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Colunista e comentador

A profunda hipocrisia em torno da Ucrânia

27 fev 2022, 16:41

A forma como a comunidade internacional (não) reagiu à anexação da Crimeia abriu o apetite a Putin e aos seus sequazes. A realização do Mundial na Rússia, em 2018, foi um sinal de fraqueza que merece ser interpretado

Este não é o tempo do futebol.

O tempo do futebol foi engolido pela pandemia e, agora, pela guerra na Ucrânia.

Numa altura em que o futebol se debatia dentro de si próprio para tentar encontrar soluções para os excessos de décadas, nomeadamente para reduzir o impacto das actividades paralelas que rodeiam a sua ‘indústria’, e não apenas no território das transferências e dos mercados, estando instalada uma certa erosão e descrédito em relação a esse debate, a pandemia começou por afastar as pessoas dos estádios e a colocar a prioridade no acompanhamento e análise nas consequências sanitárias e económicas.

Quer dizer: o futebol já vinha em derrapagem antes da eclosão da pandemia e os internamentos e as mortes colocaram as pessoas em sobressalto. A bola foi chutada para longe e os clubes, apoiados pelas suas federações e ligas, e também pelos operadores e patrocinadores, foram encontrando forma de sobreviver.

Neste quadro, o futebol não recuperou a saúde e manteve-se nos cuidados intensivos.

Em Portugal, muito concretamente, começou a falar-se da premência de ver concretizados os efeitos da centralização dos direitos televisivos (que vai chegar com um atraso fulminante), sinal de falências várias.

No meio da incerteza, o futebol português foi varrido por uma tempestade de processos judiciais que coloca o regime debaixo de suspeita e um conjunto de actores ‘dominantes’ em situação muito complicada.

Não eram necessárias nem uma pandemia nem uma guerra real para se perceber a necessidade de acção.

A guerra na Ucrânia, com consequências para a Europa e para o Mundo que ainda estão por apurar na sua verdadeira extensão, colocam o futebol à margem das atenções principais.

Este não é o tempo do futebol…

A mudança da final da Champions de São Petersburgo para Paris era o mínimo que a UEFA poderia fazer. As condenações feitas pela UEFA e pelo COI, com a FIFA a mostrar-se muito cautelosa nas suas reacções, não são actos de coragem. São actos banais de reconhecimento que esta guerra é um crime hediondo contra o povo ucraniano e os seus mais elementares direitos de cidadania e humanidade.

A lenta reacção da comunidade internacional em certa medida até parece um crime maior.

Bem sabemos que, nestes cenários, um passo mal medido pode desencadear tragédias ainda de maiores dimensões, mas a população atingida e as vítimas directas do conflito não veem a guerra como muitos veem um filme na Netflix, a comer pipocas. Contam os segundos e os minutos de uma maratona de aflição, a fuga, a procura de protecção e amparo, as esperas, as lágrimas, a falta de comida, o choro das crianças, o medo, o medo, o medo, dos barulhos e dos silêncios.

Não há nada que justifique a indiferença e a hipocrisia dos povos.

Hipocrisia que o futebol alimentou, publicamente, quando a FIFA, embevecida com a protecção de Putin e da Gazprom, não deu qualquer importância à anexação da Crimeia e permitiu que, oito anos depois da atribuição da organização do Mundial aos russos e quatro anos depois daquela anexação, o campeonato do Mundo se realizasse na Rússia.

Nem Blatter fez nada (saiu em 2015, na sequência de um processo que deu para avaliar os níveis de corrupção na FIFA) nem Infantino achou que, com a sua entrada (2016) e o processo em marcha, havia razões para mostrar um cartão vermelho à Rússia.

Estava dado o pontapé de saída da indiferença e da falta de indignação.

A fraca reacção que a comunidade internacional protagonizou em 2014 com o apoio da FIFA (2014-2018) foi um sinal de fraqueza que Putin soube interpretar e pode estar relacionado com estes avanços em 2022.

A cumplicidade e o patrocínio foram totais. Poupem-nos as lágrimas de crocodilo. Percebe-se tudo nos silêncios e na falta de (re)acção.

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