Começou a falar-se de paz

16 jun, 14:38
Cimeira de paz na Suíça

1. A Ucrânia está precisada de boas notícias, e algumas terão vindo da “Conferência de Alto Nível sobre a Paz na Ucrânia” que hoje concluiu os seus trabalhos em Bürgenstock, na Suíça. Ali se juntaram largas dezenas de Estados e Organizações Internacionais. Ou, com mais precisão, 56 Estados representados ao nível de Chefe de Estado ou Governo, 30 ao nível ministerial e 5 como observadores (entre os quais, a Indonésia, o Brasil, a África do Sul e Israel), assim como várias organizações internacionais.

É um número considerável, talvez um pouco aquém do que esperavam a Ucrânia e a Suíça e, principalmente, porque há ausências relevantes – a última, imprevista, do Presidente colombiano, que tinha confirmado a presença e, na 25.ª hora, deu o dito por não dito e, como bónus, ainda desancou nos participantes.

Se bem contei, participaram 11 Estados Africanos, o que é pouco; mais de quarenta dos presentes eram Estados europeus, e a União Europeia contou por três (Presidentes do Conselho Europeu, Parlamento Europeu e Comissão), etc. Formalmente, fica-se à porta de 100 (noventa e nove, com a “deserção” espetacular da Colômbia). Se formos capazes de deixar um pouco de lado a necessidade comunicacional de a todo o custo anunciarmos um número “impactante”, ou mais um record mundial, o número dos participantes terá sempre de se considerar uma referência importante à luz do apoio que justifica a causa ucraniana, em luta desde que a Federação Russa lançou a invasão de 24 fevereiro de 2022. Fechado este ponto, siga a Marinha, e vejamos aquilo que se conseguiu na Cimeira.

 

2. Bom, realmente, não foi uma Cimeira de Paz; antes, como tinha insistido o MNE suíço, uma conferência para a Paz. Suponho que não seja necessário ser um perito para intuir que, se a Rússia não comparece, ou se não comparece porque não foi convidada (e depois diga que não estaria presente, nem que o tivesse sido), não podia, seriamente, esperar-se algo de muito mais substancial do que aquilo que saiu da reunião. “Hoje a Rússia não está aqui. Porquê? Porque se a Rússia estivesse interessada na paz, não haveria guerra”, disse Zelensky no início da Cimeira – apresentando uma justificação bastante frágil, porque fica sem resposta a pergunta fundamental: defina paz, por favor.

A minha impressão sobre a ausência é um pouco menos poética, até porque não tenho ilusões sobre “esta” Rússia de Putin, para quem paz, guerra ou operação militar especial são só conceitos instrumentais, bons desde que favoreçam os seus desígnios. A Rússia não está porque, no dia em que se sentar numa mesa com a Ucrânia, rodeada por quantos Estados for, a Ucrânia estará a assumir que vai ter de ceder em alguma coisa. Por isso, a “paz justa” e “duradoura” que exige a Ucrânia ainda é bastante absoluta e não implica nada da sua parte, a não ser receber uma Rússia destruída e vencida.

 

3. Esta convicção parece confirmada pela discrepância enorme entre aquele que era o “plano de paz” desenhado por Volodimir Zelensky há largos meses e os propósitos que a Suíça, como País organizador, anunciou. Recorde-se que o plano de paz em 10 pontos apresentado pelo Presidente ucraniano apresentava os seguintes tópicos como condicionantes de uma paz “justa e duradoura”: 1. Radiação e segurança nuclear; 2. Segurança alimentar; 3. Segurança energética; 4. Libertação de todos os prisioneiros e deportados; 5. Implementação da Carta das Nações Unidas, com restauração da integridade territorial da Ucrânia e da ordem mundial; 6. Retirada das tropas russas e cessação das hostilidades; 7. Justiça, com julgamento dos principais responsáveis russos, incluindo Putin, e reparação integral de todos os danos; 8. Proteção imediata do ambiente; 9. Prevenção de escalada; 10. Confirmação do fim da guerra.

Desta lista relativamente longa, ficou para discussão na Conferência o seguinte: segurança nuclear, segurança alimentar e a dimensão humanitária. Além disso, a Suíça definiu como objetivo uma visão para os próximos passos, em que a Rússia esteja incluída.

Como disse, ressalta o fosso entre aquilo que a Ucrânia declara pretender e aquilo que, manifestamente, representou o consenso possível para garantir o maior número possível de participantes na Conferência. Há muitos aspetos do plano de paz de Zelensky em que se vê mal como possa ter rapidamente ganho de causa, a não ser que a Rússia colapse, em termos similares aos da Alemanha em 1945. Não creio que este cenário seja provável, pelo menos no curto e médio prazo.

Ficamos assim com três tópicos, mesas redondas e outras coisas assim em que, sejamos francos, a hipótese de divergência é improvável. Quem discordará afirmação da necessidade de salvaguardar a segurança nuclear? Quem vai rasgar as vestes por causa da segurança alimentar, que, aliás, já é felizmente uma questão menos real, considerando a incapacidade (muito por mérito da Ucrânia) de a Rússia impedir a exportação de cereais ucranianos? E sobre a dimensão humanitária, quem se distancia? Ninguém.

 

4. A Conferência vai ser falada e comentada intensamente nos próximos dias. Depois, pouco. E, de certeza, nenhuma paz por causa da Conferência. Mesmo assim, o mérito maior da Conferência, pífia que pareça quanto aos resultados, está lá, ainda que difícil de ver. Pela primeira vez, quebrou-se o tudo ou nada em que as partes estavam presas. E, ao contrário do que se possa pensar, estou convicto de que o facto de ter sido a Ucrânia a dar um primeiro passo, embora tímido, vai sempre funcionar a seu favor. Os Países mais distantes (ou reservados) relativamente à Ucrânia não serão do “Ocidente alargado”, conceito detestável que nos fecha numa gaiola dourada perante o resto do Mundo. Mas vão registar que a Ucrânia aceita procurar a paz. É hoje ainda mais legítimo do que antes, por isso, que os olhares se virem para Moscovo e surja logo a pergunta: e então? O que propõem? Como querem caminhar para a paz?

Não querer a Rússia à mesa de negociações é, a prazo, um favor que se faz ao agressor, e que ajuda à sua vitimização. Há uma coisa que se tem esquecido muitas vezes, em sociedades polarizadas e radicalizadas e muito vocais. Na diplomacia e nas relações internacionais, não há amuos, não pode haver questões pessoais que prevaleçam sobre o interesse comum.

 

5. Putin manipula a informação e conhece os tempos da comunicação, como poucos. Mesmo antes do início da Conferência, deu o seu “grande” contributo para a causa da paz, expondo as suas condições. No essencial, Ucrânia na NATO, nem pensar; e a Ucrânia apenas teria de aceitar a perda de quatro regiões (além da Crimeia, mas essa, na cabeça de Putin, é já uma questão que não existe). Como a Rússia ainda não conseguiu sequer conquistar na totalidade estes territórios, a mensagem é clara: em alternativa, a Ucrânia perderá muito mais. Há, ademais, outro sinal não dito, que é o de a Rússia propor agora para a sua “paz” termos muito mais duros do que aqueles que estavam a ser negociados em abril de 2022, quando os Estados Unidos e outros disseram: não aceitem, nós estamos cá para o que der e vier. Traduzindo: se tivessem concluído as negociações em abril de 2022, tinha havido muito menos mortos e feridos, muito menos destruição, muito menos sofrimento, e estavam numa posição bem “melhor” do que agora. Muito deste argumento é uma falácia e, sobre as famosas negociações de 2022, o New York Times mostra como tinham um custo muito elevado para a Ucrânia.

Mas, por muito que isso nos desgoste, a Rússia produz uma mensagem que marca pontos em alguns quadrantes: a continuação da guerra não é boa para ninguém, mas é especialmente má para a Ucrânia e para aqueles que, dentro dos Estados ocidentais, estão a ser arrastados para uma escalada de consequências sempre graves. Como é que se combate este tipo de mensagem insidiosa, em que a Rússia já mostrou temível competência? Tenho a certeza de que não se combate afirmando, contra toda a evidência, que a Rússia já perdeu, que está frágil, incapaz ou, imagine-se, atemorizada. Esta Rússia, infelizmente para a Ucrânia, já mostrou, mesmo no decurso deste conflito, que em relação às suas capacidades de adaptação é pouco avisada a sobranceria ou a petulante convicção de que, por termos a razão do nosso lado (e temos), num qualquer momento ela vai ficar sozinha, apenas com os seus fantasmas.

 

6. Esta mensagem da Rússia combate-se, é claro, através da mensagem, através de iniciativas sucessivas como aquelas que se têm levado a cabo desde há 28 meses, insistindo, martelando, mantendo a questão ucraniana no topo da agenda. Nesse tipo de ações, Zelensky tem mostrado uma grande eficácia, comprovando-se, se necessário fosse, que as pessoas contam e ainda podem fazer a diferença. Combate-se, depois, através de iniciativas como esta da Cimeira na Suíça, esperando que outras se lhe sigam.

Mas aquele tipo de mensagem de Vladimir Putin tem também de se combater no terreno. Até posso aceitar o brocardo latino que agora é pouco mais do que um cliché chique, si vis pacem, para bellum (“se queres a paz, prepara-te para a guerra”), embora neste caso ele tivesse de ser adaptado. Se a Ucrânia quiser a paz, tem de mostrar ainda ser capaz de fazer a guerra. A comunicação é sempre muito importante, todos o sabemos. Mas não há comunicação, nem sequer informação, que consiga sobreviver a uma discrepância excessiva com a realidade. Não há comunicação, invocação de valores, referências sábias a princípios jurídicos fundamentais que resista à brutalidade que não se consegue estancar.

Vladimir Putin, é manifesto, não se rege por valores, ou pelo menos por aqueles valores que se foram consolidando na sociedade internacional desde a Segunda Guerra Mundial, com avanços e recuos, é certo. A questão que nos opõe a Putin é, por isso, de factos e de poder. É de sabermos se a Ucrânia vai, ou não, conseguir mobilizar um número suficiente de combatentes que permitam reequilibrar uma relação de forças que se tem mostrado muito desigual. Por isso, quando as notícias sobre o recrutamento não são entusiasmantes, e não têm sido, é absolutamente certo que a invocação erudita da ilicitude da agressão russa não vai alterar nada, mas rigorosamente nada, na linha da frente.

No entanto, pode, deve chamar-se a atenção para o atual contexto, que “despiorou” de alguma maneira, depois de meses de chumbo em que se temeu que, desta vez, fosse mesmo: os Estados Unidos iam descolar da causa ucraniana, indo embora enquanto diziam como os franceses, sempre de forma simpática, “je vous tire ma révérence”. Não sei se acabaram por corrigir o tiro ou por voltar atrás. Não interessa.

 

7. O mais importante é que, durante esses meses em que se temeu o pior, os Países europeus (em especial, a Alemanha e a França) foram quem tomou em mãos o esforço, quem impediu que ruísse de forma absurda e inglória tanto que já fizéramos desde fevereiro de 2022. O ponto de (mais uma) viragem foi a autorização dada à Ucrânia para utilizar as capacidades que lhe são dadas em território russo ou, pelo menos, naquela parte do território russo a partir da qual é martelada Kharkiv e todo o nordeste ucraniano. Numa semana, G7, NATO, reunião de Berlim para o financiamento da Ucrânia, a Conferência na Suíça, mais sanções, tudo se compôs, e os F-16 aí a chegar.

Vai ser suficiente para repelir de vez o invasor? Nesta altura, nesta altura a Rússia vai roendo território à Ucrânia e, no conflito, já morreram ou ficaram feridos muitas centenas de milhar de combatentes. Não são milhares de km2 aqueles que a Rússia abocanha, mas são alguns, todos os dias. Conto, aliás, um teste que faço. Quando quero saber o estado das coisas, vou sempre ver o site do Institute for the Study of War (ISW), por uma razão simples: inclina de tal maneira para o lado da Ucrânia, que ninguém pensará que está a ser manipulado pela Rússia. Ora, consultados os seus já famosos mapas do teatro de operações, só dá Rússia. A Rússia avançou aqui, dados de geolocalização permitem concluir que a Rússia conquistou ali, ou que se registam avanços naqueloutra região. Nos últimos meses, e não devo ter falhado um dia, só em duas ocasiões, na região de Kharkiv, pude ler sobre vantagem ucraniana.

 

8. Ou seja, não está a correr bem.

Alguns, no entanto, dirão que que as coisas não são assim. A Ucrânia tem o direito internacional do seu lado ou, para utilizar uma expressão na moda que, aliás, apouca o direito internacional, tem do seu lado uma “ordem internacional baseada em regras”. Por isso, a procura da paz não tem como, está até proibida de ignorar esta verdade basilar. Que a Ucrânia tem do seu lado o direito internacional, é óbvio. A verificação veda-nos a neutralidade no conflito, quanto mais não seja no plano político-diplomático, mas também na vinculação a estes princípios fundamentais de regulação da vida internacional. Porém, por muito que isso nos incomode, e apoquente a enxurrada atual de adeptos do direito internacional, o Direito é importante, mas, enquanto tal, nunca deu um m2 a ninguém. E, num conflito, o Direito nunca conseguiu, por si, sobrepor-se à força das armas ou dos obuses de artilharia. Se querem um exemplo que envolva a Rússia, perguntem à Finlândia, que perdeu mais de 10% do seu território para a União Soviética. E, por favor, olhem por esse mundo fora: não faltam violações da integridade territorial e da independência política de muitos Estados. Falando de territórios, não vou sequer fazer alegações recorrendo ao exemplo fácil da Palestina. Basta, para efeito do meu argumento, recordar que, como dito num relatório muito recente, atravessamos uma fase de conflitualidade global muito elevada, com 56 conflitos ativos no mundo: Gaza, Sudão, Ucrânia, Myanmar, Etiópia, Sahel, etc.

 

9. É tudo igual, nestes exemplos? Não, não é. O Direito consegue sem dificuldade valorar tomando em consideração a gravidade da violação, o seu caráter reiterado ou sistemático, e extrair daí consequências. Por essa razão, apesar de o conflito na Ucrânia nos afetar (por razões evidentes) mais do que a outras regiões do globo, e até muito mais aos europeus do que aos Estados Unidos, uma análise de boa-fé reconhecerá que este é um dos conflitos mais graves desde a Segunda Guerra Mundial, se não se tiver alcandorado, infelizmente, ao lugar cimeiro.

Por conseguinte, a posição da Ucrânia não é equivalente à da Rússia, e, num plano muito prático, isso explica que a sua causa junte muitos Estados na Suíça, não se vendo que o seu opositor, mesmo com aliados (como os tem), consiga juntar numa sala mais de três gatos pingados a defenderem a justeza da sua posição. Sendo assim, não pode haver negociações para a paz, uma vez que o conceito de negociação pressupõe uma aproximação de posições e cedências mútuas? A negociação viola o Direito, se implicar que aquele que foi agredido (a Ucrânia) não verá integralmente reconstituída a sua situação anterior à invasão (russa)?

Por muito que possa custar, obviamente não, e das intervenções do Presidente ucraniano parece poder concluir-se isso. Zelensky, com efeito, afirmou que irá apresentar propostas de paz à Rússia quando estas tiverem sido acordadas pela comunidade internacional: “[q]uando o plano de ação estiver em cima da mesa, aceite por todos e transparente para os povos, será comunicado aos representantes da Rússia, para que possamos verdadeiramente pôr termo à guerra”. Esta atitude sentiu-se, não só em Zelensky como, também, em muitos dos que participaram na Conferência.

Assim, compreende-se a utilidade real da Cimeira. Consolida um apoio numa fase que já não é apenas declaratória e reforça a posição da Ucrânia, pois que esta situa a comunidade internacional como uma das “partes” em qualquer negociação com a Rússia. Trata-se, agora que se começam a discutir coisas concretas, de mais do que a aprovação de uma resolução da Assembleia Geral, que é sempre importante, mas tem a vantagem de não implicar muito para quem a vote favoravelmente. O problema central neste processo, não vale a pena escondê-lo, não é a devolução da central nuclear de Zaporizhzhia à Ucrânia, ou a troca de prisioneiros, ou até a devolução das crianças ucranianas levadas para a Rússia, cuja situação determinou a emissão de um mandado de detenção contra Vladimir Putin pelo Tribunal Penal Internacional. A questão central foi, é, e vai continuar a ser a definição daquilo que é realizável do ponto de vista da devolução dos territórios ocupados pela Federação Russa. Nesse sentido, a referência à integridade territorial da Ucrânia no comunicado, como valor-referência de uma negociação para a paz, significa a matriz de uma qualquer negociação; mas é substancialmente diferente da formulação que se pode ler no plano de paz em dez pontos de Zelensky a que atrás fiz referência.

Sim, é verdade, no momento decisivo, houve Estados muito importantes que não assinaram a declaração final. Brasil, Índia, África do Sul, México, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Tailândia são alguns deles. É, evidentemente, uma macha importante no impacto da Cimeira. Mas há um ponto que não se apaga: estiveram presentes, ouviram. Talvez seja otimismo a mais, concedo. Mas estamos precisados de um pouco de otimismo. Na próxima ocasião, haverá com certeza um ou mais que, neste lote importante, vão concordar.

Sendo assim, para que serviu uma agenda tão frágil da Cimeira? Serviu para mostrar abertura; serviu para atrair Estados; serviu para que, quando houver algo de consistente a propor à Rússia, se trate de algo em que outros Estados também sentiram participar. Não foi assim tão pouco.

Vivemos em democracia, creio poder dizer-se que a maioria dos que apoiam a Ucrânia na sua defesa contra o agressor são democracias. Por se tratar de democracias, a eficácia do apoio dado à Ucrânia depende de os povos estarem convictos da necessidade (e do benefício próprio) da continuação da resistência contra a agressão. Se olharmos para o que saiu das Europeias, nomeadamente em França e na Alemanha, convirá ter cuidado. As eleições legislativas em França, consequência política direta das eleições para o Parlamento Europeu, são mais um teste difícil. No entanto, há pelo menos uma boa notícia. A Nova Frente Popular, que agrega as esquerdas e inclui, nomeadamente, a LFI e o Partido Comunista, só existe porque todas os partidos que a integram aceitaram que em nenhuma circunstância pode ser posto em causa o apoio à Ucrânia.

É também essa a notícia que vem da Suíça: pela primeira vez, e sem ceder no essencial, começou a falar-se de paz.

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