Perguntas e respostas ajudam a perceber o que está em causa e o que pode mudar com nova decisão desfavorável
À terceira ainda não foi de vez. O Tribunal Constitucional (TC) voltou a declarar inconstitucional a proposta da Assembleia da República que regula o acesso a metadados de comunicações para fins de investigação criminal, alegando que a norma ultrapassa "os limites da proporcionalidade na restrição aos direitos fundamentais". A decisão levanta questões sobre a legislação existente e as consequências para casos em curso.
Em colaboração com Elsa Veloso, a CNN Portugal explora as implicações dessa decisão nas leis existentes e nos processos judiciais em curso.
O que mudou com a decisão do Tribunal Constitucional?
A decisão do TC invalidou a proposta do Governo, declarando-a inconstitucional devido à violação dos limites da proporcionalidade na restrição aos direitos fundamentais.
Em declarações à agência Lusa sobre a decisão do TC, Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, referiu que "essencialmente o TC continua a considerar que a conservação de dados de tráfego (metadados) de qualquer cidadão, mesmo por um período de tempo mais reduzido viola a Constituição no que respeita à privacidade" das pessoas.
Elsa Veloso, advogada e especialista em Proteção de Dados, explica que a decisão do TC significa que a proposta do Governo para regular o acesso a metadados "foi considerada desproporcional e viola os direitos fundamentais à autodeterminação informativa e à reserva da vida privada".
Qual era o contexto legal anterior?
Antes desta proposta, a Lei dos Metadados (Lei n.º 32/2008, de 17 de julho) estava em vigor desde 2008, visando a conservação de dados em serviços de comunicações eletrónicas ou redes públicas de comunicações para fins de investigação. Segundo Elsa Veloso, o objetivo era “auxiliar as autoridades competentes na investigação, deteção e repressão de crimes graves”.
“Estes dados dizem respeito a dados de tráfego, de localização e de dados conexos para identificar um determinado assinante ou utilizador”, explica a advogada.
Elsa Veloso explica que esta lei estabeleceu um determinado conjunto de condições para que existisse acesso aos referidos metadados. Em primeiro lugar, o “prazo de conservação de dados de um ano” e, em segundo, a “forma de aceder”. “Esta lei era uma transposição de uma diretiva da União Europeia que foi considerada não aplicável pelo próprio TJUE”, acrescenta.
A advogada contextualiza, explicando que a Lei dos Metadados foi implementada em 2008, mas enfrentou desafios legais ao longo dos anos. “Também a Comissão Nacional de Protecção de Dados declarou a não aplicação da lei n.º 32/2008”, destaca Elsa Veloso. “No entanto, essa lei continuou a aplicar-se até que foi para o Tribunal Constitucional e foi declarada inconstitucional”, clarifica a especialista em Proteção de Dados.
Como chegou esta proposta ao Tribunal Constitucional?
Elsa Veloso relembra a proposta de lei dos metadados apresentada pela ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, em maio de 2022. “A Sra. ministra da Justiça veio dizer que descobriu uma mudança de paradigma, uma solução milagrosa para o chumbo do TC”, diz a advogada, explicando que esta solução passava pela utilização da lei das comunicações como referência. “Esta lei permite às operadoras de telecomunicações reterem os dados durante seis meses para efeitos de reclamação das faturas e comunicações existentes”, clarifica. Assim, explica a advogada, “para fins de investigação criminal, a ministra propunha que se acedesse a essas bases de dados”.
“Desta mudança de paradigma surge uma proposta de lei feita pelo Governo que é aprovada na Assembleia da República e, posteriormente, enviada ao Presidente da República que remete para o Tribunal Constitucional”, esclarece Elsa Veloso.
Porque é que o Tribunal Constitucional considerou a proposta inconstitucional?
A justificação do Tribunal Constitucional foi baseada na violação do direito à reserva da vida privada e familiar. A proposta “ultrapassa os limites da proporcionalidade na restrição aos direitos fundamentais à autodeterminação informativa e à reserva da intimidade da vida privada", diz Elsa Veloso.
“A proposta agride os direitos fundamentais, como o sigilo das comunicações”, diz a advogada que reforça a importância da não violação deste direito fundamental consagrado no art. 34.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa. Elsa Veloso esclarece ainda que, o sigilo das comunicações “abrange não apenas o conteúdo do que é transmitido, mas também as circunstâncias da comunicação”.
Isto é, a frequência, os correspondentes, as comunicações falhadas e as localizações das pessoas”.
“A justificação é que existe uma acusação grave”, explica Elsa Veloso, evidenciando a violação do princípio da proporcionalidade. De acordo com a Lei dos Metadados, a conservação de dados tem por finalidade exclusiva a investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes. Assim, para Elsa Veloso, “esta conservação e transmissão de dados não é proporcional pelo que, esta lei não deve ser aplicada”.
A proposta viola ainda o direito a ter uma tutela jurisdicional efetiva, que “é um direito fundamental”, diz a advogada. Para Elsa Veloso, “o dever de comunicação ao interessado não está assegurado”. Neste sentido, a especialista em Proteção de Dados explica que “a menos que os dados estejam sob investigação pelo Ministério Público, é necessário informar o titular dos dados sobre a sua disponibilidade”. No entanto, segundo Elsa Veloso, a exceção proposta por esta nova lei, enviada pelo Presidente da República ao TC, é tão abrangente no que diz respeito ao dever de notificar os cidadãos que, na visão do Tribunal Constitucional, elimina a garantia de uma tutela jurisdicional efetiva. “Por conseguinte, o Tribunal declarou inconstitucionais esses artigos”, conclui.
De que forma é que a decisão impacta os processos penais em curso?
Em muitos casos, os metadados são provas consideradas cruciais em casos que se arrastam há muitos anos. E a decisão do TC tem efeitos retroativos. “Esta proposta veio trazer um terramoto jurídico porque existiam processos em curso cujo os metadados tinham sido uma parte importante do processo, recolhidos com base no prazo de conservação de um ano”, explica Elsa Veloso, dando como exemplo o caso da Rosa Grilo.
Por um lado, Elsa Veloso esclarece que os juízes têm a liberdade de apreciar sob o seu livre critério. “Os juízes tendo a informação podem decidir julgar num sentido ou noutro”.
Por outro, a especialista explica que os indivíduos ou entidades afetadas pela Lei dos Metadados podem agora apresentar contestações legais ou recursos com base na decisão do TC. “Assim, os advogados desses indivíduos invocaram a inconstitucionalidade da obtenção de prova para que não seja validada em tribunal”.
Quais são as alternativas legais e qual será o caminho a seguir para regulamentar o acesso a metadados?
A advogada Elsa Veloso explica que esta tentativa de aceder aos metadados não colhe perante o nosso TC. “O TC defende direitos liberdades e garantias presentes na CRP pelo que, não vê como se pode espalhar sobre a totalidade da população o ónus da sua não privacidade em toda a linha e quer preservar a privacidade a proteção dos dados”, desenvolve a especialista em Proteção de Dados.
Elsa Veloso não esclarece quais as alternativas legais mas, na sua opinião, a declaração de inconstitucionalidade do TC, “vai trazer novamente incerteza, mas de um lado certeza de que os valores da privacidade estão, outra vez, na ordem do dia”. Para a advogada, é uma questão premente que preocupa os cidadãos. “As empresas devem gerir os dados das pessoas de forma clara e transparente”, acrescenta.
Neste sentido, Elsa Veloso defende que “devem existir outros mecanismos que permitam demonstrar e fazer prova”. Contudo, frisa a importância da privacidade e proteção de dados. “Não se pode pôr sobre toda a população o espectro de suspeição”, sublinha a advogada, acrescentando que também não se deve permitir “exceções à proibição de vasculhar a vida privada através de um número infinito de dados, em qualquer circunstância”.
Temos de encontrar critérios e fórmulas de fazer investigações judiciais de uma forma que não ponha todos sob a lupa dos culpados”, diz a advogada.
“Não podem ser guardados dados dos cidadãos sem que saibam que estão a ser vigiados e escrutinados e, acima disso, cruzar todos os seus dados e metadados”, diz a advogada, explicando que “a proposta de lei viola o direito à vida privada" (art. 2.º/2 da CRP) e o direito à autodeterminação informativa (art. 26.º/1 e 35.º/1 da CRP)”.
Na ótica da advogada a decisão do Tribunal Constitucional cria incerteza, mas destaca a importância da privacidade e proteção de dados. Assim, Elsa Veloso defende que é crucial uma abordagem equilibrada entre segurança e direitos fundamentais. Mais, “é fundamental que o debate sobre a regulamentação dos metadados continue em destaque”.
A decisão é final? Já não há mais nada a fazer?
“As propostas podem seguir”, explica a advogada, esclarecendo que podem ser discutidas e apresentadas novas propostas pela Assembleia da República sob proposta de Governo. No entanto, Elsa Veloso frisa que “seria conveniente que efetivamente se pensasse numa solução mais adequada que não viole os princípios constitucionais, sob pena de vir a ser chumbada novamente”. “Seria o segundo chumbo num período curto de tempo”, acrescenta.