Equipas dedicadas à urgência agrada a médicos, mas há avisos: é preciso uma especialidade, formação e, sobretudo, regulamentação

26 out 2023, 07:30
Médico

O anúncio de Manuel Pizarro não é uma novidade, o que é novo é a celeridade com que o ministro da Saúde quer equipas dedicadas às urgências nos cinco principais hospitais do país. Os médicos veem com bons olhos uma melhor organização deste serviço, mas estão céticos quanto à capacidade de tornar o modelo atrativo em tão pouco tempo

O Ministério da Saúde pretende criar, até ao final do ano, equipas dedicadas nas urgências dos cinco maiores hospitais do país: São José e Santa Maria em Lisboa, São João e Santo António no Porto, e Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Os médicos aplaudem a decisão, mas pedem regulamentação e defendem a importância de criar a especialidade de medicina de Urgência, chumbada no ano passado. Quanto aos prazos de Manuel Pizarro, os clínicos com quem a CNN Portugal conversou mostram-se céticos quanto à celeridade da aplicação do modelo, que se assume urgente face aos variados constrangimentos que os serviços de urgência têm sofrido de norte a sul do país.

“Há 20 anos que andam a anunciar isto”, começa por dizer Vítor Almeida, médico anestesista e ex-presidente do Colégio da Competência em Emergência Médica, que reconhece que “este tipo de medidas não resolve o conflito claro que existe entre a classe médica e o primeiro-ministro”. 

Vítor Almeida considera que para esta medida “poder ser credível e eficiente exige a criação da especialidade de urgência e emergência”, que foi, no ano passado, chumbada pela Assembleia Geral da Ordem dos Médicos. 

O caminho das equipas fixas é um caminho correto, mas é absolutamente crucial que exista uma base de formação e preparação uniforme de norte a sul do país”, diz o clínico, destacando que “se formamos 100 a 120 médicos por ano com essa especialidade criamos a coluna dorsal que está em falta”.

Também Jorge Roque da Cunha, que diz que este “é mais um anúncio tardio” se mantém cético quanto à rapidez que Manuel Pizarro espera conseguir, até porque defende que este é um tema que, por si só, requer discussão e análise: “é preciso legislação, debate, que o sistema seja atrativo, encontrar saídas para os médicos que depois dos 50-55 anos não sejam obrigados a ficar até a idade de reforma na urgência”. 

Acho que é um wishful thinking, é uma intenção, mas se [o Ministério da Saúde] não tem nenhum trabalho elaborado para novembro, dificilmente a 1 de janeiro estará implementado [o modelo da criação de equipas dedicadas]. Era essencial que se passasse do anúncio à prática, cada dia que passa a situação piora”, diz o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM).

Da mesma opinião é Nelson Pereira, diretor do Serviço de Urgência (SU) do Hospital São João, uma das unidades no país onde já existe uma equipa dedicada ao SU e que fará parte deste novo projeto do Executivo. “Esta ideia é um caminho que também defendemos, um caminho de médio e longo prazo, sabemos que não vai resolver agora o que se vive no dia-a-dia, não vai resolver no imediato, mas é um caminho que vale a pena percorrer e do qual estamos de acordo”, adianta o médico, que reconhece que todo o processo será demorado e que dificilmente será colocado em prática ainda este ano, como o ministro quer.

Uma coisa de cada vez, primeiro é preciso aprovar a regulamentação, vai ser objeto de negociações com os sindicatos, sabemos que demora mais do que o desejável, mas mal isso esteja disponível esperemos que [o Governo] esteja interessado em implementar. É do nosso interesse [médicos] e das instituições”, admite.

Já depois da entrevista dada ao programa Hora da Verdade do jornal Público e da Rádio Renascença, o ministro da Saúde admitiu que a criação de equipas dedicadas às urgências não será um “remédio universal, não vai resolver tudo” a curto prazo, até porque, afirmou, o modelo “não é aplicável a todos” os hospitais e “não há uma solução única e simples” que resolva o caos nas urgências que têm fragilizado o SNS. E há quem diga mesmo que a solução apresentada esta quarta-feira não só não irá resolver a questão das urgências, como poderá agravar outros serviços no SNS.

Acho que esta solução das equipas fixas não vai realmente resolver o problema do SNS, nem dos doentes, nem das urgências. Esta solução, no fundo, leva-nos a não tratar a causa do problema: o estado do SNS é o resultado de medidas não adequadas e até da inexistência de medidas ao longo dos anos”, afirma Lèlita Santos, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

“O que é importante é dar soluções de base, os doentes que não tem situações urgentes ou emergentes devem ter um médico para serem observados, tem de haver mais médicos nos cuidados primários. E é preciso apoios comunitários, a maior parte dos pacientes que vão à urgência são idosos, esta explosão demográfica tem de ser controlada”, frisa a médica, que defende que ao alocar médicos a estas equipas dedicadas poderão também ficar desfalcados outros setores, como as consultas e cirurgias, agravando o também crónico problema dos tempos e listas de espera.

Médicos pedem regulamentação e cenário atrativo

Esta não é a primeira vez que Manuel Pizarro anuncia a pretensão de criar equipas dedicadas apenas ao serviço de urgência, que se tem assumido como principal calcanhar de Aquiles do SNS, sobretudo depois de mais de dois milhares de médicos terem apresentado minutas de recusa à realização de mais horas extraordinárias para lá das 150 horas anuais estipuladas por lei. Em janeiro deste ano, o ministro já tinha dito que pretendia ter este tipo de equipas nos hospitais mais centrais do país, mas só agora anunciou em que moldes.

Estas equipas irão ‘nascer’ com a criação de Centros de Responsabilidade Integrados, um modelo que o próprio ministro diz ser “inspirado no modelo das Unidades de Saúde Familiar (USF)”. Segundo a informação que consta no site do SNS, os CRI são estruturas de gestão intermédia, dependentes dos conselhos de administração dos hospitais. E esta dependência é apontada por Jorge Roque da Cunha, que diz que espera “que seja cumprido o compromisso do ministro da Saúde de colocar também à apreciação sindical” esta questão. 

O que tem acontecido neste momento em relação ao CRI é que dependem exclusivamente da vontade das administrações e da capacidade de organização de alguns médicos. Não é um sistema que esteja devidamente regulamentado, era importante que além do conceito seja substanciado em matéria jurídica”, diz, voltando a frisar a importância de debate e legislação desta medida agora anunciada.

E é aqui que está a grande diferença às equipas dedicadas às urgências que já existem, por exemplo, em alguns hospitais: vai passar a haver uma incentivos e uma regulamentação, algo que tem vindo a ser debatido nos últimos meses e que levou mesmo a chegou à existência de um princípio de acordo com o Governo.

“Temos exigido a sua regulamentação [destas equipas], porque estão completamente desprotegidos pelos acordos de trabalho, desde limites de hora e idade à impossibilidade de transitar para outro trabalho não tão pesado com a urgência”, esclarece o sindicalista, revelando que este tipo de equipas existe já nos hospitais São João, Fernando da Fonseca [Amadora-Sintra] e Beatriz Ângelo [Loures], “em que um conjunto de colegas que tem como vocação trabalhar exclusivamente em serviço de urgência entendeu, em determinado momento, iniciar o seu caminho [na criação deste tipo de equipas]”. Este tipo de regulamentação nas equipas dedicadas às urgências já existe no Hospital de Cascais, tendo sido selado pelo SIM, pela Federação Nacional dos Médicos, pelo Governo e pelo Lusíadas, uma vez que se trata de uma parceria público-privada (PPP).

No meio desta discussão há que salvaguardar os direitos dos médicos do Serviço de Urgência, é um trabalho muito duro, muito exigente, 24 horas sob 24 horas, pelo que os profissionais devem ter a sua vida laboral regulamentada, de forma a poderem dedicar-se esta causa essencial para o país e a serem devidamente remunerado e com horários compatíveis com a vida pessoal”, adverte o médico Vítor Almeida, que reconhece que a falta de atratividade, sobretudo face ao setor privado, é um dos maiores entraves a que os médicos se queiram dedicar às urgências.

Lèlita Santos, especialista em Medicina Interna, é bastante crítica a esta solução apresentada por Manuel Pizarro e diz mesmo que não é benéfica nem para os médicos: “Do lado dos médicos também não é bom. Que médicos vão ser colocados nestas equipas? Internistas? Médicos contratados como tarefeiros como até agora estão? Se isso acontecer continua o mesmo problema e estes colegas não têm vínculo à instituição, faltam muitas vezes sem se preocupar com o serviço, não vestem a camisola. Além disso, que formação têm de base para atender estes problemas?”, questiona.

Há oito ou nove anos formaram-se equipas fixas e estão agora onde? Desapareceram. A remuneração até era interessante, mas as pessoas desgastam-se, caem na rotina do toca-e-foge”, diz, afirmando que o desgaste da dedicação exclusiva às urgências poderá ser um entrave para uma maior adesão.

Nelson Pereira, diretor do Serviço de Urgência do Hospital São João, diz que o que está em agora em cima da mesa “é um modelo de regulamentação e de potenciais incentivos à criação das equipas dedicadas às urgências”, uma medida que olha com agrado e que espera que seja implementada. 

No Hospital São João, existem equipas dedicadas às urgências há mais de 20 anos. No entanto, esta equipa tem sido um espelho do enfraquecimento do SNS. “É verdade que temos uma equipa, mas também é verdade que ao longo dos últimos anos as condições que nos permitam manter a equipa foram desaparecendo e a equipa foi diminuindo na dimensão”, reconhece o médico. 

Com este novo modelo, o médico espera, “no imediato”, recrutar “pessoas com vontade de fazer urgência, como aquelas que estão connosco, temos especialistas de Medicina Interna, Cirurgia Geral, Medicina Geral e Familiar”. Nélson Pereira diz que esta medida pode, na verdade, ser “um espaço para [estes médicos] fazer o que gostam e pôr o seu trabalho ao serviço dos utentes”, com atrativos. “Gostaríamos muito de ter ferramentas disponíveis para sermos atrativos para outros médicos”, diz.

E a parte da atratividade tem sido e pode continuar a ser um entrave a que os médicos se queiram dedicar em exclusivo às urgências. Ana Reis, médica de Medicina Interna, esteve durante cinco anos na equipa dedicada à urgência do São João e reconhece, em declarações à CNN Portugal, que “é difícil” encontrar profissionais que queiram “dedicar a sua vida só ao Serviço de Urgência” e que tenham “noção” de que vão trabalhar apenas neste regime e “com a noção de que vão trabalhar a um ritmo muito acelerado e um desgaste muito rápido” e o facto de, até agora, não haver regulamentação e incentivos dificultou que este tipo de equipas exista noutros hospitais.

Médicos defendem especialidade. Medicina Interna continua a fechar a porta

A Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos chumbou, em dezembro do ano passado, a criação da nova especialidade de Medicina de Urgência. A especialidade era apoiada por antigos e atuais diretores de serviços de urgência, mas considerada inoportuna pelos médicos de Medicina Interna

E Lèlita Santos, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, continua a defender que esta não é a solução. “Já existe a competência em Emergência Médica, há muitos colegas que a têm e acho que essa especialidade é demasiado redutora, tanto para o médico como para o doente”, diz a especialista em Medicina Interna, que considera que a sua criação “não resolve a curto prazo o problema”. 

“Para formar um médico destes quem o vai fazer? Quanto tempo é necessário? Cinco anos? Isto não vai ser solução nem a curto nem a médio prazo. Temos é que voltar a atrair médicos de todas as áreas para os hospitais para que possam ter um desempenho maior na urgência, para ver o doente do princípio ao fim”, vinca a médica.

No entanto, os restantes entrevistados pela CNN Portugal dizem que a especialidade pode mesmo ser o caminho. Vítor Almeida continua a defender que a criação desta especialidade é “essencial” e que agora faz mais sentido do que nunca e rejeita que o anúncio do ministro da Saúde seja “um penso rápido”. “Pode ser estruturante se [a medida] for implementada em sintonia com a existência da especialidade, não vai resolver o problema que temos agora em mãos, esta necessidade de vivermos das horas extraordinárias”, diz o médico.

Nélson Pereira não acredita que este anúncio de Manuel Pizarro abra a porta à criação de uma nova especialidade ou competência, embora esse seja o seu desejo. “Obviamente, no momento inicial, temos de contar [nestas equipas] com médicos que gostem de fazer urgência, diria sobretudo médicos especialistas em Medicina Interna. Mas se me pergunta a minha visão de médio e longo prazo, o ideal é que estes médicos destas equipas possam um dia ter a especialidade de Medicina de Urgência e creio que mais tarde e mais cedo esta faça o seu caminho”, esclarece o diretor do serviço no São João.

Quando questionado se a criação destas equipas poderá abrir a porta à chumbada criação da especialidade ou competência de medicina de urgência, Nélson Pereira diz que “uma coisa não tem necessariamente a ver com outra”. “[Ter] Organizações com equipas dedicadas [às urgências] faz mais sentido se a especialidade vier a existir, mas não é necessário que assim seja. O que importa dizer nesta fase é que a criança das equipas dedicadas e a eventual especialidade não pretende nem tem como objetivo e efeito retirar espaço a nenhuma especialidade, precisamos de todas, cirurgia geral, medicina interna, de todas as especialidades. Não está em causa o espaço dessas especialidades, desses colegas”.

Jorge Roque da Cunha também não crê que a criação de equipas dedicadas às urgências vá, de forma direta e imediata, levar à criação de uma nova especialidade médica, mas espera que o tema volte a ser discutido. “Entendemos que essa especialidade faz todo o sentido e, se implementada em Portugal à semelhança do que acontece em muitos países, não temos qualquer dúvida de que os colegas da Medicina Interna, da Cirurgia Geral e da Anestesiologia ficariam libertos para as tarefas essenciais, como consultas externas e cirurgias, para diminuir as listas de espera”.

“O primeiro passo será sempre dado pela Ordem dos Médicos para a criação da especialidade, o que não significa que esta intenção [de criar equipas dedicadas] não possa ajudar nesse processo, pode ser um processo que seja desenvolvido de mãos dados, mas é preciso que aquilo que são as competências da Ordem dos Médicos esteja devidamente salvaguardado”, conclui o médico Vítor Almeida.

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