A viagem pode matá-los. Mas quem foge da miséria no Médio Oriente diz que a faria 100 vezes

CNN , Tamara Qiblawi
25 dez 2021, 22:00
Migrantes na fronteira da Polónia com a Bielorrússia. Oksana Manchuk/BelTA via AP

Azhi, de quatro anos, atravessa a coxear um centro improvisado de migrantes na fronteira entre a Polónia e a Bielorrússia. Agarrado à mão da mãe para se apoiar, ele enfia cuidadosamente as pernas debaixo das pilhas de cobertores doados. 

Varas de metal elevam-se acima das pessoas para sustentar um telhado gigante de zinco. Azhi, que tem talas nas pernas, sorri e tem os olhos arregalados. É difícil acreditar que, poucos dias antes, a família deste menino enfrentou a morte.

"Queremos ir para a Alemanha para que o Azhi possa ser operado", diz a mãe, Shoxan Hussein, de 28 anos. "Os médicos disseram que ele precisa de ser operado antes de fazer cinco anos."

Azhi, de quatro anos, e a mãe Shoxan Hussain, de 28, viajaram para a Bielorrússia do Curdistão iraquiano.

A família de Azhi estava entre as centenas de migrantes que tentaram atravessar a fronteira da Bielorrússia para a Polónia nas últimas semanas, na esperança de pedir asilo à União Europeia. Após dias na gelada floresta da Bielorrússia, onde os migrantes dizem ter sido espancados e privados de comida pelas tropas bielorrussas, a família não conseguiu atravessar a fronteira. Várias pessoas morreram ao longo da viagem, enquanto milhares ficaram retidas em condições desumanas. Azhi e os pais sobreviveram ilesos.

Dias depois, regressaram à sua terra natal, Erbil, o núcleo comercial do Curdistão iraquiano, num voo de repatriação do Iraque. Eles já estão a tentar traçar um novo caminho para a Europa.

"Não há futuro para o meu filho no Iraque", diz à CNN o pai de Azhi, Ali Rasool, de 26 anos, na casa da família em Erbil. "Tentar chegar à Europa é pelo Azhi. Preciso de um futuro para o meu filho."

Quebrar um ciclo de miséria

Por todo o Médio Oriente e o Norte de África, a conversa sobre emigração é galopante. Embora as armas se tenham silenciado, em grande parte, na maioria das zonas de conflito da região, muita da miséria não diminuiu. A violência em que antes estavam mergulhados quatro países – a Síria, a Líbia, o Iémen e o Iraque - deu lugar a uma ruína económica que se estende muito além das fronteiras. Muitas economias regionais estão a recuperar dos efeitos combinados da pandemia de covid-19, do influxo de refugiados e da instabilidade política.

A corrupção ao nível do governo na região MENA é amplamente vista como a principal culpada, além da turbulência geopolítica. Uma investigação recente revelou que um em cada três dos 200 milhões de jovens árabes da região pensa em emigrar. Em 2020, esse número era ainda maior: quase metade de todos os jovens árabes.

O problema é mais grave nas zonas pós-conflito que lutam contra a depressão económica e onde a corrupção floresceu. Na Síria, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas afirma que a taxa de pobreza ronda os 90%, em contraste com os 50-60% de 2019, quando a violência era significativamente mais generalizada. O número de pessoas que estão em situação de insegurança alimentar aumentou de 7,9 milhões em 2019 para mais de 12 milhões em 2020.

Uma tenda improvisada de plástico abriga refugiados sírios nas florestas da Polónia, a 26 de novembro de 2021.

“Falamos de pessoas que têm rendimentos, um trabalhador pobre, com um emprego, com dois empregos na família, que não consegue dar resposta às suas necessidades básicas de alimentação”, disse Ramla Khalidi à Representante Residente do PNUD na Síria. "O que isto significa é que estas pessoas saltam refeições, endividam-se e consumem refeições mais baratas e menos nutritivas."

Cerca de 98% das pessoas disseram que os alimentos são a sua principal despesa. “As frutas e os legumes frescos são um luxo e as carnes ficam de fora das suas dietas”, diz Khalidi.

A "pobreza massiva e severa" da Síria foi exacerbada pela crise financeira no vizinho Líbano, que começou em 2019. A economia libanesa era vista anteriormente como uma tábua de salvação para uma Damasco isolada financeira e diplomaticamente. Um regime de sanções esmagador em regiões controladas pelo presidente sírio Bashar al-Assad, que é a maior parte do país, foi agravado pela Lei César, em 2020. O objetivo era levar o presidente sírio Bashar al-Assad de volta à mesa das negociações lideradas pela ONU, mas, em vez disso, destruiu ainda mais uma economia já em crise, e o governo do presidente continua imperturbável.

O regime sírio é acusado de ter cometido repetidos crimes de guerra e crimes contra a humanidade, nos últimos dez anos da guerra no país, incluindo ataques com armas químicas à população civil e bombardeamentos indiscriminados em zonas habitacionais, controladas pelos rebeldes, com munições convencionais. Dezenas de milhares de prisioneiros políticos morreram nas prisões de Assad, após terem sido submetidos a torturas extremas e maus-tratos.

Sírios inspecionam os escombros num local que foi bombardeado em Ariha, um ataque alegadamente executado pelas forças do governo sírio, matando pelo menos dez pessoas, a 20 de outubro de 2021.

Em zonas da Síria que não são controladas pelo regime de Assad, nomeadamente o nordeste do país controlado pelos curdos e o noroeste que está sob o domínio de rebeldes islâmicos fundamentalistas, a economia também está em ruínas.

"Essa é a única coisa que as pessoas ainda partilham na Síria. Todas as pessoas têm problemas económicos, independentemente de quem controla a região", disse Haid Haid, consultor associado do Programa da Chattam House para o Médio Oriente e o Norte da África.

É uma situação que fez com que muitos dos trabalhadores qualificados do país saíssem, agravando a situação económica, diz Khalidi, da ONU.

"Os hospitais, as escolas, as fábricas perderam muitos dos seus trabalhadores qualificados porque muitos desses indivíduos tentam encontrar uma saída, mesmo que isso signifique arriscar as suas vidas", diz, enquanto apela aos países doadores que invistam em " intervenções de resistência" destinadas a melhorar os meios de subsistência urbanos e rurais.

“É uma crise sem precedentes em termos de complexidade”, diz Khalidi. "Ano após ano, o montante de financiamento tem aumentado e, ainda assim, vemos as necessidades humanitárias também a aumentar. Sendo assim, acho que precisamos de mudar o modelo, reduzir a dependência humanitária e concentrar mais recursos em esforços de recuperação precoces e resilientes."

No vizinho Iraque, devastado por várias batalhas, incluindo uma guerra devastadora com o ISIS, a economia está melhor, mas a falta de esperança prevalece. Um movimento de protesto anticorrupção liderado por jovens, em outubro de 2019, foi fatalmente esmagado e adulterado por grandes atores políticos, e enquanto os políticos independentes obtiveram ganhos sem precedentes nas eleições parlamentares deste ano, o nepotismo e a corrupção continuam a reinar, supremos, nos centros políticos e comerciais do país, dizem os analistas.

"Não podemos falar sobre o Curdistão ou o Iraque Federal como funcionais porque não o são", disse Hafsa Halawa, uma académica não-residente do Instituto do Médio Oriente, referindo-se à região semiautónoma do norte do Curdistão iraquiano. “A realidade é que os serviços públicos são intermitentes, as oportunidades são zero, a corrupção, o nepotismo e a violência são contínuos e regulares”.

"O que há de errado em alguém com 21 ou 22 anos dizer: 'Não posso ficar aqui como os meus pais ficaram. Tenho de quebrar o ciclo. Tenho de mudar as coisas para a minha futura família, para os meus futuros filhos'?"

Uma imagem mostra o campo de al-Hol, administrado por curdos, que tem familiares de alegados combatentes do ISIS na província nordeste de Hasakeh, a 6 de dezembro de 2021.

Halawa, que tem ascendência britânica, iraquiana e egípcia, argumenta que um dos principais motivadores do influxo de refugiados é o desaparecimento dos mecanismos legais para a entrada de trabalhadores qualificados na Europa.

"O que é fascinante para mim, quando falo sobre o esquema de imigração do Reino Unido e da secretária do Interior, Priti Patel, é que o meu pai, que trabalhou durante 40 anos para o Serviço de Saúde britânico como cirurgião qualificado, não se teria qualificado para obter um visto de trabalho, quando cá chegou ", diz Halawa.

“Os mecanismos através dos quais nós, no mundo desenvolvido, permitíamos às pessoas aprender e depois mantê-las aqui para beneficiar a sociedade, já não estão disponíveis”, diz Halawa.

Haid, da Chatham House, um sírio nativo, considera-se um dos sortudos. Há quase cinco anos, recebeu o estatuto de refugiado no Reino Unido. 

“Foi quando as coisas na Síria começaram a piorar, apesar da redução da violência, que as pessoas que lá moravam foram atingidas pela realidade de que as coisas nunca vão melhorar”, diz Haid. “É por isso que mesmo aqueles que se recusaram a deixar o país durante a guerra agora sentem que não há solução a não ser fugir, porque não há uma luz ao fundo do túnel. É isso.”

Ao mesmo tempo, Haid sente que chegou ao Reino Unido na hora certa. “Sentimos que temos sorte por termos feito isto antes que a janela de oportunidade, que se estava a fechar rapidamente, se fechasse para sempre”, diz ele.

De volta a Erbil, Shoxan Hussein e o marido Ali Rasool acreditam que a passagem legal para a Europa está permanentemente fechada. Rasool, gerente de uma imobiliária, e Hussein, engenheira, solicitaram vistos na embaixada de França, no início deste ano, mas afirmam que nunca receberam uma resposta.

“Erbil é melhor para mim e para a minha esposa do que qualquer outro lugar do mundo. Temos um bom carro, boas roupas”, diz Rasool. "Mas fazemos isto tudo pelo Azhi... Já fizemos três operações aqui e não obtivemos nenhum resultado. O problema é que os médicos ficam com o nosso dinheiro e não fazem nem 5% de diferença."

“Se me dissessem que tinha de arriscar a minha vida 100 vezes para ir para a Europa melhorar a vida do meu filho, então, a minha esposa e eu faríamos isso”, diz ele. "Eu repetiria 100 vezes essa viagem.”

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