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Colunista e comentador

"O regime de Pinto da Costa ruiu ao não saber lidar com elementares princípios democráticos"

16 nov 2023, 16:07

Rui Santos escreve sobre a tumultuosa AGE do FC Porto, das suas causas e consequências: "não foi um acto isolado. É uma marca de um regime que nunca soube (con)viver com a diferença, o debate, o pluralismo — e tentou sempre utilizar a força para calar e intimidar. Tudo sob o patrocínio de Pinto da Costa, que montou um cordão de segurança à sua volta e se rompeu quando apareceu alguém a não mostrar medo"

Aquilo que aconteceu na Assembleia Geral Extraordinária (AGE) do FC Porto é um retrato muito aproximado da realidade do regime construído por Pinto da Costa nos últimos 40 anos.

A maior mensagem que esta AGE expressou foi a inabilidade manifestada pelos actuais órgãos sociais, desde logo a Mesa da Assembleia mas também a Direção do clube, para lidar com uma situação decorrente de um banal acto democrático e plural.

Nunca foi um hábito organizar Assembleias Gerais muito concorridas porque os sócios do FC Porto, aqueles que poderiam ter a vontade de expressar as suas ideias, eventualmente divergentes com aquelas que eram expressadas pelo regime, não arriscavam comparecer, porque já sabiam que esses espaços eram dominados por “adeptos” afectos às claques.

Ficavam em casa e era tudo aprovado consoante a vontade da nomenclatura.

E nos momentos de “eleições” — eleições com todas as aspas possíveis — acontecia o mesmo.

A mais profunda repulsa por uma elementar cultura democrática ficou bem à vista de todos no dia 13 de Novembro de 2023 - uma das datas mais negras da história do FC Porto.

Esta AGE não foi um acto isolado. É uma marca de um regime que nunca soube conviver com a diferença, o debate, o pluralismo — e tentou sempre utilizar a força para calar e intimidar. Tudo sob o patrocínio de Pinto da Costa, que montou um cordão de segurança à sua volta e se rompeu quando apareceu alguém a não mostrar medo.

Os protagonistas principais da AGE, que conduziram  a sessão sob a impotência de Lourenço Pinto, Pinto da Costa, Adelino Caldeira e outros rostos de um regime déspota e construído segundo a asserção “se não vais a bem, vais a mal”, nem se deram conta, por acharem “normal”, dos custos de reputação que infligiram ao FC Porto, quando não mostraram o mínimo respeito pelo portismo daqueles que pensam diferente de uma ideia única e concentracionária de poder.

É interessante verificar como alguns portistas que têm acesso à comunicação social, seja através da presença em painéis televisivos, quer através da escrita, com maior ou menor regularidade, vêm agora lamentar o sucedido, ao ponto de dizerem que algo semelhante não pode jamais voltar a acontecer na vida do FC Porto.

Não foram eles que, em conluio,  alimentaram este ‘monstro”, anos e anos a fio, mal tratando aqueles que, mesmo estando fora das dinâmicas de comunicação interclubísticas, diziam que o caminho do unanimismo em torno de uma figura, a fazer tudo para ser o centro do poder e utilizando todos os expedientes para gerar e gerir supremacias, alguns dos quais há anos sob investigação, não era exactamente o melhor, considerando os valores supremos da coexistência humana?

O que aconteceu na AGE do FC Porto não foi amadorismo puro. Foi amadorismo cultivado em cima de uma ideia totalitária, com portas fechadas à tolerância democrática.

Uma ideia totalitária fechada em torno de um “núcleo duro”, que defende o tesouro das suas compensações e interesses, em contraste com um clube que, em contrapartida, foi colocado na ruína financeira.

Toda a gente sabe e toda a gente cala e consente o negócio dos bilhetes e das intermediações, cujo produto é, entre outros, a cola que une a estratégia à sua consumação, através da força e da ameaça, seja em cima de árbitros, jornalistas, adversários, e até mesmo sobre jogadores e treinadores, políticos, magistrados ou polícias.

O FC Porto consentiu — as forças vivas mas intimidadas do FC Porto — mas o País também consentiu, porque houve gente com responsabilidades em Portugal que se deixou engolir pelo turbilhão.

Toda a gente sabe que é assim, mas toda a gente optou por consentir — e o resultado é o que saltou à vista, agora de uma forma estrondosa, nesta AGE, com confrontos entre sócios que deviam, em última análise, respeitar-se uns aos outros, se existisse a vontade inegociável de proteger a imagem e a reputação do FC Porto.

As causas do que aconteceu na AGE estão identificadas, mas há uma outra que não é despicienda: ter aparecido uma figura com peso, André Villas-Boas (AVB), a não mostrar MEDO. Essa é a palavra-chave. Mas é também a atitude-chave. E isso resulta do tempo que AVB gastou a preparar a sua candidatura. Esse tempo não está apenas relacionado com cursos (de gestão) e preparação de dossiês; tem a ver com questões relacionadas com segurança - a própria segurança de quem se acha no legítimo direito de concorrer a umas eleições com características muito específicas.

Já vimos as causas. Vamos às consequências.

O regime abalou. O regime já se viu acossado noutros momentos, mas conseguiu resistir porque, entre balões de oxigénio de natureza financeira e resultados desportivos (daí a importância que Pinto da Costa atribui a Sérgio Conceição, mesmo que isso corresponda à falência da autonomia da SAD), e sobretudo porque ninguém com peso ousara comparecer e fazer frente à narrativa do regime, muito profícua na dinâmica de criar bodes expiatórios para se desviar as atenções da falência da gestão, foi possível ir mantendo de pé o edifício que ora está na iminência de ruir.

As consequências mais imediatas são “confirmar” AVB como candidato; deixar cair a revisão estatutária; eleições a realizar em Abril, que vão ficar muito dependentes dos resultados da equipa de futebol (por isso já disse e escrevi que Sérgio Conceição vai ter uma influência muito grande no próximo acto eleitoral) e, acima de tudo, dar como inevitável que esta revolução não pode ser feita apenas com cravos (como também já referi), embora neste caso ainda falte apurar se as alas mais radicais que o FC Porto consentiu terem voz e comando vão dar espaço a André Villas-Boas, e se este vai ter a capacidade suficiente para não entrar em negociações com o “grupo Wagner”, perdão, com o grupo que sempre guardou as costas do actual presidente, em troca de benefícios super questionáveis.

O FC Porto precisa de abandonar a fase do “FC Porto bate” para entrar na fase do “FC Porto debate”. O FC Porto está a entrar, por isso, num momento histórico.

Pinto da Costa já não tem a energia que lhe permitiu ganhar “muitas vidas”, já se percebeu, e talvez ainda tente um golpe de teatro (deixar cair, contra a sua natureza, algumas das figuras que têm ajudado a fabricar o seu veneno, como Adelino Caldeira, Fernando Gomes, e Francisco J. Marques, na comunicação) num derradeiro esforço para salvar a cara de um regime que nunca quis regenerar. Mas o dano está feito.

Ainda há muito pó debaixo das pontes, mas o FC Porto, a partir de agora, nunca mais será o mesmo.

E que tenham um mínimo de vergonha aqueles que vão preparar o pulo da cerca, como é o caso de alguns “Pintos” da comunicação social, que alimentaram e alimentam um regime ditatorial, sem a menor cultura democrática, há muitos anos, na sombra de ex-jogadores desestruturados que se colocaram sempre de joelhos perante os salamaleques do sistema e as suas migalhas.

O FC Porto é e tem de ser muito mais do que aquilo que mostrou na noite de 13 de Novembro de 2023.

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