O cruzeiro que "nunca acaba" ainda não começou e já é um pesadelo

CNN , Julia Buckley
14 out 2023, 16:00
Life at Sea inicia o cruzeiro de três anos a 1 de novembro. Life at Sea Cruises

Alguns dos residentes com quem a CNN falou dizem que ficarão sem casa se o cruzeiro não se realizar. As pessoas venderam as suas casas, carros e bens para se poderem comprometer com esta viagem

Primeiro foi o cruzeiro que nunca acaba. Agora, os passageiros estão preocupados que possa vir a ser o cruzeiro que nunca começa. A Life at Sea Cruises vai lançar o seu cruzeiro de três anos à volta do mundo no próximo mês, partindo de Istambul a 1 de novembro. Mas, a poucas semanas do início do cruzeiro, a empresa ainda não garantiu um navio para a viagem.

Apesar de a empresa insistir que o cruzeiro vai realizar-se de acordo com o planeado, alguns futuros residentes estão preocupados que os seus planos ainda não estejam bem definidos.

Um deles, que já pagou mais de 100.000 dólares à empresa (cerca de 95 mil euros), disse à CNN que a situação é "uma anedota".

Teme que o cruzeiro acabe por ser cancelado e prefere manter o anonimato porque "não quis contar a ninguém" – "sinto-me embaraçado e envergonhado por ter caído nesta".

"Devia ter ouvido o meu instinto."

Mares tempestuosos

O cruzeiro promete dar a volta ao mundo durante três anos. Life at Sea Cruises

A Miray Cruises, proprietária da Life at Sea, deveria ter concluído a venda do seu navio para o cruzeiro de três anos, que se chamará MV Lara, no final de setembro.

Mas uma semana depois, o barco ainda não é seu.

Um porta-voz do Miray disse à CNN que a venda não foi finalizada quando a equipa estava na Alemanha para ir buscar o navio, tendo a tripulação do Miray abandonado o barco.

"Teria sido impraticável para o vendedor continuar a acomodar a tripulação a bordo sem a transação concluída, por isso a equipa desembarcou voluntariamente enquanto resolviam os pormenores", explicou o porta-voz, apontando esta semana como decisiva.

Embora a Miray nunca tenha confirmado o nome do navio que planeava comprar, acredita-se que seja o AIDAAura, pertencente à AIDA Cruises, uma subsidiária alemã da Carnival.

A empresa deveria "dizer adeus" ao navio em setembro, após 20 anos e mais de 800 viagens, de acordo com o site da AIDA.

O navio - que foi apadrinhado pela supermodelo Heidi Klum para a AIDA - tem quatro restaurantes, dois lounges, cinco bares e discotecas e duas piscinas.

A AIDA Cruises não respondeu aos pedidos de resposta da CNN sobre se a venda foi concluída.

Águas agitadas

O caminho para a liberdade em alto mar não tem sido fácil para a Life at Sea Cruises.

A marca foi lançada em março, quando a sua oferta de um cruzeiro de três anos à volta do mundo, visitando 135 países, ganhou destaque pela sua relativa acessibilidade económica.

Os preços iniciais começavam em cerca de 30.000 dólares por pessoa e por ano (mais de 28.000 euros), e incluíam alojamento, alimentação e - algo que é fundamental para os americanos - despesas médicas. Quando comparado com as rendas e o aumento dos preços numa crise global de custo de vida, parecia uma proposta atrativa.

Três meses mais tarde, o projeto foi por água abaixo quando cerca de metade da equipa se demitiu para trabalhar no seu próprio projeto de cruzeiro à volta do mundo. A cisão está agora no centro de uma ação judicial movida pela Miray.

Enquanto alguns potenciais passageiros cancelaram o cruzeiro devido ao caos, outros permaneceram com a Miray, com a promessa de que o cruzeiro continuaria como previsto - e que iria comprar um navio maior para a viagem.

Em setembro, a empresa anunciou que iria prolongar o cruzeiro indefinidamente, permitindo que os passageiros permanecessem a bordo para sempre, se assim o desejassem.

Ainda sem condições para navegar

Kendra Holmes, CEO da Miray, afirmou categoricamente à CNN, por email, que a viagem "não está atrasada", apesar de a venda do navio não ter sido ainda concluída.

Em julho, Holmes tinha dito que o Life at Sea tomaria posse do novo navio no final de setembro, onde seria submetido a trabalhos em doca seca durante duas semanas, sendo os restantes trabalhos concluídos a caminho de Istambul.

Agora, com a venda adiada, esperam conseguir a transferência de propriedade [do navio] ainda esta semana.

Para cumprir a data de partida original, vão concentrar-se na remodelação dos camarotes que já foram reservados, afirmou.

Mas parece que os residentes poderão ter de lidar com ruído a bordo, uma vez que, acrescentou, "as restantes cabinas serão posteriormente remodeladas".

Cerca de metade dos camarotes já foram vendidos. "Como uma equipa com décadas de experiência nas complexidades do mundo dos cruzeiros, sempre tivemos tempo de contingência em qualquer programa. As transações levam o seu tempo e, por vezes, atrasam-se. Esta situação não é invulgar, especialmente quando há muitas partes envolvidas", assegurou.

“Sem-abrigo e sem-emprego”

Os residentes fazem figas para que o cruzeiro parta a horas. Life at Sea Cruises

A menos de um mês da partida, alguns passageiros estão a ficar ansiosos com a falta de comunicação por parte da empresa.

A CNN falou com vários "residentes" - como são conhecidos os passageiros - que estão preocupados com a forma como o cruzeiro está a progredir. Todos quiseram manter o anonimato.

Afirmam que a empresa não responde às suas questões há um mês - e até ignorou pedidos de cancelamento de viagens.

Holmes afirmou à CNN que partilharam "uma atualização com os residentes há alguns dias" e que têm "publicado e interagido online regularmente". Mas alguns residentes discordam.

Dizem que desde 8 de setembro, quando a equipa emitiu um folheto de spa, não se soube de nada até 2 de outubro, quando Holmes abordou as preocupações dos residentes de que a venda do navio não tinha sido concretizada, confirmando que "a venda foi adiada". "Ainda não temos um prazo estimado para a sua concretização, mas temos tempo extra previsto na nossa agenda para garantir um lançamento pontual." Desde então, não houve qualquer comunicação oficial.

"Sei que estão muito ocupados, mas deviam ter alguma cortesia e pelo menos responder às perguntas", lamentou um residente.

"Não sabemos nada sobre excursões em terra, não sabemos nada sobre bagagem. Nem sequer temos o formulário que supostamente devemos preencher para poderem preparar as receitas [médicas] para todos. Não há nada."

Com o tempo a passar, nem todos estão convencidos de que o navio partirá de Istambul a 1 de novembro.

"Estou num impasse - não faço ideia do que está a acontecer", disse um.

"Se avançar, será uma oportunidade fantástica que não voltará a acontecer pelo preço que pagámos. Não estava disposto a perder esta oportunidade."

"Eles nunca foram muito bons na comunicação, mas há um mês que tenho a sensação de que estavam a acontecer coisas que não sabíamos."

"Gerir navios de cruzeiro é o negócio deles, por isso espero que saibam o que estão a fazer. Entrar no que deveria ter sido a finalização da compra de um navio e não estar devidamente preparado... Eles esforçaram-se muito, mas não fazemos ideia do que se está a passar financeiramente."

"O preço [do cruzeiro] é metade do que outros cruzeiros à volta do mundo cobram. É uma confusão."

Alguns dos residentes com quem a CNN falou dizem que ficarão sem casa se o cruzeiro não se realizar. As pessoas venderam as suas casas, carros e bens para se poderem comprometer com esta viagem.

Um passageiro já organizou a venda da sua empresa no final do mês.

"A partir de 1 de novembro, fico sem casa e sem emprego", conta. "Já estou a pensar num plano B e a procurar um lugar onde possa ficar por um curto período de tempo."

Alguns passageiros aproveitaram uma oferta para poupar dinheiro e pagaram o cruzeiro antecipadamente. Muitos já investiram dezenas de milhares de dólares no projeto.

"Não deveria ter permitido que a minha paixão por esta viagem toldasse o meu bom senso", assumiu um passageiro.

Numa mensagem aos residentes, lida pela CNN, a Miray informou que quem quiser cancelar nesta fase será reembolsado apenas em 10% do que investiu no projeto. 

"Espero que não cancelem"

Embora Holmes não tenha confirmado à CNN uma data específica para a transferência do navio, os residentes afirmam ter ouvido informalmente que a Miray assumirá a sua posse a 12 de outubro, ou seja, na última quinta-feira.

E embora Holmes insista que o navio partirá a 1 de novembro, os passageiros com quem a CNN falou têm dúvidas.

"Espero que a partida seja adiada - mesmo que eles o tenham nessa data", disse um. 

"Era suposto entrar em doca seca e ser renovado. Não seria bom passarem essa etapa e aparecerem com um antigo navio de cruzeiro da Carnival com 20 anos, no qual iremos viver durante três anos."

Um passageiro com quem a CNN falou optou por embarcar numa data posterior - porque já esperava confusão no início.

"Queria dar-lhes umas semanas para resolverem os problemas antes de me apanharem – estou feliz por não ter de lidar com possíveis renovações durante a travessia transatlântica.”

"As pessoas não estão preocupadas. Não sentimos que alguém esteja nervoso. Temos respondido a todas as perguntas dos residentes e recebido muitas mensagens positivas da parte deles", assegurou Holmes.

Todos os residentes esperam que, apesar dos seus receios, o cruzeiro se realize.

"As pessoas deixaram as suas casas, colocaram os seus bens em armazéns, algumas marcaram férias em Istambul e já estão a caminho", contou um.

"Se acontecer a 1 de novembro, ficarei chocado. Só espero mesmo, mesmo, que não cancelem."

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