Qual o interesse de Putin na Ucrânia? O conflito explicado

22 fev 2022, 11:49
Um soldado russo segura uma criança durante a operação de evacuação de civis da região de Donbass para a Rússia. Foto: Vladimir Smirnov\TASS via Getty Images

Vladimir Putin assinou esta segunda-feira uma declaração em que reconhece como independentes os territórios de Donetsk e Lugansk. Moscovo mostrou-se ainda disponível para enviar os seus militares para a região para ajudar a "manter a paz". A tensão atinge o seu ponto mais alto. O presidente ucraniano garantiu que as fronteiras do país "vão manter-se como estão, apesar das declarações russas" e União Europeia prepara sanções contra a Rússia

Após meses de provocações e do reforço do contingente militar ao longo da fronteira da Ucrânia, a Rússia avançou com uma declaração unilateral de independência das regiões ucranianas de Donetsk e Lugansk. As condenações da comunidade internacional sucederam-se, desde o presidente dos Estados Unidos aos representantes da União Europeia. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, escreveu no Twitter que esta é uma "flagrante violação do direito internacional". A União Europeia vai decidir as sanções a impor à Rússia esta terça-feira à tarde, revelou o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell.

Como é que chegámos a este ponto?

A Rússia tem vindo a endurecer o seu controlo militar à volta da Ucrânia desde o ano passado, acumulando dezenas de milhares de tropas, equipamentos e artilharia às portas do país. Nas últimas semanas, o turbilhão de esforços diplomáticos com vista a aliviar as tensões revelou-se inconclusivo.

Uma escalada de bombardeamentos no leste da Ucrânia e a explosão de um veículo na região de Donbas, controlada pelos separatistas, aumentaram os receios de que Moscovo possa estar a incitar a violência como justificação para uma invasão. As mais recentes declarações de Vladimir Putin esclareceram quais seriam os planos de Moscovo.

A escalada no longo conflito entre a Rússia e a Ucrânia desencadeou a maior crise de segurança no continente desde a Guerra Fria, fazendo emergir o fantasma de um confronto perigoso entre as potências ocidentais e Moscovo.

Qual é a situação na fronteira?

Atualmente, mais de 150 000 soldados russos cercam a Ucrânia como uma ferradura em três frentes, de acordo com as estimativas dos serviços secretos dos EUA e da Ucrânia. Estes soldados têm ordens para entrar nas regiões de Donetsk e Lugansk com o argumento de que poderão ajudar na "manutenção da paz" na região.

A NATO aumentou a predisposição da sua força de resposta rápida, ao mesmo tempo que os países membros colocam tropas a postos e enviam batalhões, aviões e navios para a região. Os EUA ordenaram que fossem enviados mais 3000 soldados para a Polónia, elevando o número total de reforços enviados para a Europa nas últimas semanas para cerca de 5000. Os EUA dizem que não têm intenção de enviar tropas para a Ucrânia, que não é membro da NATO.

Mapa: Distribuição de meios da NATO na frente leste

Biden e os líderes europeus avisaram que a Rússia irá sofrer sérias consequências, incluindo sanções, caso Putin avance com uma invasão. Mas isso não impediu a Rússia de continuar a reforçar as suas posições militares. No final de 2021 e no início de 2022, imagens de satélite revelaram novas mobilizações de tropas, tanques, artilharia e outros equipamentos russos a surgirem em vários locais, incluindo junto ao leste da Ucrânia, à Crimeia e à Bielorrússia, onde as forças russas participaram em exercícios conjuntos com o aliado internacional mais próximo de Moscovo.

Apesar de receber financiamento, formação e equipamentos dos EUA e de outros países membros da NATO, os especialistas dizem que a Ucrânia seria significativamente superada pelas forças armadas da Rússia, que têm sido modernizadas sob a liderança de Putin. Se tiver início uma guerra total entre os dois países, o número de mortos civis poderá ser da ordem das dezenas de milhares e o de refugiados superior a 5 milhões, de acordo com algumas estimativas.

Que fatores abriram o caminho para o conflito?

A Ucrânia foi uma pedra basilar da União Soviética até 1991, altura em que votou esmagadoramente pela independência, um acontecimento que acabou por ser a sentença de morte de uma superpotência enfraquecida.

Após o colapso da União Soviética, a NATO avançou para Leste, abarcando a maioria das nações da Europa de Leste que tinham estado na órbita comunista. Em 2004, juntaram-se à NATO as ex-repúblicas soviéticas do Báltico, Estónia, Letónia e Lituânia. Quatro anos mais tarde, a organização declarou a sua intenção de propor a adesão à Ucrânia algures num futuro distante – cruzando uma linha vermelha para a Rússia.

Putin já afirmou que vê a expansão da NATO como uma ameaça existencial, e a perspetiva da Ucrânia se juntar à aliança militar ocidental como um “ato hostil”. Em entrevistas e discursos, reforçou a sua visão de que a Ucrânia faz cultural, linguística e politicamente parte da Rússia. Ainda que uma fração da população de língua russa no leste da Ucrânia seja da mesma opinião, a população mais nacionalista de língua ucraniana na parte ocidental do país tem apoiado historicamente uma maior integração com a Europa. Num artigo escrito em julho de 2021, Putin sublinhou a sua história comum, descrevendo russos e ucranianos como “um só povo”.

Os ucranianos, que ao longo das últimas três décadas procuraram estar mais alinhados com as instituições ocidentais, como a União Europeia e a NATO, reagiram contra essa ideia. No início de 2014, os protestos em massa na capital Kiev, que ficaram conhecidos como Euromaidan, forçaram a saída de um presidente favorável à Rússia, depois de este ter recusado assinar um acordo de associação com a UE.

A Rússia respondeu com a anexação da península ucraniana da Crimeia e a incitação a uma rebelião separatista no leste da Ucrânia, que veio a assumir o controlo de parte da região de Donbas. Apesar de um acordo de cessar-fogo em 2015, os dois lados ainda não alcançaram uma paz duradoura, e a linha da frente mantém-se praticamente inamovível desde então. Já morreram quase 14 000 pessoas no conflito e existem 1,5 milhões de deslocados internos na Ucrânia, segundo o governo ucraniano.

Que pretende Putin?

Putin tem conseguido aumentar a pressão sobre o Ocidente ao longo de meses sem disparar um único tiro nem atravessar com um tanque a fronteira para a Ucrânia.

Moscovo tem sido acusada de estar a pôr em prática uma guerra híbrida contra a Ucrânia, usando ciberataques, pressão económica e propaganda para acicatar as tensões. O Departamento de Estado afirmou no início de fevereiro que a Rússia estava preparada para fabricar “um pretexto para uma invasão” através de um vídeo de bandeira falsa.

Ainda assim, as intenções do Kremlin no país têm, em grande parte, permanecido um mistério. Porém aquilo que Putin tem deixado claro é que encara a expansão da NATO para Leste como uma ameaça existencial à Rússia.

"A Ucrânia moderna foi criada pela Rússia comunista", argumentou Vladimir Putin no discurso esta segunda-feira à noite. Foto: Alexei Nikolsky/AP

Em dezembro, Putin apresentou aos EUA e à NATO uma lista de exigências de segurança. A principal delas é a garantia de que a Ucrânia nunca entrará para a NATO e que a aliança reduza a sua presença militar na Europa Oriental e Central - propostas que os EUA e os seus aliados já definiram várias vezes como inviáveis.

Putin indicou que não estava interessado em longas negociações sobre o assunto. “São vocês que têm de nos oferecer garantias, e devem fazê-lo imediatamente, já”, disse durante a sua conferência de imprensa anual no final do ano passado. “Estamos a enviar mísseis para perto da fronteira com os EUA? Não, não estamos. Foram os Estados Unidos que vieram a nossa casa com os seus mísseis e já estão à nossa porta.”

As negociações de alto nível entre o Ocidente e a Rússia terminaram em janeiro sem nenhum avanço. O impasse deixou os líderes europeus envolvidos num frenesi diplomático, explorando a possibilidade de um canal de negociação estabelecido entre França, Alemanha, Rússia e Ucrânia para resolver o conflito no leste da Ucrânia - conhecido como as negociações do Formato da Normandia - poder abrir um caminho para aliviar a crise atual.

Numa conferência de imprensa com o novo chanceler alemão Olaf Scholz em 16 de fevereiro, Putin repetiu as alegações infundadas de que a Ucrânia está a levar a cabo um “genocídio” contra os falantes de russo na região de Donbas e apelou para que o conflito seja resolvido através dos acordos de paz de Minsk - repetindo uma retórica semelhante à que foi usada como pretexto para anexar a Crimeia.

Moscovo e Kiev continuam em desacordo acerca dos principais elementos do acordo de paz assinado em 2015. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, declarou recentemente que não gosta de um único ponto dos acordos de Minsk, que exigem um diálogo acerca das eleições locais em duas regiões separatistas apoiadas pela Rússia no leste do país e que levariam igualmente - ainda que não seja claro em que sequência - ao restabelecimento do controlo por parte do governo ucraniano das suas fronteiras orientais. Os críticos afirmam que o acordo pode dar a Moscovo uma influência excessiva sobre a política ucraniana.

Putin respondeu de forma incisiva, dizendo que, independentemente da opinião de Zelensky acerca do plano, este tem ser implementado. “Goste ou não goste, é esse o seu dever, meu querido”, disse Putin durante uma conferência de imprensa ao lado do presidente francês Emmanuel Macron. Zelensky, um ex-comediante e estrela de TV, obteve uma vitória esmagadora nas eleições de 2019 com a promessa de acabar com a guerra em Donbas, mas pouca coisa mudou. Em resposta a uma pergunta acerca da linguagem severa e pouco diplomática de Putin, Zelensky respondeu em russo, afirmando secamente: “Nós não lhe pertencemos.”

Qual é a perspetiva da Ucrânia?

O presidente Zelensky tem subestimado repetidas vezes o perigo de uma invasão russa, observando que a ameaça existe há anos e não aumentou nos últimos meses. O clima em Kiev é semelhante, com os ucranianos a prosseguirem a sua atividade quotidiana, apesar dos alertas internacionais e à medida que os governos estrangeiros iniciam a retirada de pessoal diplomático da capital.

O governo da Ucrânia tem vindo a insistir que Moscovo não pode impedir Kiev de construir laços mais estreitos com a NATO, nem interferir na sua política interna ou externa. “A Rússia não pode impedir a Ucrânia de se aproximar da NATO e não tem o direito de opinar em temas relevantes”, disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros em comunicado à CNN.

As tensões entre os dois países têm sido exacerbadas pelo agravamento da crise energética ucraniana que Kiev acredita ter sido provocada intencionalmente por Moscovo. A Ucrânia vê o controverso gasoduto Nord Stream 2 - uma ligação direta do gás russo à Alemanha - como uma ameaça à sua própria segurança.

O Nord Stream 2 é um dos dois gasodutos subaquáticos que a Rússia instalou no Mar Báltico, como complemento à sua tradicional rede de gasodutos terrestres que atravessa a Europa de Leste, incluindo a Ucrânia. Kiev considera a presença dos gasodutos na Ucrânia como um elemento de proteção contra uma invasão da Rússia, já que qualquer ação militar poderia interromper o fluxo vital de gás para a Europa.

É apenas um dos inúmeros desafios que o governo de Zelensky tem de enfrentar. O ex-actor, que interpretou o papel de presidente na televisão ucraniana, tem tido um vigoroso batismo de fogo na política da vida real desde que assumiu o cargo em 2019.

A popularidade do seu governo estagnou perante uma multiplicidade de desafios políticos domésticos, incluindo uma recente terceira vaga de infeções por Covid-19 e uma economia em dificuldades.

Muitos ucranianos estão insatisfeitos porque o governo não cumpriu as promessas que o levaram ao poder, incluindo o combate à corrupção no sistema judicial do país. Mas a preocupação mais urgente prende-se com a incapacidade, até à data, de Zelensky em conseguir devolver a paz ao leste do país.

Perante os avisos por parte dos líderes ocidentais de uma invasão russa “a qualquer momento”, o presidente ucraniano declarou o dia 16 de fevereiro como o Dia da Unidade Nacional, insistindo que a Ucrânia não se sente intimidada por “nenhum inimigo” e que será capaz de “se defender.”

“Estamos a fazer o nosso melhor para defender os nossos interesses e temos conquistado o apoio diplomático de quase todos os líderes do mundo civilizado”, disse Zelensky num discurso em vídeo, acrescentando que “a segurança da Europa e de todo o continente depende da Ucrânia e do nosso Exército.”

Nota: Artigo adaptado a partir de um texto de Eliza Mackintosh, publicado na CNN Internacional. Matthew Chance e Laura Smith-Spark da CNN contribuíram para esta reportagem.

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