Processe o Estado se o SNS lhe falhar. As explicações de advogados e constitucionalistas

13 out 2023, 07:00

Numa altura em que o número de utentes sem médico de família não para de crescer e alguns serviços hospitalares, sobretudo urgências, não conseguem funcionar por falta de clínicos, o direito ao acesso à saúde pode estar comprometido. Mas há formas de as pessoas se protegerem e até de levarem o Estado a tribunal

Acordar de madrugada para conseguir uma consulta num centro de saúde e ainda assim não ser atendido.Horas a fio na sala de espera de um hospital. Consultas de especialidade marcadas para daqui a um ano. Cirurgias que demoram meses a ser concretizadas ou que são ‘empurradas’ para o privado. Percorrer centenas de quilómetros para ser atendido num hospital com serviço de Obstetrícia. Ir a uma urgência e dar de caras com uma tabuleta a dizer ‘serviço encerrado’. 

O setor público da saúde vive momentos dramáticos e os alertas de consequências começam a adensar - se nada for feito entretanto, novembro pode ser um mês caótico e até mesmo fatal. Está o direito ao acesso à saúde colocado em causa?

Jorge Bacelar Gouveia não tem dúvidas de que este direito consagrado na Constituição Portuguesa está atualmente comprometido. “Sim”, defende o constitucionalista, quando confrontado com esta questão. 

A nossa Constituição consagra de um modo muito amplo e moderno o direito ao acesso à saúde e quando o Estado põe em causa a prestação de cuidados de saúde que sejam de natureza essencial, isso suscita a maior das reservas sobre o cumprimento do Estado no dever de prestar cuidados de saúde nas variadíssimas dimensões. Vejo com grande preocupação o que se passa”, lamenta Jorge Bacelar Gouveia.

Para Ricardo Meireles Vieira, advogado do departamento de Direito da Saúde da Belzuz Advogados SLP – Sucursal em Portugal, “parece claro, pois, que o acesso à saúde em Portugal está cada vez mais comprometido",  "Os exemplos de casos que temos ouvido nos media apenas se irão multiplicar”, acredita. Da mesma opinião é o advogado João Massano, que apressa-se a dizer que “neste momento, a saúde é mais uma das situações em que os serviços públicos não funcionam bem”,  Mas sublinha: “De todos os direitos fundamentais, o da saúde é o mais gritante, pois pode ter consequências mais danosas no imediato”.

O cenário atual da setor público da saúde não é animador e Rosário Tereso, jurista da DECO, admite que o organismo “tem manifestado preocupação com a questão do acesso a cuidados de saúde, tendo, aliás, expressado já um conjunto de preocupações junto da Entidade Reguladora da Saúde”, que tem a capacidade para avaliar e multar as instituições de saúde em incumprimento.

A conjuntura atual tem o potencial de a curto prazo agravar a situação e traz um cenário inaceitável para os utentes. O Estado está a falhar na qualidade de garante do direito à proteção da saúde”, afirma a jurista, numa resposta por escrito, acusando o sistema de saúde de continuar “demasiado focado nos cuidados curativos, descurando os cuidados preventivos”.

Pode o utente responsabilizar o Estado se não tiver acesso à saúde pública?

Sim. Diz a Constituição Portuguesa que todas as pessoas, cidadãs portuguesas ou estrangeiras que estejam em Portugal, têm direito ao atendimento nos serviços públicos de saúde. E esse atendimento tem de ser feito “com prontidão e no tempo considerado clinicamente aceitável”, como defende o advogado Ricardo Meireles Vieira, citando “um dos principais direitos previstos na Lei de Bases da Saúde [que] é o previsto no artigo 2º n.º 1 al. b)”.

Ora, se em algum momento, por força dos constrangimentos na organização das instituições de saúde pública, for negada a uma pessoa o acesso atempado a esses cuidados de saúde, podemos afirmar que aquele direito lhe foi negado, com a consequente responsabilização da entidade tutora dos serviços, no caso, o Estado”, explica o advogado, à CNN Portugal.

Embora destaque que “o próprio conceito de “tempo clinicamente aceitável” é subjetivo e sujeito a prova caso a caso”, Ricardo Meireles Vieira afirma: “Numa análise abstrata, não repudio que um cidadão que é colocado numa situação em que tem de aguardar horas por um tratamento urgente não possa responsabilizar o Estado pelos eventuais danos (ou agravamento dos mesmos) que o predito atraso lhe tenha provocado”.

Então, se o Estado é responsável, como pode (e deve) o utente reclamar?

Quando o acesso a cuidados de saúde adequados, com prontidão e no tempo considerado clinicamente aceitável não acontece - como é o caso de incumprimento dos tempos de espera para marcação ou realização de consultas, atos médicos ou exames de diagnóstico ou até mesmo no caso da falta de atendimento em tempo útil de uma situação de urgência -  o utente tem o direito a reclamar. Mas não basta verbalizar o desagrado enquanto se está na sala de espera. É preciso agir, dizem os especialistas consultados pela CNN Portugal. 

“As pessoas reclamam mais para órgãos de comunicação social, mas não sabem dos seus direitos”, alerta o advogado João Massano, lamentando “o desconhecimento das pessoas sobre os direitos”. “A falta de literacia jurídica é grande, facilita o incumprimeiro do que a lei manda quanto aos cuidados de saúde”, atira. A Carta dos Direitos de Acesso aos Cuidados de Saúde pelos Utentes do SNS ajuda a esclarecer.

Então, o que pode fazer o utente quando considera que o seu direito ao acesso à saúde está comprometido ou não foi sequer cumprido? O primeiro passo é escrever no Livro de Reclamações, que todos os estabelecimentos de saúde devem ter e ao qual o acesso deve ser facilitado.

O cidadão tem sempre o direito a escrever [no Livro de Reclamações] o que crê ser digno de registo, mas deve circunstanciar ao máximo para que seja fácil a apreciação [da queixa] pela ERS. O cidadão deve ser o mais claro possível, com menção da data e hora, saber o nome das pessoas envolvidas e identificar se está ou não acompanhado. É importante mencionar se houver testemunhas”, aconselha o advogado João Massano. 

Os especialistas entrevistados pela  CNN Portugal aconselham ainda a reclamar diretamente junto da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), sobretudo caso os tempos máximos garantidos não sejam cumpridos. Nestas situações, diz a jurista Rosário Tereso, “o utente deverá apresentar uma reclamação” junto deste organismo que tem a função de “assegurar o cumprimento dos critérios de acesso aos cuidados de saúde”.

“Outro grau de reclamação”, continua o advogado João Massano, é junto da Provedoria de Justiça, “onde se pode apresentar uma reclamação”. Apesar de “não ter um poder executivo, emite recomendações e tem peso político e moral”, explica o advogado.

Apresentar queixa diretamente às administrações hospitalares, através do envio de carta registada, é também uma forma de reivindicação. 

Há espaço para pedir uma indemnização ao Estado?

Sim. “Reclamar e apresentar queixa nos estabelecimentos de saúde, nos termos da lei, bem como a receber indeminização por prejuízos sofridos” é um dos direitos do utente, como se lê no site do Serviço Nacional de Saúde

Quanto à possibilidade de o utente ser indemnizado pelo Estado se entender que foi privado do direito ao acesso à saúde, o professor catedrático Jorge Bacelar Gouveia explica que “em teoria, o Estado não é imune a qualquer tipo de dever de indeminizar”. Se é uma situação recorrente?  “Tem havido casos, mas não muitos”, reconhece.

Segundo o constitucionalista, “pode haver indemnizações por danos causados, até mesmo pelo funcionamento do serviço, mesmo não havendo culpa de ninguém em particular”. Esses danos devem, no entanto, ser justificados pela não assistência, isto é, o agravamento da condição de saúde e consequentes danos físicos acontecem porque não foi prestada assistência em tempo útil, “mas é preciso avaliar as circunstâncias”. 

É possível levar o Estado a tribunal?

Também sim e não apenas quando a consequência é o óbito do paciente por falta de assistência. Olhando, por exemplo, para duas realidades atuais no setor público da saúde, como é o caso da grávida que não têm sequer um serviço de urgência de obstetrícia a funcionar na zona de residência e, por isso, mesmo na incerteza, têm de percorrer centenas de quilómetros, ou do utente que parte uma perna e não tem urgência de ortopedia aberta, é possível avançar com a “instauração de ação judicial para responsabilização do Estado” e, como já foi mencionado acima, “consequente pedido de indemnização”, adianta o advogado Ricardo Meireles Vieira, que esclarece ainda que “importa, contudo, sublinhar que os contornos de cada caso deverão sempre ser analisados cuidadosamente de forma a garantir o nexo entre o atraso no atendimento e os danos provocados na pessoa”.

Sem dúvida, o acesso à via judicial para responsabilização do Estado é sempre uma solução para os casos em que os direitos dos cidadãos são atropelados”, diz Ricardo Meireles Vieira.

Também a jurista Rosário Tereso reconhece a possibilidade do “recurso à via judicial”, mas alerta para o facto de que tal “exigirá sempre a avaliação do caso concreto, podendo ser, nomeadamente, equacionado com vista à indemnização por danos/prejuízos sofridos”.

“Numa última linha, e em caso de danos resultantes de falta de assistência, poderá ser equacionada uma ação contra o Estado”, defende Rosário Tereso, da DECO, entidade que aconselha ainda a apresentar queixa junto das Administrações Regionais de Saúde e das próprias ordens profissionais.

Nestes casos em que o tribunal parece ser o passo a seguir, a pessoa deve aconselhar-se junto de um advogado, até porque, como diz à CNN Portugal Ricardo Meireles Vieira, “o caminho judicial será sempre sinuoso, seja pela necessidade de prova dos factos e danos alegados que está a cargo do utente como pela “gritante” lentidão dos tribunais que decidem casos como estes”. “Não obstante, estes obstáculos não devem ser a razão pela qual os cidadãos se devem coibir de exercer os seus direitos com vista à responsabilização daquela(s) entidade(s) que têm a seu cargo garantir o acesso à saúde”, atira o advogado da Belzuz Advogados SLP – Sucursal em Portugal.

Quando questionado sobre os casos em que o cidadão pode recorrer ao tribunal, o advogado João Massano, também presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados (OA), dá alguns exemplos: “se o atraso na realização do ato [médico] conduzir a danos quantificáveis, como o falecimento, ou se a pessoa ficou com sequelas que não teria se fosse tratada dentro do tempo”.

Apresentar uma queixa na ERS ajuda no caso?

Sim. Tal como os especialistas fazem questão de frisar, a Entidade Reguladora da Saúde pode (e deve) ser um mecanismo de denúncia para casos em que o acesso ao direito à saúde ficou comprometido ou foi mesmo travado. 

Para Bacelar Gouveia, uma vez que é esta a entidade que avalia primeiramente a queixa e que pode abrir um inquérito à unidade hospitalar, uma queixa e consequente dádiva de razão ao utente ajudar a avaliar o caso e até a dar razão ao lesado. No entanto, considera que “o que falta aqui em Portugal é uma ousadia por parte dos cidadãos e advogados de judicializar a reivindicar do acesso à saúde”, dando como exemplo o Brasil, onde são aplicadas “providências cautelares para o Estado garantir o tratamento médico urgente”.

João Massano reforça ainda a importância que uma queixa junto da ERS pode ter nestes casos em que é pedida uma indemnização ao Estado. “Com base nisso [na queixa e sobretudo na consequente ação do regulador], a pessoa pode ir aos tribunais pedir uma indemnização, mas só caso verifique que há danos justificáveis”, atira. 

Em Portugal, explica Bacelar Gouveia, “o mais comum” é as queixas serem apresentadas tendo em conta “atos médicos e não tanto sob as estruturas hospitalares e de saúde”, porém, o constitucionalista reconhece que, olhando para o estado atual do SNS e com serviços de urgência e especialidade a encerrar por falta de médicos, este é um cenário que “pode vir a aumentar”, assim como pode vir a aumentar “o número de ações [por parte dos utentes] de pedirem ao Estado o dinheiro” pela ida ao setor privado da saúde por falta de resposta pública.

Quando apenas o privado abre a porta, pode o utente exigir ao Estado o valor gasto?

Sim, mas, mais uma vez, cada caso é um caso. E nem sempre pode ser possível provar - ou fazer valer as provas.

Nas situações em que o acesso público à urgência ficou comprometido ou foi mesmo bloqueado e o utente acaba por se deslocar ao privado, o advogado Ricardo Meireles Vieira, esclarece que “existe um amplo conjunto de danos suscetíveis de reparação na eventualidade de se comprovar que a causa dos mesmos foi o atraso no atendimento por parte das entidades de saúde públicas”. 

O especialista do departamento de Direito da Saúde da Belzuz Advogados SLP – Sucursal em Portugal reconhece que “na maioria dos casos poderá ser difícil” atestar como provado a falta de atendimento no público devido à “fluidez do conceito de tempo de resposta aceitável” que consta na descrição da lei portuguesa. 

No entanto, “partindo do pressuposto que a prova daquele facto é passível de ser realizada, o utente deve ser indemnizado não só dos danos patrimoniais que teve de suportar por força do tratamento realizado (designadamente o custo dos serviços de saúde privada, perda de remuneração no período de acompanhamento ou mesmo os custos com a própria deslocação), mas também danos não patrimoniais decorrentes do evento (como a angústia de não ver a sua situação de saúde tratada de forma condigna ou mesmo o receio pela perda de saúde ou, em casos limite, de morrer)”, afirma o advogado Ricardo Meireles Vieira.

João Massano também alerta para a dificuldade de atestar como prova a falta de assistência e diz mesmo que é preciso ter cautela neste tipo de situações. No caso de pessoas que estão há largos meses, para lá dos estipulados como máximos pela lei, à espera de consultas e cirurgias, ir ao privado e imputar os custos ao Estado requer “algum cuidado”, diz o também presidente do Conselho Regional de Lisboa da OA. Isto porque“poderá ser uma situação enquadrada com uma convenção com o SNS” através dos vales-cirurgia, que acabam por ser emitidos quando o tempo máximo de resposta garantido [TMRG] é ultrapassado.

Mas se em causa estiver uma situação de urgência, então “é possível defender [em tribunal] que, se a pessoa chega ao limite e que se não for tratada de imediato e não existir disponibilidade pública, poderá recorrer ao privado e imputar os custos ao público, mas não é qualquer situação. Temos de ter alguma cautela”, conclui João Massano, lembrando a importância das pessoas se aconselharem junto de um advogado antes de agir judicialmente.

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