Dentro e fora do Parlamento, o clima é de campanha eleitoral. Os partidos aproveitaram a margem dada pela discussão na especialidade do Orçamento - que vai hoje a votação final global - para marcar a discussão com as propostas que vão marcar a sua disputa nas próximas legislativas. E o PS, que ainda tem a faca e o queijo na mão, com os passos atrás que deu, acabou por revelar uma “forma de populismo”
Ainda o cadáver político de António Costa não tinha arrefecido e já os partidos erguiam o recinto da campanha eleitoral. Com promessas para todos os gostos e feitios. O “timing” não podia ser melhor. Afinal, além das declarações na rua, havia margem para fazer entrar propostas para a fase de discussão na especialidade do Orçamento do Estado para 2024 (OE2024).
O OE2024 que hoje é aprovado em votação final global, com a maioria absoluta socialista, dita o princípio do fim do Parlamento como hoje o conhecemos: vai ser dissolvido. E o documento não é o mesmo que o Governo apresentou outrora, refletindo sobretudo propostas de alteração – pasme-se – do próprio PS. É que a vasta maioria das propostas de alteração – foram 1.864, um recorde, para o qual contribuiu sobretudo a oposição – não chegaram a bom porto.
Deu-se um passo atrás numa medida tão polémica como a subida do IUC para carros anteriores a 2007. Foi renovado para 2024 o apoio às empresas que passem contratados a prazo para os quadros. Efetivou-se a dedução no IRS do trabalho doméstico até 200 euros e o aumento para 600 euros a da dedução com a renda da casa. Prometeu-se uma alteração ao sistema informático do Fisco para que os recibos verdes tenham uma retenção na fonte progressiva. Fechou-se um complemento de alojamento e deslocação para estudantes deslocados para frequência de estágios obrigatórios. E deu-se luz verde à vontade de criar um Cartão de Mobilidade, com benefícios para as empresas que desincentivem o uso de transporte individual. Tudo com marca socialista.
Para os politólogos ouvidos pela CNN Portugal, estamos perante um verdadeiro “leilão de propostas” com um propósito eleitoralista. “Tendo em conta o calendário definido pelo Presidente da República, era evidente que isto ia acontecer”, traça a politóloga Mafalda Pratas.
Mesmo com a maioria absoluta, os partidos não quiseram deixar de marcar a discussão com as suas ideias, que começam deste modo a marcar presença na esfera pública. E alguns acabaram mesmo a petiscar, sobretudo em medidas sem grande impacto orçamental.
Vão aqui alguns exemplos mais marcantes. O Livre conseguiu que seja criado um plano de formação para os funcionários das conservatórias sobre os procedimentos de mudança de género ou o IVA reduzido para aquisição de equipamentos de energia solar. Já o PAN alcançou a extensão dos passes sub-23 grátis a estudantes do ensino profissional e a inclusão do serviço de bicicletas partilhadas nos passes. Ao Bloco de Esquerda foi aprovada a vontade de um Programa Nacional para a Prevenção dos Maus-Tratos na Infância. O PCP conseguiu que a fruta nas refeições escolares seja de época e nacional. E o Iniciativa Liberal a garantia de que será estudado o alargamento da licença de parentalidade dos recibos verdes. O PSD efetivou a proposta para que os contribuintes passem a deduzir ao IRS 30% do IVA das faturas do ginásio. Só o Chega não levou nada.
Passos atrás no PS. Fica a ganhar ou a perder?
Com a maioria absoluta, foi o PS quem teve o poder de conseguir um OE2024 diferente daquele que o seu Governo apresentou inicialmente.
Mas, das 99 propostas de alteração socialistas, nada gerou tanto impacto como o passo atrás no IUC, justificado por uma questão de “justiça social”. Estava previsto um encaixe adicional de 98,2 milhões de euros. Agora, questionados pela CNN Portugal, nem o PS nem o Ministério das Finanças quiseram explicar como vão compensar essa verba.
Mas não é essa a sensação de justiça a única que fica no país. “Pode ter o seu lado negativo, porque o PS fica aqui abertamente exposto a este volte face. É uma forma de populismo, que alimenta inclusive os populismos mais perigosos para a democracia”, descreve o politólogo João Pacheco.
A lógica é simples: o PS só volta atrás porque quer ganhar eleições, caso contrário manteria a posição inicial. Fica então a dúvida nos votantes: se lhe dermos novamente a confiança e o poder, não voltam à ideia inicial? Decida por si.
Porque, para os especialistas, uma coisa é certa: “parece-me relativamente claro que o Governo decidiu travar algumas medidas mais polémicas para ter mais apoio eleitoral, para não perder tantos votos”, diz Mafalda Pratas.
Um recorde de propostas para marcar a discussão eleitoral
Mesmo sabendo que a larga maioria das propostas que apresentaram ia ficar pelo caminho, os partidos não se coibiram de inundar o Parlamento de alterações ao OE2024.
“Acho que é mais para, na campanha eleitoral, virem dizer que defenderam certas medidas que não foram aceites pelo PS, que os portugueses gostariam. E que se receberem um resultado melhor, essas medidas poderão vir a ser aprovadas”, explica Mafalda Pratas.
Vamos então aos recordistas: PCP com 488 e Chega com 441. Seguiu-se o PSD com 299 e o Bloco de Esquerda com 183. Para o Livre foram 153. Para a Iniciativa Liberal só 42.
Promessas e mais promessas que os partidos fizeram questão de vincar logo a seguir ao anúncio de Marcelo Rebelo de Sousa de que iria dissolver o Parlamento. Garantias e prioridades que ergueram, naquela reação, a própria campanha eleitoral.
Mas tanta promessa pode acentuar a sensação de que os políticos não cumprem aquilo a que se propõem. “É o problema estrutural da nossa democracia, dos nossos tempos”, resume João Pacheco.
“Pode trazer muitas expectativas defraudadas. É evidente que qualquer partido que tome o poder não pode realizar todas as medidas. O que me parece é que os dois partidos da governação têm mais cuidado em propor medidas. Os partidos antissistema não são assim tão responsáveis quando estão a fazer campanha”, completa Mafalda Pratas.
PSD a disparar onde dói mais
Apesar de fazer parte do chamado arco da governação, o PSD não tem poupado nas promessas. O presidente Luís Montenegro tem aproveitado todas as intervenções públicas para vincar os pilares do programa que levará às urnas.
Houve promessas a aproveitar a atualidade, como a regulamentação do lobby. Houve propostas mais genéricas, como a necessidade de melhores salários. Há vontade de subir as pensões mais baixas, que estejam abaixo do salário mínimo nacional. Houve promessas de avançar com a construção de hospitais há muito em espera, como no Algarve e no Oeste, acenando numa das áreas mais frágeis da governação socialista.
E houve proposta concreta para reduzir o IRS até ao oitavo escalão. Quanto é que isto custa? Nas propostas entregues pelo PSD para o OE2024, praticamente nunca é referido quanto custa cada medida. Uma das exceções vem numa proposta de recuperação do tempo de serviços dos professores, com um “impacto de 250 a 300 milhões de euros”. Contudo, esse valor já tinha sido calculado antes pelo partido, não foi um exclusivo para as contas do próximo ano.
Para lá dos líderes, as medidas que mexem com o nosso bolso
O politólogo João Pacheco antecipa uma campanha eleitoral “que será tudo menos programática”. “Será mais pessoal, mais carismática, vamos discutir mais líderes do que medidas”, justifica.
Apesar desse cenário, os partidos quiseram mostrar trabalho – ou, pelo menos, vontade de o fazer. Com uma extensa lista de propostas que mexiam diretamente com o bolso dos portugueses, atacando os problemas que mais os têm angustiado.
A Iniciativa Liberal, por exemplo, acenou com um pedido de devolução da receita da privatização da TAP aos cidadãos, com um IRS “mais baixo, simples e justo” ou com a revogação do polémico IUC - algo que, como se esperava, teve chumbo garantido do PS.
Já André Ventura do Chega, mal Marcelo dissolveu o Parlamento, garantiu logo uma retificação do OE2024. A Operação Influencer serviu de mote para querer revogar negócios “ruinosos” do hidrogénio e do lítio e para regulamentar o lobby. Aos portugueses, acenou com a isenção de IMI para casa própria até aos 350 mil euros ou com a reposição do tempo de serviço dos professores.
O Bloco de Esquerda pôs em cima da mesa um aumento salarial de 15% para os funcionários públicos, bem como um teto à subida das rendas e um passe de transportes gratuitos para todos os que tenham menos de 23 anos. À boleia da atualidade, o partido de Mariana Mortágua propôs também a suspensão dos projetos de hidrogénio.
Do PCP voltaram as bandeiras antigas do aumento do salário mínimo e da reposição do IVA na eletricidade e no gás natural em 6%. Juntou-se a tributação das “grandes fortunas e lucros”, a redução do passe social de transportes para 20 euros, medicamentos gratuitos para maiores de 65 anos, um travão nas rendas ou o fim do pagamento de portagens nas ex-SCUT.
Também o PAN e o Livre querem ter no Parlamento mais do que o deputado atual. Do PAN veio a promessa de “representar as causas” pelas quais Inês de Sousa Real foi eleita, como o combate à crise climática, a suspensão dos despejos ou a descida do IVA de produtos animais para famílias carenciadas. Rui Tavares acenou com o alargamento do passe ferroviário e o aumento do abono de família.