Hospitais sob pressão: 268 entradas na urgência por hora, “escalas com mínimos” e esperas para consultas que chegam a dois anos. “A situação geral é de agravamento”

24 ago 2023, 09:00
Hospital Santa Maria (Lusa/Tiago Petinga)

Os médicos internos estão em greve de dois dias, colocando o Serviço Nacional de Saúde sob uma pressão ainda maior, sobretudo nas urgências hospitalares. A situação de caos está instalada e o Sindicato Independente dos Médicos diz que a tendência é para que se agrave, incluindo-se as longas e demoradas listas de espera para consulta de especialidade.

A morte de um homem de 93 anos após esperar seis horas para ser transferido do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, levanta novamente questões sobre o caos que se vive nos hospitais portugueses, que nos últimos meses têm apresentado constrangimentos em algumas especialidades, como Ginecologia e Obstetrícia, e dificuldades em completar as escalas de urgência por falta de médicos

A greve de dois dias que esta quarta-feira e quinta-feira os médicos internos levam a cabo promete complicar ainda mais o cenário. Há muito que estes médicos se queixam da sobrecarga de trabalho e de não estarem a ter a formação devida ao tempo que passam nas urgências.

Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), alerta para o impacto que a greve dos médicos internos pode ter na situação que diz já ser caótica há vários meses, sobretudo nas urgências. 

São cerca de 6.500 médicos [internos] que garantem que o SNS ainda não esteja ainda mais em dificuldade, já que muitas vezes substituem os médicos especialistas mesmo sem a devida tutoria”, alerta o sindicalista, dizendo que esta é uma realidade transversal, sobretudo nas escalas de urgência, em que estes profissionais ainda em formação acabam por servir de ‘cola’ para que sejam garantidos os mínimos. Mas, ainda assim, tal nem sempre acontece.

Segundo Jorge Roque da Cunha, “neste momento, a situação geral é de agravamento acerca do que acontecia há um ano” nos hospitais públicos portugueses. 

O tempo de espera - e que nas urgências em Loures chega a ser de 13 horas para pulseira amarela e nas de Santa Maria foi, no início do mês, cerca de quatro horas  - continua a ser o grande calcanhar de Aquiles da saúde pública. E os utentes queixam-se disso.

A par dos constrangimentos, sobretudo em preencher escalas, a afluência aos serviços de urgência continua elevada. De acordo com os dados mais recentes do Portal da Transparência, referentes a junho deste ano, foram feitos 193.317 atendimentos em serviço de urgência em todo o país, o que dá uma média de 6.433 por dia, 268 por hora.

“Os chefes de urgência dos hospitais Beatriz Ângelo, Fernando da Fonseca, Garcia de Orta, São Francisco Xavier mantém-se há mais de um ano por razões de falta de meios e isso tem-se agravado não só quantitativamente como qualitativamente. Raras são as escaladas com especialistas mínimos, com qualidade e qualificação, são cada vez mais prestadores [de serviço] e cada vez mais médicos sem qualquer especialidade [a assegurar as urgências]”, atira Roque da Cunha. 

E o resultado é devastador, garante o dirigente do SIM. Ou seja, diz, quando há encerramentos, seja de maternidades ou serviços de urgência gerais e de especialidade, como acontece, por exemplo, com Ortopedia, “causam uma pressão acrescida” a outros hospitais, dando o exemplo do Hospital de Vila Franca de Xira, que assegura que “já está abaixo dos mínimos”. Mas também “os hospitais centrais” ficam sobrecarregados e muitas vezes sem conseguir dar vazão aos utentes que chegam às urgências.

Ainda há dois meses, a CNN Portugal noticiou que o SNS leva médica do Porto a Loures de motorista para evitar fecho de urgência. Não são também raras as vezes em que para completar a escala de urgência é preciso desfalcar a consulta externa. E isso é notório nos tempos de espera, que tendem a arrastar-se, ao mesmo tempo que cresce o número de pessoas a aguardar.

Consultas de especialidade continuam a ritmo lento em todo o país (em alguns casos, tempo de espera supera os dois anos)

Uma pesquisa no site Tempos do SNS permite perceber como é recorrente um utente ter de esperar mais tempo por uma consulta do que aquele que está estipulado por lei - e que é de 30 dias para casos muito prioritários, 60 dias para prioritários e 150 dias para situações de prioridade normal. E este cenário é transversal de norte a sul do país, com algumas unidades hospitalares a apresentarem cenários bastante críticos, seja no tempo de espera como no elevado número de utentes para uma consulta de especialidade.

Os casos mais críticos acontecem, por exemplo, no Hospital Distrital de Chaves, em que são várias as especialidades em que o tempo de espera para uma consulta excede um ano (no caso de Imunoalergologia a espera pode mesmo ser de 608 dias). Também o Hospital Distrital de Lamego tem três especialidades com tempos de espera para consulta próximos ou acima de um ano. 

No Hospital de Braga, é na consulta de Cirurgia Maxilo Facial que o tempo de espera é mais elevado e chega mesmo a superar os dois anos: há, de momento, 424 pessoas em fila de espera, com uma previsão de consulta dentro de 657 dias. Em Dermato-Venerologia, há 4.460 pessoas a aguardar por uma consulta  e um tempo de espera que ronda os 520 dias.

No Hospital Eduardo Santos Silva (Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, EPE) são nove as especialidades que excedem o Tempo Máximo de Resposta Garantido (TMRG) e o caso mais crítico acaba por ser Ortopedia, que apesar de o utente ter de esperar apenas mais 24 dias do que o estipulado por lei, há 4.029 pessoas a aguardar por uma consulta. Já no Hospital Padre Américo - Vale do Sousa (Centro Hospitalar Tâmega e Sousa) há  5.503 pessoas a aguardar por uma consulta de Ortopedia, que pode demorar 312 dias até acontecer.

Em Aveiro, no Hospital Infante D. Pedro (Centro Hospitalar do Baixo Vouga) uma consulta de Neurologia pode implicar uma espera de 587 dias, havendo 883 pessoas na lista. No Hospital de Coimbra, por exemplo, são várias as especialidades em que a lista é grande, assim como o tempo que cada utente tem de aguardar até ter a consulta com o médico. Oftalmologia, como acontece em todo o país (onde há mias de 61 mil pessoas à espera), é a especialidade com pior cenário: 7.802 pessoas aguardam por uma consulta em Coimbra e o tempo de espera é de um ano (355 dias). São ainda 1.872 os utentes que têm de esperar 480 dias por uma consulta de Otorrinolaringologia e 1.345 por uma consulta de Urologia, com um tempo de espera estimado de 232 dias.

Tanto o Hospital Distrital Caldas da Rainha (Centro Hospitalar do Oeste) como o Hospital Distrital de Santarém apresentam especialidades com tempos de espera superiores a 300 dias para uma consulta. São 332 os dias de espera por uma consulta de Dermato-Venereologia no Hospital Vila Franca de Xira, estando 1.279 pessoas em lista, e no Hospital de Santo André - Leiria (Centro Hospitalar de Leiria), são 420 dias de espera até uma consulta de Anestesiologia, 423 dias até uma consulta de Dermato-Venereologia (e mais de mil pessoas a aguardar), 451 dias até uma consulta de Ginecologia. Para uma consulta de Endocrinologia pode ser necessário esperar 527 dias e para uma de Neurologia 636 dias (e há 746 pessoas em fila).

No Hospital Beatriz Ângelo, ao qual a própria administração e o IGAS abriram um inquérito na sequência da morte do idoso, são várias as especialidades com listas de espera longas, tanto em pessoas como em tempo: algumas chegam aos quatro mil pacientes e excedem os 500 dias de espera.

No Hospital Egas Moniz, o cenário é mais crítico nas especialidades de Dermato-Venereologia (são 1.767 pessoas e 245 dias de espera) e de Neurocirurgia (estão em lista de espera 3.398 pessoas, com uma estimativa de 357 dias até à consulta). No Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra), o pior  acontece em Imunoalergologia, com 439 pessoas e mais de um ano e meio de espera: 422 dias.

Já no Hospital Garcia de Orta, há três especialidades em que o tempo de espera pode ser próximo ou superior a dois anos: Ortopedia (635 dias e 2.796 pessoas), Pneumologia (630 dias e 889 pessoas) e Urologia (750 dias e 1.879 pessoas). Já no Hospital São Bernardo (Centro Hospitalar de Setúbal), uma consulta de Ginecologia pode demorar 509 dias a acontecer e estão 1.367 pessoas a aguardar por esse momento.

No Hospital de Évora, quase todas as especialidades excedem o TMRG para consulta de prioridade normal, com destaque para Angiologia/Cirurgia Vascular (408 dias), Cirurgia Geral - Obesidade (890 dias e 430 pessoas à espera), Hematologia clínica (559 dias e 289 pessoas) e Oftalmologia (414 dias e 1.578 pessoas).

Mais a sul, no Centro Hospitalar Universitário do Algarve, o Hospital de Faro tem três especialidades com um tempo de espera superior a 400 dias: Cardiologia, Dermatologia - Rastreio Teledermatológico e Ginecologia. No entanto, o cenário agrava-se na consulta de Ginecologia - Apoio à Fertilidade (843 dias de espera e 94 pessoas em fila) e Oftalmologia (781 dias de espera e 5.838 pessoas a aguardar pela consulta). Já no Hospital de Portimão, o cenário mais caótico acontece na especialidade Oftalmologia: 5.363 pessoas e 1.135 dias de espera pela consulta.

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