente).  

Não é vantajoso fazer um exame com muita responsabilidade como este e que demora muito tempo, são precisos 40 minutos no mínimo para um bom exame e há quem pague 20 euros no privado. Os colegas preferem fazer coisas com menos responsabilidade”, reconhece Sara Proença, médica especialista em Ginecologia e Obstetrícia e dirigente da Federação Nacional dos Médicos. “Os colegas preferem locais não convencionados, são remunerados uma série de vezes mais”, acrescenta Fernando Cirurgião.

Nuno Clode diz que tem “dificuldade em responder” sobre como a situação poderia ser solucionada, mas adianta que é preciso o Estado “pagar melhor, ser minimamente competitivo em relação a outras entidades”. “Nem todas as pessoas trabalham apenas na perspetiva do dinheiro, mas é preciso receber um valor justo e honesto, mesmo quando se luta por uma causa. Outra coisa é receber valores irrisórios por competências altas”, atira o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal, vincando a necessidade de “aumentar a formação” nesta área. 

É aconselhável realizar uma ecografia obstétrica no 1º trimestre (entre as 11 e 13 semanas e seis dias), uma ecografia morfológica (entre as 20 e as 22 semanas) e uma ecografia de avaliação do crescimento e bem-estar fetal (entre as 30 e 32 semanas). (Freepik)

Privados fecham a porta a convenções e pública sem capacidade de resposta

Fernando Cirurgião considera que os acordos celebrados com o privado para a realização destas ecografias não são “de todo vantajosos”, seja no que respeita ao valor pago aos médicos, seja pelo que o Estado paga aos privados, pois trata-se de um exame demorado, com equipamentos caros. “Os acordos que existem com entidades não eram de todos vantajosos, financeiramente levou a que muitos médicos acabassem por não fazer”, continua o médico.

“Um equipamento custa cerca de 100 mil euros, tem de estar alicerçado em grandes grupos. Os hospitais públicos estão bem equipados, mas não em médicos para fazer, não há ou estão desviados, é uma das minhas lutas, não posso desviar toda a atenção para a urgência quando fico com esta atividade assistencial por fazer, cirurgias ginecológicas, consultas e ecografias”, adianta o diretor do serviço de ginecologia e obstetrícia do Hospital São Francisco Xavier.

A falta de clínicas convencionadas para este tipo de exames é crítica de norte a sul do país e, tal como muitas grávidas têm de fazer, a CNN Portugal procurou informação online sobre onde há acordos com o SNS para a realização de ecografias obstétricas. E foi uma verdadeira odisseia. 

Como se pode ver no site da ARS Norte, onde é possível ver por distrito, há perto de 100 clínicas que fazem ecografias, mas o problema é que a informação disponibilizada online - e a única à qual a grávida tem acesso - nem sempre indica se essa clínica faz ecografias obstétricas. Em Braga é possível encontrar 30 clínicas que fazem ecografias, mas apenas uma indica que faz ecografias obstétricas, o mesmo acontece no Porto, em que em 58, o documento menciona apenas uma para este tipo de exame. O mesmo cenário dá-se na região centro: há 56 entidades convencionadas que fazem ecografias, mas nenhuma menciona se estas são ou não obstétricas, devendo a grávida ligar para cada unidade para saber. 

No site da ARS Lisboa e Vale do Tejo não há sequer qualquer menção a convenções para a realização destas ecografias gestacionais, mas uma pesquisa em motores de busca leva-nos a um documento de 2020, lendo-se nele que há apenas 20 com acordo com o Estado para este exame. Já no Alentejo há 10 clínicas com convenção para radiologia, mas quatro não fazem ecografias obstétricas, apenas uma indica que sim. Nas restantes seis, a informação disponibilizada no site da ARS Alentejo online é vaga, devendo a utente ligar para a unidade para confirmar. No Algarve, com dados atualizados de 2022 (não há mais recentes), existem seis clínicas na região com convenção para a realização de ecografias obstétricas. 

Pelas ilhas, a informação é ainda menos clara. A Direção Regional de Saúde dos Açores tem uma lista das entidades convencionadas, mas não detalha que exames estão incluídos. Na Madeira, a informação é ainda menos clara.

“As ecografias obstétricas têm importância que não é de hoje, este é exame onde se tiram grandes conclusões sobre desenvolvimento e bem-estar do feto”, diz Fernando Cirurgião. Mas o facto de ser um exame exigente, “cansativo” e caro faz com que facilmente seja ‘abandonado’ por muitos profissionais. “Sabemos que as exigências do ponto de vista técnico foram sendo aumentadas a mercê de algumas polémicas, o que levou a que muitos médicos também começassem a reduzir a atividade na prática de ecografias obstétricas, pois começaram a considerar que não seria vantajoso estar a sujeitar-se a essa exigência, face ao que poderia ser a remuneração”, adianta o médico.

À falta de clínicas privadas com convenção com o Estado, junta-se ainda a incapacidade de os hospitais públicos darem resposta. Se outrora foram as unidades públicas que “deram uma grande resposta ao minimizar as falhas dos centros ecográficos, resolvendo situações emergentes, porque os médicos de família encaminhavam [as grávidas] para os hospitais, a realidade é que neste momento a maior parte dos hospitais não têm capacidade de recursos médicos para realizar as ecografias obstétricas”, adianta Fernando Cirurgião, apelando a medidas como “incentivos de formação” que tornem este exame apelativo, seja para o público ou para o privado.

Especialistas dizem que são três os fatores que contribuem para que seja cada vez mais difícil uma mulher fazer as ecografias obstétricas dentro dos tempos recomendados. (Freepik)

Para Rui Nunes, professor catedrático da Faculdade Medicina da Universidade do Porto, especialista em Política da Saúde, a falta de médicos habilitados para realizar este exame e a escassez de clínicas que trabalham com o SNS “coloca em causa o direito ao acesso à saúde”, uma vez que nem todas as grávidas têm capacidade financeira para suportar este tipo de exames no privado, tenham ou não um seguro ou plano de saúde, uma vez que os preços podem ir dos 80 aos 200 euros por ecografia.

Segundo as Tabelas de Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica, cujos preços estão no site da ACSS (e atualizados a 1 de abril), a ecografia obstétrica do 1.º trimestre de gravidez realizada com acordos entre público e privado custa 14,5 euros, com uma taxa moderadora de 2,5 euros, já a ecografia obstétrica do 2.º trimestre custa 39 euros, com uma taxa moderadora de 7 euros, e a ecografia obstétrica do 3.º trimestre custa 14,5 euros, com uma taxa moderadora de 2,5 euros. Sem convenção, estes exames custam, em média, mais de 80 euros cada. E esta acaba por ser a realidade de muitas grávidas.

É incompreensível a falta de planeamento nesta matéria”, diz Rui Nunes, defendendo que é preciso reter médicos especialistas em Ginecologia e Obstetrícia no SNS e até incentivar à formação para que sejam em maior número aqueles que podem realizar este exame. “Esta é uma área onde facilmente se contratualiza com o setor privado, mas é preciso ver os preços de base, pois não há falta de capacidade instalada, mas de planeamento estratégico”, vinca o também antigo candidato à Ordem dos Médicos.

“Não dá para voltar atrás”. Médicos alertam para risco de saltar ecografias

Como se lê no site da Associação Portuguesa de Diagnóstico Pré Natal (APDPN), é aconselhável realizar uma ecografia obstétrica no 1º trimestre (entre as 11 e 13 semanas e seis dias), uma ecografia morfológica (entre as 20 e as 22 semanas) e uma ecografia de avaliação do crescimento e bem-estar fetal (entre as 30 e 32 semanas), podendo, em alguns casos ou em gravidezes de risco, ser necessário fazer mais ecografias durante a gestação.

Embora as três ecografias sejam importantes para monitorizar a saúde e desenvolvimento do feto, a verdade é que a primeira é a mais crítica de todas, pois não é possível marcá-la com a antecedência necessária, de forma a garantir uma vaga. Além disso, é logo neste primeiro exame de imagem que o médico pode avaliar a presença de marcadores ou sinais ecográficos que possam indicar algum tipo de malformação ou anomalia detetáveis precocemente.

No caso destas ecografias específicas para a gravidez, todos os dias contam. E a demora pode sair cara: é nesta primeira ecografia que é possível saber se o feto está vivo, qual o tempo de gravidez, se o feto está a desenvolver-se normalmente, se há malformações ou se a translucência da nuca é normal (o que permite fazer o rastreio da trissomia 21).

A ecografia do primeiro trimestre tem um intervalo muito curto e há informação que só se obtém nesse intervalo de tempo, se deixarmos passar o tempo já não a conseguimos obter. E não há como voltar atrás”, alerta Fernando Cirurgião.

No entanto, o médico diz que o agendamento da ecografia morfológica tem sido também crítico e que isso traz também riscos. “Há uma grande dificuldade no agendamento, mas esta é a ecografia é também importante”, diz o médico, explicando que é neste exame que se avalia o crescimento do bebé, a existência de anomalias, a localização da placenta e a quantidade de líquido amniótico.

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