Governo e sindicatos têm última oportunidade para travar mês dramático na Saúde. Saiba o que (ainda) os separa

27 out 2023, 07:10
Médicos de família em protesto: “Esta situação é totalmente inaceitável” (Fonte: Lusa/JOSE SENA GOULÃO)

A poucos dias de um mês de novembro que se perspetiva negro para o Serviço Nacional de Saúde e na semana em que o diretor-executivo do SNS, Fernando Araújo, colocou o dedo na ferida da “ética” das reivindicações dos médicos, os sindicatos voltam a sentar-se à mesa com o ministro da Saúde naquela que é vista como a derradeira reunião. Há abertura para cedências, mas a luz ao fundo do túnel continua muito ténue

A Federação Nacional dos Médicos (FNAM), o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) e o Ministério da Saúde voltam, esta sexta-feira, a reunir-se, naquele que é visto como o dia ‘D’ para a classe e para o próprio Serviço Nacional de Saúde (SNS).

As rondas negociais entre sindicatos e governo arrastam-se há mais de 18 meses e nem mesmo o cenário caótico que se avizinha para novembro faz os médicos verem a luz ao fundo do túnel. Apesar de reconhecerem a importância de haver cedências de ambas as partes, a expectativa dos sindicatos para o encontro é baixa.

Jorge Roque da Cunha descarta classificar a reunião desta sexta-feira como decisiva, mas admite que “é uma reunião muitíssimo importante, das mais importantes que temos tido e iremos ter”, frisando que tudo depende do Executivo. O secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) reconhece que “a posição de algum ceticismo [face à reunião desta sexta-feira] tem toda a razão em se manter dado o historial dos últimos meses”. 

Infelizmente, o desenrolar das questões, o agravamento das dificuldades no SNS que tínhamos antecipado há meses ultrapassou as nossas piores previsões. Nesse sentido, esperamos que finalmente o Governo aceite a proposta do horário base de 35 horas, ainda que calendarizado durante a legislatura, e bem como uma valorização salarial de facto para os médicos que neste momento estão no SNS”, vinca o médico, quando questionado pela CNN Portugal, na quarta-feira, sobre as expectativas após as recentes entrevistas do diretor-executivo do SNS (DE-SNS), Fernando Araújo, e do ministro da Saúde, Manuel Pizarro.

Já a FNAM diz mesmo que a reunião desta sexta-feira é a única forma de manter os médicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Quando questionada se considera o encontro de sexta-feira decisivo, diz que sim, “tendo em conta o panorama nacional”.

Chegamos a esta tragédia anunciada, andamos a dizer isto há 18 meses, não há outra alternativa [se não chegar a um acordo] se querem que haja médicos no SNS. É evidente que a expectativa é baixa, tendo em conta uma série de acumular de consequências neste trajeto de 18 meses, como a chantagem feita aos médicos e a propaganda do Governo junto à população”, lamenta a médica.

O diretor-executivo do Serviço Nacional de Saúde não se poupou nas palavras e, em entrevista ao jornal Público, disse mesmo que a falta de um acordo entre as duas partes poderá fazer com que o mês de novembro seja “dramático”, um cenário que a CNN Portugal já tinha avançado e que Joana Bordalo e Sá perspetiva que se alastre para lá de novembro caso a reunião não chegue a um bom porto.

“Infelizmente, esperam-nos meses muito complicados, muito difíceis, em novembro a responsabilidade é inteiramente da equipa do ministral do doutor Manuel Pizarro. Mas estamos disponíveis para um acordo, mas as nossas propostas têm de ser incluídas, não há outra maneira”, vinca a presidente da FNAM.

Os sindicatos alertam também que a falta de um acordo e o não consentimento às suas reivindicações irão aumentar ainda mais o desagrado dos médicos e até potenciar a entrega de mais minutas de recusa a horas extraordinárias quando as estipuladas pela lei já foram ultrapassadas, fragilizando ainda mais os serviços de urgência. Além disso, poderá deixar ainda mais aberta a porta para uma já constante fuga de médicos para o privado ou até mesmo para o estrangeiro, como os mais novos na profissão começam a ponderar de forma mais recorrente.

Jorge Roque da Cunha já deixou claro que está tudo nas mãos do Governo, mas frisa que não tem linhas vermelhas, que o objetivo é mesmo alcançar um acordo “equilibrado” e no qual a classe se reveja.

“Continuamos a colocar todo o nosso empenho para que seja possível um acordo equilibrado e que permita aos médicos sentirem-se revistos nele. Não é má vontade do sindicato, mas não adianta assinar um acordo se os médicos não se revêm nele”, esclarece o secretário-geral do SIM.

As reivindicações dos médicos (que agora chegam a uma proposta conjunta)

Passado ano e meio de negociações falhadas, a FNAM e o SIM vão apresentar esta sexta-feira uma contraproposta conjunta. É certo que o aumento salarial e a redução da carga horária mensal - seja a semanal ou nas escalas de urgência - serão pontos assentes nesta proposta sindical, mas não se sabe ainda em que moldes, até porque os dois sindicatos acabam por ter abordagens distintas. 

A Federação Nacional dos Médicos (que engloba os sindicatos dos médicos do norte, centro e sul) pede a atualização de 30% no salário-base de todos os clínicos, independentemente da especialidade e do regime em que se encontram, se em dedicação plena ou não ou com contrato de trabalho de 35 horas, 40 horas ou 42 horas semanais. Já o Sindicato Independente dos Médicos, diz que “aponta para esse número”, os 30%, mas mostra-se disponível a negociar: “Quero reafirmar o que temos dito, mostrar a nossa disponibilidade para a flexibilidade e para a calendarização”, vinca Jorge Roque da Cunha.

A necessidade de um aumento salarial é um dos pontos em que concordam e um dos fraturantes para que haja um acordo com o Governo, pois apesar de reconhecerem que esta não é apenas uma luta salarial, os dois sindicatos médicos reivindicam a recuperação do poder de compra perdido à boleia da não atualização salarial e da atual inflação.

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Uma das outras exigências dos médicos prende-se com a reposição das 35 horas semanais para todos os clínicos que assim o desejem, assim como a reposição dos dias de férias e da progressão na carreira. E este é outro ponto defendido pelos dois sindicatos e que poderá estar na proposta conjunta que será apresentada esta sexta-feira e que, à data da redação deste artigo, não é ainda conhecida. 

Queremos acabar com a discriminação [dos médicos] face aos restantes trabalhadores da função pública”, que já laboram num regime de 35 horas semanais, esclarece o secretário-geral do SIM.

No que toca ao serviço de urgência, que se tem mostrado o calcanhar de Aquiles do SNS, sobretudo com a entrega em massa de escusas de realização a mais horas extraordinárias para lá das 150 horas anuais impostas pela lei (e já o fizeram mais de 2.500 médicos) e onde o Ministério da Saúde quer apostar, pelo menos em cinco hospitais, em equipas dedicadas apenas a este serviço, a FNAM pede a fixação das 12 horas de carga semanal obrigatória neste serviço, deixando assim para trás as atuais 18 horas que estão em vigor. Mas este é também um dos pontos em que o SIM se mostra aberto a negociar e até mesmo a deixar cair: “Dada a circunstância da situação de hoje e no sentido de mostrarmos mais uma vez a nossa vontade de chegar a um acordo realista”, esclarece Jorge Roque da Cunha, o SIM reconhece que pode ceder e que o número de horas semanais se mantenha, assim, nas 18 horas.

Na última reunião entre sindicatos e Governo, “as propostas do SIM tiveram acolhimento no sentido de não se retirar ao modelo B das Unidades de Saúde Familiar (USF) as suas mais-valias como inicialmente pretendido”, sendo esta uma das reivindicações do SIM, mas “as propostas de melhoria foram ignoradas e a dedicação plena manteve-se obrigatória”, lê-se no site do sindicato. A FNAM quer ainda o reconhecimento do internato no primeiro grau da carreira médica.

Tanto a FNAM como o SIM mostram-se, no entanto, disponíveis para que as suas exigências sejam negociadas e calendarizadas durante a legislatura, de modo que seja assegurada a sua execução nos próximos três anos.

“Não queremos tudo para ontem, os problemas que se foram acumulando nos últimos dez anos não se resolvem de um dia para o outro, podem ser calendarizados”, diz-nos Jorge Roque da Cunha. Já Joana Bordalo e Sá é mais taxativa no que toca às exigências, mas também mostra abertura para a conversação.

É preciso que o Ministério da Saúde concorde [com a proposta conjunta], mas [a aplicação das medidas] pode ser faseada, por não ser no imediato, mas isso são pormenores da mesa negocial”, diz-nos, em conversa telefónica.

O que o Executivo propôs até agora (sempre focada na dedicação plena)

Em julho deste ano, mais de um ano após se terem iniciado as negociações entre sindicatos médicos e Governo, as primeira propostas concretas do Executivo chegaram no verão, em que o Ministério da Saúde afirmou que a sua proposta representava um aumento de 24% do salário dos médicos. Uma ideia que tanto a FNAM como o SIM rejeitaram de imediato, uma vez que os médicos que não pretendam transitar para o regime de dedicação plena, ou integrar uma USF ou Centros de Responsabilidade Integrado (CRI), teriam, de acordo com esta proposta do Ministério, um aumento remuneratório imediato médio de 1,8%, a que se somam os aumentos salariais para a Administração Pública de 2% ao ano até 2026.

Dois meses depois, em setembro deste ano, o Ministério da Saúde propôs um aumento de 6,3% (horário de 35 horas semanais), 3,6% (horário de 40 horas semanais) e 2,7% (42 horas semanais em dedicação exclusiva). Para os médicos internos, foi proposto um aumento salarial de 3% (internos de formação geral), 4,75% (médicos dos três primeiros anos de formação específica) e de 9,8% (médicos a partir do quarto ano de especialidade). No caso dos médicos nos cuidados de saúde primários, Manuel Pizarro pretende um regime de remuneração associado ao desempenho, que vem à boleia da passagem das USF de modelo A para modelo B. Mais de mil médicos de família do Serviço Nacional de Saúde assinaram, esta semana, uma carta em que se opõem às propostas do Governo que vão regular o funcionamento das Unidades de Saúde Familiar (USF).

Face à rejeição e contestação da classe, Manuel Pizarro subiu a parada salarial: 5,5% de aumento salarial para todos os médicos, mais um suplemento de 500 euros para os que optem por fazer urgência. Assim sendo, segundo as pretensões do Executivo, se o médico quiser voltar ao regime das 35 horas semanais, o Governo compromete-se a manter o salário pago no contrato de 40 horas, assim como a dar o aumento de 5,5% e a manter as 150 horas extraordinárias anuais. No entanto, o descanso compensatório passa a ser feito sem prejuízo no horário. Já quem optar pela dedicação plena, o objetivo do Executivo é dar um suplemento de 25%, mas esse aumento traz um outro de reboque: as horas anuais extraordinárias passam de 150 para 250 horas em 2024 e 2025, uma proposta que gerou muita contestação na classe, mesmo com o objetivo do Governo de reduzir estas horas anuais extraordinárias para 200 em 2026. Quanto às urgências, é-lhes garantido uma distância máxima de 30 quilómetros da sua área de residência. Os médicos que quiserem a dedicação plena têm também o descanso compensatório sem prejuízo no horário.

Mais uma vez, os sindicatos bateram o pé à proposta do Executivo, acusando Manuel Pizarro de querer que os médicos trabalhem mais horas extraordinárias do que aquelas que a lei prevê e permite.

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