Para escrevermos este texto fomos acusados de cometer um crime. A CNN Portugal na Polónia

22 nov 2021, 18:17
Polónia. Créditos: André Carvalho Ramos e João Franco/CNN Portugal

Em Bohoniki, há funerais por videochamada, famílias à distância talvez para sempre dos migrantes aqui mortos. Estamos “numa zona proibida”, diz-nos a polícia, acusando-nos de praticar um crime: o governo polaco definiu uma zona de exclusão de três quilómetros na fronteira com a Bielorrússia. Aqui ninguém entra. Nem médicos, nem ativistas, nem jornalistas

Entre a cidade de Bialystok, onde está o quartel general da Polícia Fronteiriça polaca, e a fronteira com a Bielorrússia, em Kuznica, estão 50 quilómetros de estrada dentro de uma floresta densa do leste europeu. Demoramos mais de uma hora a percorrer este caminho, somos parados dezenas de vezes. Revistam-nos o carro, o material de reportagem e levam-nos os documentos para verificar quem somos.

Estamos numa das zonas mais pobres da Polónia e no centro desta nova rota da crise migratória de refugiados. Não nos deixam passar. O governo polaco estabeleceu uma zona de exclusão de três quilómetros, junto à fronteira, onde ninguém entra. Nem médicos, nem ativistas, nem jornalistas.

 

É impossível chegar à parte da floresta onde centenas de migrantes andam à deriva sem comida, sem água e debaixo de temperaturas negativas. Aqui o dia acaba cedo, às três da tarde já é de noite e começa mais uma luta pela sobrevivência.

Viajamos mais para sul e conseguimos entrar nesta zona de floresta densa. Nem cinco minutos depois, somos parados. Saem quatro homens, de cara tapada com golas pretas, de dentro de dois carros não identificados. Demoramos alguns segundos a perceber que são guardas de fronteira.

Encostamos, tiramos a chave do carro, mas dizem-nos para não sairmos da viatura. Pedem-nos o passaporte, uma prova do local onde estamos hospedados e perguntam-nos o que estamos a fazer aqui. A resposta já a sabiam.

Créditos: João Franco/CNN Portugal

Depois de vasculharem o carro e o material de reportagem, explicam-nos que estamos a cometer um crime por estarmos numa zona proibida. Seguem-se alguns minutos de uma troca de argumentos mais ou menos intensa, sem nunca não explicarem o que nos vai acontecer. Acabam por desistir, escapamos e voltamos para trás sem antes nos dizerem o que queriam, de facto, encontrar: “Espero ver-vos novamente, mas com um refugiado na bagageira”. Os ativistas são agora perseguidos pelas autoridades polacas. Quem prestar ajuda pode ser acusado de auxílio ao tráfico de seres humanos.

Os jornalistas, aqui, também são um alvo. Maja Czarneck fez o mesmo percurso, acabou a ser detida. “Confiscaram-nos a câmara, os telefones, confiscaram-nos tudo”, conta à CNN Portugal. Jornalista sénior da AFP, nunca tinha vivido nada assim. Não tem dúvidas de que esta é também uma guerra aos media.
 

Nesta zona de exclusão, foram colocados mais de 20 mil militares e agentes da polícia. É um território hostil e altamente militarizado. O objetivo das forças polacas é empurrar de volta para a Bielorrússia quem seja encontrado nesta floresta. Algo ilegal aos olhos da lei internacional, das leis europeias e da convenção para os refugiados. Quem entra em espaço europeu tem direito a pedir asilo ou proteção internacional. Nenhum destes direitos está a ser cumprido.

 

 

 

Em Bohoniki, muito perto da fronteira, há uma pequena comunidade islâmica. A mesquita tem recebido dezenas de pedido de ajuda. Começaram a chegar os corpos das vítimas desta nova rota migratória. O primeiro foi Ahmad, 19 anos, vivia em Homs, na Síria, fugiu do regime de Bashar Al-Assad. A família assistiu ao enterro por vídeochamada, provavelmente nunca conseguirá vir aqui prestar-lhe homenagem. Está demasiado longe de casa. Morreu afogado.

 

 

Créditos: João Franco/CNN Portugal

Ao lado, a sepultura coberta por terra de alguém sem nome. Nunca saberemos quem é, ou porque arriscou esta travessia. Sabemos apenas que morreu já depois de ter conseguido entrar na Polónia. Está tapado por galhos de árvores da mesma floresta onde terá passado demasiado tempo.

À uma tarde, está marcado mais um funeral. Mustafa, do Iémen, tinha 37 anos. Foi traído pela esperança de uma vida livre na Europa. A família conseguiu vir até aqui através da embaixada na Polónia. Carregam o caixão e rapam-nos de terra com as próprias mãos. Quando a cerimónia acaba, começa a chover. Ficam os três, juntos, enterrados de frente para a floresta que os viu morrer.

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