Há mais JMJ para além da multidão

28 jul 2023, 19:04

A menos de uma semana da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), uma parte das conversas anda à volta do número de peregrinos. Fazem-se estimativas e antecipa-se se, no final, as expectativas serão superadas ou se saem goradas. A JMJ é um evento massivo e, por isso, é inevitável esta conversa.

Mas importa ir mais além do mediatismo da multidão. Antes e depois deste impactante acontecimento, há mais JMJ para além da multidão. 

Antes há os dias nas dioceses, outros programas pré-jornadas como o Magis ou iniciativas como o Pacto da Montanha. Fora da atenção mediática milhares de jovens espalhados por todo o país conhecem melhor a realidade portuguesa, aproximam-se de contextos e pessoas tantas vezes esquecidas:  populações isoladas, bairros periféricos, jovens com deficiência. Fora dos holofotes mais luminosos, comprometem-se na promoção de uma ecologia integral estando mais atentos a cuidado com a casa comum e aos efeitos que os desequilíbrios ambientais têm na vida de tantas pessoas e regiões afetadas pela pobreza e pela injustiça. Deste modo compreendem melhor a ligação do Evangelho que Jesus nos traz às questões do dia a dia, deste modo muitos destes jovens têm experiências verdadeiramente transformadoras que mudam as suas vidas.

Mas se isto é verdade para o que acontece antes da JMJ, também terá que ser verdade nos pós JMJ. E aqui, como Igreja, temos que estar atentos. Entre outras consequências o processo de secularização levou a que a voz da Igreja fosse apenas mais uma entre tantas outras que estão presentes no espaço público. Seria perigoso, como alguns desejam, relegar esta voz para a esfera privada, mas seria igualmente perigoso se o sucesso da JMJ alimentasse resquícios triunfalistas da Igreja. Por entre a dimensão espetacular dos grandes eventos desta jornada, não deixará certamente de ecoar a voz de muitos jovens, a força dos seus sonhos e a dureza das suas fragilidades. Importa que como Igreja não nos distraíamos com o ruído e saibamos escutar anseios, alegrias, medos e desejos. É justo reconhecer que vários momentos da JMJ foram pensados para que esta escuta fosse possível.

Contudo, para lá da JMJ, este exercício de escuta precisa de ser aprofundado no contexto da Igreja portuguesa. Em primeiro lugar, precisamos de crescer em humildade. Temos ainda demasiados tiques de sobranceria e distância. Temos ainda colada à nossa pele a imagem de uma Igreja cuja palavra e a presença era muito mais prevalecente no contexto da sociedade portuguesa. Sabemos que hoje não é assim. O desalento que isto provoca faz-nos mais nostálgicos do que profetas. Temos algo de relevante e único a dizer, mas precisamos de propô-lo de um modo mais livre, corajoso e sem ressentimentos ou precipitações, sabendo que habitamos um mundo plural. Esta humildade pressupõe uma verdadeira capacidade de escuta. Escutar o contexto em que vivemos, escutar as pessoas, acolher a crítica como lugar em que o Evangelho se pode manifestar, chamando-nos a uma maior coerência e a um modo de propor a fé enraizado na realidade.

Se tomarmos como exemplo a vivência da sexualidade e da afetividade entre os jovens, encontraremos uma dimensão da vida em que a escuta está em grande parte bloqueada. Por um lado, a Igreja tem dificuldade em compreender o modo como os jovens vivem esta dimensão da sua vida. Por outro, muitos jovens olham para a proposta da Igreja como um enorme ‘não’ incapaz de os ajudar e de lhes trazer luz. Pode soar exagerado dizer que os jovens ficam perdidos entre o “vale tudo” de tantas propostas e o “não vale nada” da Igreja. Mas, ao sabermos que 65,2% dos jovens reconhece ter sofrido alguma forma de violência no namoro, talvez possamos reconhecer que algo não está definitivamente a correr bem no modo como os jovens vão desenvolvendo a sua vivência afetiva. Podemos fazer de conta que isto não tem nenhuma relação com as tais propostas do ‘vale tudo’, mas, provavelmente, estaremos a ser ingénuos. Acredito que o amor libertador, entregue e gratuito testemunhado por Jesus pode inspirar um desenvolvimento livre e feliz da afetividade. Mas se tudo é imediatamente rotulado de pecado, se não ouvimos os anseios, feridas e desejos que se escondem no modo como os jovens vão descobrindo a sua afetividade, bloqueamos a escuta e o diálogo, abandonamos os jovens no seu caminho.

“A realidade é mais importante do que a ideia.” Esta é uma das ideias-chaves do Papa Francisco expressa no seu primeiro grande documento, a exortação apostólica “Evangelli Gaudium”. O modo de agir de Francisco tem também desenhado o princípio segundo o qual, em cada circunstância somos chamados a promover o maior bem possível. Sem humildade e sem escuta é grande a possibilidade da proposta da Igreja se transformar numa ideologia imposta à realidade, numa ideologia incapaz de promover pequenos e grandes bens.

A multidão que se vai reunir em Lisboa experimentará certamente alegria e espanto. Mas cada uma daquelas pessoas regressará depois às suas vidas, tantas vezes difíceis. Para que esse espanto e essa alegria possam transformar as suas vidas é importante que haja em cada lugar uma comunidade capaz de as acompanhar com humildade e capacidade de escuta. Em Portugal temos um estimulante e longo caminho a fazer para que assim seja.

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