Médicos mais novos andam exaustos. “Ganhar a vida a fazer urgência não é a melhor das coisas”

24 abr 2023, 07:00
Médico (Pexels)

A Ordem dos Médicos diz que faltam internistas nos hospitais, especialistas apontam o dedo à má organização da especialidade e dos serviços de urgência e à falta de atratividade da carreira pública. Mais de metade dos médicos de Medicina Interna tem idade para não fazer urgências e nos próximos três anos irão aposentar-se mais de 150

“Sem a Medicina Interna deixaria de ser possível que mais de 90% dos hospitais pudessem ter atividade na urgência e no internamento”. O aviso parte Pedro Guimarães Cunha, presidente do Colégio de Medicina Interna da Ordem dos Médicos, sublinhando o cenário preocupante que se vive atualmente nesta especialidade no Serviço Nacional de Saúde. “Muitos hospitais têm um número de médicos de Medicina Interna que fica aquém do que é recomendado”, alerta, garantindo que é esta área que tem permitido manter os hospitais no ativo.

Numa altura em que se dão demissões em bloco, como aconteceu com chefes de equipa de urgência de Medicina Interna do Hospital São Francisco Xavier, e hospitais apresentam constrangimentos no Serviço de Urgência, como aconteceu no Hospital de Santarém, que pediu o encaminhamento dos pacientes urgentes de Medicina Interna para outras unidades hospitalares, o novo bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes já veio colocar o dedo na ferida, instando o Executivo a abrir concursos para recém-formados: “Posso até dizer sem nenhum receio, a maioria dos hospitais neste momento não tem médicos especialistas da área da Medicina Interna, que é uma especialidade pilar absolutamente fundamental nos hospitais”, disse à CNN Portugal. 

Estêvão Pape, assistente hospitalar graduado sénior do Hospital Garcia de Orta, é taxativo quanto à importância desta especialidade no setor público da saúde - “a Medicina Interna é mãe das especialidades e mãe dos hospitais”, afirma, assegurando oque “são necessários mais internistas no SNS”, pois “falta mais de um terço [de internistas] do que existe”.

A par desta falha, garante Lèlita Santos, presidente da Sociedade de Medicina Interna, há uma má organização nos hospitais que está a fazer com que estes especialistas estejam constantemente a correr atrás do prejuízo.

Aliás, segundo Pedro Guimarães Cunha, os serviços centrais têm uma noção “errada” da forma de constituir dos quadros de Medicina Interna nas unidades de saúde, o que faz com que sejam ‘roubados’ para outros serviços.  Notando que estes especialistas são essenciais para as urgências, a falta deles e a idade avançada dos que existem podem colocar em causa o funcionamento de muitos serviços de urgência.

Mais de metade dos internistas no ativo não fazem urgências nos hospitais devido à idade (têm mais de 55 anos) e o resultado está à vista: há uma sobrecarga nos especialistas mais jovens, serviços de urgência com constrangimentos e vagas para a formação e contratação na especialidade por preencher. E quem está no terreno tem ainda assistido a uma 'fuga' de colegas para o privado.

“A falta de internistas nos hospitais não se deve por falta de médicos, mas, sobretudo, porque há uma grande saída destes profissionais para os hospitais privados, que oferecem muito melhores condições de trabalho, sobretudo organizativas, de equipamentos, horários, etc.”, confirma Lèlita Santos.

E Estêvão Pape sublinha que “as entidades privadas começaram a procurar internistas, coisa que não faziam há 20 ou 10 anos”, diz.

A saída de médicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem sido uma constante - só no ano passado foram 1.488, seja por reforma ou rescisão de contrato - e o pós-pandemia tem marcado uma sangria que os concursos que ficam sempre com vagas por preencher não têm conseguido fazer parar. Quanto à Medicina Interna, “em 2022 foram registadas 119 saídas por aposentação ou por termo/rescisão de contrato de médicos especialistas em Medicina Interna. Deste total, 37 regressaram ao Serviço Nacional de Saúde (dados de março de 2023)”, diz a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) à CNN Portugal.

No entanto, o cenário não é de agora: Em 2017, por exemplo, estavam mais de 2.600 internistas inscritos na Ordem dos Médicos, mas apenas 1.700 nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS)

Teoricamente é uma especialidade atrativa. Mas o SNS tira-lhe o encanto 

A Medicina Interna está em todo o lado: serviço de urgência, internamento, hospitalização domiciliária, consulta externa e na formação - “além de formarmos os nossos internos ajudamos a formar internos de 17 outras especialidades”, explica Pedro Guimarães Cunha. 

À partida, este desafio constante que o doente urgente e crítico traz seria um fator cativante para os jovens, mas o modus operandi praticado nos hospitais - sempre a correr contra o tempo e atrás do prejuízo, com os internistas a servirem constantemente de ‘cola’ nas escalas dos serviços de urgência, descurando de outras áreas de ação e prática clínica - faz com que muitos ponderem se querem ou não entrar numa máquina sobrecarregada e que ainda sente na 'pele' o peso que a covid-19 teve na especialidade, descrevem os especialistas.

“Esta especialidade é muito atrativa para os jovens do ponto de vista teórico. O que a maioria dos estudantes de Medicina queria mesmo ser era internista, mas pelas dificuldades de haver muito trabalho para poucas pessoas, poucos incentivos em termos de horário, de organização e remuneração, evidentemente, os colegas às vezes preferem outras especialidades menos cativantes, mas com mais oportunidades”, lamenta Lèlita Santos, embora reconheça que se o Ministério da Saúde melhorar as carreiras e garantir a formação, não faltarão jovens médicos a querer ser internistas.

Os serviços de Medicina Interna são responsáveis, por ano, por mais de 180 mil doentes internados, mais de 580 mil consultas e mais de quatro milhões de episódios de urgência nos hospitais portugueses, lê-se no site da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI). Mas não só. Além de terem estado na linha da frente na luta contra a covid-19, os médicos internistas foram, durante as duas primeiras vagas, responsáveis por “3.157 doentes sem infeção covid-19, correspondendo a cerca de 90% dos doentes habitualmente tratados (similar aos 2.653 doentes não covid da segunda vaga), ao contrário da maior parte das especialidades, que na primeira vaga reduziram a atividade praticamente a zero”, lê-se no Diário de Notícias, que cita um estudo da SPMI.

Porém, é a urgência que tem sido o calcanhar de Aquiles e o grande desgaste dos profissionais desta especialidade. “Há 30 anos, a Medicina Interna tinha alguma capacidade de resposta, mas deixou de a ter pela brutalidade de internamentos que se tem tido, com taxa de ocupação acima dos 95%, e pela grande procura hospitalar onde a porta de entrada é o serviço de urgência”, diz o médico Estêvão Pape, que há mais de trinta anos se dedica a esta especialidade. “Ganhar a vida a fazer urgência não é a melhor das coisas”, ironiza.

Lèlita Santos defende que “é preciso arranjar uma estrutura” para que a especialidade volte a ser atrativa. Caso contrário, assegura, “daqui por uns anos vai ser difícil termos internistas”.

“O que me preocupa sobretudo é a formação dos jovens internistas, porque a Medicina é uma ciência, passa muito pela discussão, pela experiência, mas os jovens internistas qualquer dia tem muitas dificuldades em terem essa formação”, se grande parte da sua atividade profissional for passada a assegurar escalas de urgência, diz a presidente da Sociedade de Medicina Interna.

Estêvão Pape coloca ainda a questão remuneratória na balança da atratividade. “A Medicina Interna é mal paga para o que faz. Comparativamente com Medicina Geral e Familiar, um internista em topo de carreira ganha metade”, afirma, embora diga que, à boleia da entrada do privado neste jogo, “hoje em dia qualquer médico de Medicina Interna não tem dificuldade em arranjar emprego”.

De acordo com o médico há mais fatores a retirar atratividade a esta especialidade. “As carreiras [de internista] foram atiradas para o caixote do lixo e a motivação científica passou a ser menor”, enumera, explicando: “Noutras especialidades, os médicos só fazem consulta, não têm o internamento, não têm a carga do internamento e da urgência. Há todo um benefício de folgas e horas de compensação” que na Medicina Interna não acontece.

Urgências sobrelotadas ‘esgotam’ os mais novos

As urgências acabam por ser o centro do trabalho de um internista, que se assume como a ‘cola’ deste serviço, o balão de oxigénio para que seja possível fazer frente à grande afluência que se repete de ano para ano e que é espelho, entre outros aspetos, da falta de alternativa nos cuidados de saúde primários. Mas o esforço é feito, sobretudo, pelos internistas mais jovens, que começam a acusar o cansaço, como aconteceu no verão passado, quando mais de 400 médicos internos de Medicina Interna de todo o país comunicaram a sua indisponibilidade para realizar mais 150 horas extraordinárias por ano numa carta aberta à anterior ministra da Saúde, na qual também exigiram melhores condições de trabalho e formativas e queixaram-se do cansaço extremo.

Segundo os dados a que a CNN Portugal teve acesso, no final de 2022 estavam registados na Ordem dos Médicos 3.282 médicos de Medicina Interna, 1.427 homens (43,7%) e 1.855 mulheres (56,3%). Deste total, 771 têm mais de 65 anos (23,4%) e 1.443 mais de 55 anos (43,9%), o que quer dizer que a maioria (67,3%) dos internistas pode, por lei, não fazer urgências, sejam elas diurnas e noturnas. 

Mas a idade dos especialistas traz outro problema: é preciso reforçar as equipas quando se reformarem. Segundo o Portal da Transparência, para este ano está previsto que 37 médicos internistas se aposentem. No próximo ano serão 50 e em 2025 71. Em três anos, irão reformar-se 158 médicos internistas.

“Não podemos dissociar a Medicina Interna do que se passa com todos os médicos no país, estamos a assistir ao envelhecimento dos médicos, há cada vez mais médicos que pedem dispensa de serviços. Não é uma questão da Medicina Interna, é um problema do SNS”, nota Pedro Guimarães Cunha, que reconhece que a idade dos internistas “tem causado uma maior sobrecarga nos médicos mais jovens”. “Não é desejável, mas o problema resolve-se integrando mais internistas nas instituições hospitalares”, acrescenta.

A dificuldade na conclusão de escalas e a grande afluência aos serviços de urgência trouxe recentemente para debate a criação da especialidade de Medicina de Urgência, que foi já chumbada pela Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos. Os especialistas alegam que não é mais uma especialidade que vai resolver o problema. Primeiro, dizem, é preciso travar a forte afluência às urgências com mais literacia em saúde e com mais acesso a cuidados de saúde primários, sobretudo com a contratação de médicos de família e com uma otimização da rede de referenciação.

“É preciso trabalhar na redução da procura do serviço de urgência”, frisa Pedro Guimarães Cunha. “A urgência é o calcanhar de Aquiles desta especialidade, mas é desta especialidade por arrasto, porque é o calcanhar de Aquiles de todos os hospitais e do SNS”, critica Lèlita Santos.

“O problema das urgências não se resolve com uma nova especialidade, mas sim com a formação e contratação de especialistas de Medicina Geral e Familiar que possam apoiar os doentes que, não sendo doença aguda emergente, podem ir ao centro de saúde, mas é também preciso retirar burocrática aos médicos de família que estão atoalhados em funções burocráticas”, adianta a presidente da SPMI.

Concursos ficam com vagas por preencher

O presidente do Colégio de Medicina Interna da Ordem dos Médicos defende que  tem de “haver um investimento significativo na Medicina Interna, na captação e atração de internistas”. No entanto, no ano passado, foram apenas abertas 162 vagas para recém-especialistas de Medicina Interna. E ano após ano esta especialidade tem ficado com lugares por preencher nos concursos abertos para os estudantes de Medicina, o que é um sinal de que a Medicina Interna não é tão atrativa como o desejado. 

No final do ano passado, ficaram 161 vagas por ocupar na escolha da especialidade médica. Das vagas por preencher, 67 foram em Medicina Interna (41,1%). Das 50 vagas que ficaram por preencher no concurso de 2021, 31 eram de Medicina Interna, diz o Público.

“Os jovens médicos, com a carga assistencial que têm, foram à procura de outras especialidades”, lamentam Estêvão Pape. E o que é que pode convencer os mais jovens a não fugir da especialidade? “Um grande amor à arte hospitalar”, diz o médico, lamentado de seguida: “Mas a vida não se faz só de amor”

“A questão das vagas por preencher [em Medicina Interna] deve-se a vários motivos. Os colegas mais jovens têm de sentir em primeiro lugar que têm uma atividade que é atrativa e que nos seus serviços há uma preocupação significativa com a sua formação e desenvolvimento da capacidades técnicas, o que nem sempre é claro”, explica Pedro Guimarães Cunha, apontando, mais uma vez, para a sobrecarga de trabalho que retira tempo de formação, algo que o antigo bastonário Miguel Guimarães já tinha criticado, tendo apontado para o facto de os internos desdobrarem-se “em turnos que deveriam ser garantidos por especialistas, em claro incumprimento dos critérios de idoneidade formativa de Medicina Interna”.

Estêvão Pape garante que “se não houver revisão da carreira, atrativos e incentivos do ponto de vista científico” a questão das vagas por preencher vai continuar, o que irá afetar o dia a dia dos hospitais do SNS.

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