Irão "encurralado" ataca três países em 48 horas e provoca potência nuclear. "Cão que ladra e não morde" ou mais um passo rumo à III Guerra Mundial?

19 jan, 07:00
Exército iraniano em exercícios militares (AP)

Guerra que já envolvia várias partes no Médio Oriente corre o risco de se alastrar para este. Mas é muito mais do que Irão e Paquistão. É também Índia e China

Quando pomos contactos em marcha para tentar falar com militares paquistaneses sobre as atuais tensões com o Irão, é-nos dito que é impossível pôr alguém do Exército a falar com jornalistas neste momento. “As forças armadas estão a fazer um jogo fechado e estão focadas nos seus contactos com o Irão”, diz à CNN Portugal um analista sediado em Islamabade.

Esses contactos bilaterais podem parecer estranhos para quem tem acompanhado as notícias mais recentes da região: em menos de 48 horas, a Guarda Revolucionária iraniana lançou ataques com mísseis na Síria e no Curdistão iraquiano e virou as armas também para o Paquistão, com um ataque estratégico na província do Baluchistão – que, na quinta-feira, levou os paquistaneses a responderem com “ataques militares de precisão altamente coordenados” contra militantes sunitas na província iraniana vizinha, o Sistão-Baluchistão. Segundo o vice-governador da província, nove pessoas morreram, entre elas três mulheres e quatro crianças.

“O Ministério dos Negócios Estrangeiros [do Paquistão] escolheu bem as suas palavras no comunicado, ao dizer que, apesar de ter lançado um ataque em solo iraniano, ainda considera o Irão um país-irmão e ainda respeita a sua soberania”, destaca Sahar Baloch, correspondente da BBC Urdu. “E ao mesmo tempo, volta a convidar o Irão para conversações bilaterais, para no fundo criar uma estratégia conjunta para ir atrás destes militantes. Há muita dependência entre o Paquistão e o Irão neste contexto.”

A crescente tensão regional tem raízes mais profundas, mas os ataques executados por Teerão esta semana remontam, concretamente, ao atentado de 3 de janeiro em Kerman, quando uma dupla explosão provocou quase 100 mortos e centenas de feridos durante uma cerimónia muito participada a marcar os quatro anos do assassínio do comandante Qassem Soleimani num ataque dos EUA com drones.

Explosões fizeram dezenas de mortos no Irão (Mahdi Karbakhsh Ravari/AP)

O atentado terrorista, indicaram as autoridades iranianas, foi coordenado para “infligir a maior devastação possível”: depois de uma primeira explosão na cerimónia fúnebre, a segunda bomba explodiu 20 minutos depois, já após equipas de emergência e transeuntes terem acorrido ao local para ajudar as vítimas. Nesse dia, o Guardian sublinhava: “Quem quer que esteja por detrás deste ataque está claramente disposto a arriscar desencadear uma guerra regional.”

O quem é quem dos ataques

Numa primeira reação, Teerão apontou o dedo a Israel, no contexto da sua guerra contra o Hamas na Faixa de Gaza e da resposta dos Houthis do Iémen (que o Irão apoia) à ofensiva hebraica, na forma de sucessivos ataques a embarcações comerciais e militares no Mar Vermelho. Os atentados viriam depois a ser reivindicados por um ramo do autoproclamado Estado Islâmico na região (ISIS-K). Mas na sua reação, as autoridades em Teerão foram cuidadosas.

Num discurso público em que prometeu vingar-se do atentado em Kerman, o aiatola Ali Khamenei, líder supremo do Irão, disse que “os criminosos cruéis têm de saber que vão ter uma resposta em força daqui para a frente”, sem nomear os responsáveis. Já depois de reivindicado o ataque, a agência de notícias estatal do Irão continuou a disseminar comentários do aiatola Seyyed Ahmad Alamulhadi, influente clérigo e membro do conselho constitucional, de que Israel está a financiar os terroristas sunitas – uma ideia reforçada noutros media iranianos, como o Tehran Times, onde Mona Hohat Ansari escreveu: “Israel desempenhou um papel inegável na orquestração deste ataque terrorista [em Kerman], pelo menos na medida em que deu a ordem e providenciou apoio logístico.”

A resposta prometida chegou esta semana. Na madrugada de segunda-feira, o Corpo da Guarda Revolucionária Iraniana lançou mísseis contra “espiões do regime sionista [Israel]” no Iraque, nomeadamente contra um alegado posto da Mossad em Erbil, e também contra alvos ligados ao ISIS na Síria. No dia seguinte, Teerão anunciou novos ataques contra um bastião do grupo sunita Jaish-e-Adl, que opera no Baluchistão paquistanês – levando o Paquistão a responder na quinta-feira com ataques do outro lado da fronteira provincial, num elevar de tensões entre os dois aliados regionais.

Não é raro figuras do regime iraniano acusarem Israel de ligações ao ISIS e a ataques da militância sunita contra os seus militares, nomeadamente na tensa região do Baluchistão. “Há muita pobreza nas duas províncias, quer do lado paquistanês, quer do lado iraniano, há muitas outras coisas a acontecer, e nos dois lados da fronteira os baluchis [grupo étnico indígena] sentem-se injustiçados pela maioria xiita do Estado iraniano, são alvo de discriminação e sentem que deviam receber uma fatia maior dos recursos explorados na região”, refere Sahar Baloch à CNN Portugal. “Também por causa da pobreza, estes militantes estão sempre em modo de guerra com os seus respetivos Estados. As atuais tensões não são uma novidade, isto tem estado a acontecer há já algum tempo.”

Na província iraniana do Sistão-Baluchistão, indica a jornalista da BBC como exemplo, o Jaish-e-Adl tem estado a raptar e a matar soldados iranianos. “Como resultado, o Irão tem mantido conversações com o Paquistão sobre a necessidade de partilhar informações das secretas sobre estes grupos. E foi neste contexto que, nas últimas 48 horas, o Irão atacou o Al-Sham na Síria e o Jaish-e-Adl no Baluchistão.”

Uma relação difícil mas (até ver) funcional

A retórica está inflamada, como é notório nas decisões diplomáticas do Paquistão, que já retirou o seu embaixador de Teerão e que prometeu não permitir o regresso do alto representante do Irão a Islamabade. Mas os dois países não têm como contornar a aliança forjada pela dissidência no Baluchistão, indicam os especialistas. “O Irão tem vindo a prometer ir atrás do Jaish-e-Adl, uma organização militante não muito grande, formada após o líder do Jundullah [Movimento de Resistência Popular do Irão], Abdul Malik Regi, ter sido detido em 2010 a bordo de um avião com destino ao Dubai e, mais tarde, executado. O Paquistão ajudou o Irão também nisso e Teerão apreciou essa ajuda”, explica Baloch.

Mesmo assim, ao anunciar a operação “Marg Bar Sarmachars” (“Morte aos guerrilheiros”, numa tradução livre do persa), o Paquistão fez questão de apontar o dedo à “inação” dos iranianos. “Ao longo dos últimos anos, nos nossos contactos com o Irão, o Paquistão tem consistentemente partilhado sérias preocupações quanto aos santuários e portos seguros que os terroristas de origem paquistanesa autointitulados Sarmachars têm encontrado em espaços desgovernados dentro do Irão”, lê-se no comunicado.

“O Paquistão tem partilhado múltiplos dossiês com provas concretas da presença e atividades destes terroristas. Mas por causa da falta de ação perante as nossas sérias preocupações, estes Sarmachars continuam a derramar sangue de paquistaneses inocentes com impunidade”, adiantou o governo paquistanês em funções (quando faltam apenas três semanas para as legislativas no país). “A ação desta manhã foi tomada à luz de informações credíveis sobre iminentes atividades terroristas de larga escala por estes autoproclamados Sarmachars” – militantes que, como ressalta Baloch, “dizem estar a lutar também em nome dos interesses dos curdos e dos cuzistaneses e não apenas pelo povo do Baluchistão em ambos os lados da fronteira”.

São vários os especialistas que creem que as autoridades iranianas informaram os homólogos paquistaneses dos ataques que iam lançar, apesar de a reação oficial de Islamabade sugerir o oposto. Na terça-feira, horas antes do ataque ao Baluchistão paquistanês, o Golfo Pérsico foi palco de mais um exercício militar conjunto entre os dois países e o chefe da diplomacia iraniana encontrou-se com o primeiro-ministro interino do Paquistão à margem do Fórum Económico Mundial, em Davos.

Há alguns dias, um observador destacava à Iran International, canal de televisão persa sediado no Reino Unido: “Um ataque surpresa ‘sem provocação’ no território de uma potência nuclear [com 170 ogivas nucleares] parece representar um passo em falso para um regime que tem vindo a provar, vezes e vezes sem conta, que ladra mais do que morde.”

China a mediar, Índia "validada"

As tensões e lutas entre xiitas e sunitas que têm dominado o mundo muçulmano ao longo de séculos podem estar na raiz dos recentes ataques, mas há (sempre) outros interesses geoestratégicos em jogo.

Com o mundo de olhos postos no Médio Oriente desde o ataque do Hamas a 7 de outubro – que vitimou cerca de 1.200 pessoas e ao qual Israel tem respondido com bombardeamentos incessantes e uma operação terrestre na Faixa de Gaza que já provocou mais de 23 mil mortos, sobretudo mulheres e crianças – vários atores internacionais fizeram questão de se posicionar publicamente sobre a nova acendalha.

À cabeça surgiu a China, aliada dos dois países, a oferecer-se para mediar a situação. “O lado chinês espera sinceramente que os dois lados mantenham a calma e a moderação para evitar uma escalada das tensões”, disse a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Mao Ning, na quinta-feira, referindo-se ao Irão e ao Paquistão como “países amigos da China, e países com importante influência”.

“Estamos dispostos a desempenhar um papel construtivo para amenizar a situação se os dois lados assim o desejarem”, adiantou Mao – exatamente o que Pequim fez há cerca de um ano, quando ajudou a restaurar as relações entre o Irão xiita e a Arábia Saudita sunita em março de 2023, esta última atualmente em rota de aproximação a Israel.

Do outro lado do espectro surge a Índia, outra potência nuclear, arquirrival do Paquistão e considerada um aliado tradicional do Irão, a defender que esta é uma questão que só diz respeito aos dois envolvidos. “No que toca à Índia, temos uma posição intransigente de tolerância zero em relação ao terrorismo [e] compreendemos as ações de autodefesa dos dois países”, disse a diplomacia indiana num comunicado emitido na quarta-feira.

“A Índia, que tem a sua própria contenda com o Paquistão, surge neste contexto porque tem sempre dito que o Irão tem direito a ir atrás destes militantes, enquanto o Paquistão acusa a Índia de estar a apoiar os militantes no Baluchistão, dos dois lados da fronteira”, explica Sahar Baloch, invocando como indício desse envolvimento a detenção de Khulsbushan Jadhav, um espião indiano, quando regressava ao Baluchistão paquistanês vindo do Irão.

“De certa forma”, adianta a especialista paquistanesa, “a Índia sente-se vingada e validada face às preocupações que tem manifestado sobre o grupo de Hafiz Saeed, o Lashkar-e-Taliba [responsável pelo atentado de 2008 que matou 166 pessoas em Bombaim], e o Lashkar-e-Jhangvi [outra organização jihadista], pedindo ao Paquistão que fosse atrás desses militantes. É por isso que considera estar do mesmo lado que o Irão nisto.”

Sem surpresas, a reação pública dos EUA foi de condenação às ações iranianas. “Nos últimos dias vimos o Irão violar as fronteiras soberanas de três dos seus vizinhos”, disse Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado. “Queremos certamente a manutenção da paz e da estabilidade, especialmente nesta região, que tem sido o foco dos nossos esforços diplomáticos desde 7 de outubro.”

Gaza ao centro e o iminente efeito dominó

Oficialmente, o Irão defende que os ataques nos países vizinhos visaram apenas destruir terroristas sunitas. Mas é difícil não traçar uma ligação entre as audazes ações desta semana – com recurso a mísseis balísticos, alguns com um alcance bastante superior a 1.200 quilómetros – e os conflitos em curso no Médio Oriente. Como apontava esta semana à CNN Portugal um especialista: “O Irão está a mostrar que pode não ficar só pelos ataques por procuração, através do Hamas ou do Hezbollah. […] O Irão sabe que pode atacar porque tem o apoio da Rússia, tal como a Rússia teve o apoio da China para atacar a Ucrânia. Não é uma terceira guerra mundial, mas este já é, sem dúvida, um conflito global.”

Face à ofensiva em Gaza, pela qual Israel enfrenta acusações de genocídio no Tribunal Internacional de Justiça, têm aumentado os ataques “contidos” de grupos financiados e armados pelo Irão, como os rebeldes Houthis no Iémen e o Hezbollah no Líbano – num reforço do já longo braço-de-ferro entre iranianos e israelitas.

No caso dos houthis, os EUA estão a liderar uma coligação que tem atacado postos rebeldes no Iémen na tentativa de restaurar a estabilidade no Mar Vermelho, uma das principiais rotas marítimas do comércio mundial. Quanto ao Hezbollah, Israel tem deixado claro que, se a comunidade internacional não intervir para apaziguar as tensões na fronteira com o Líbano, Telavive vai resolver o problema à sua maneira. Isto sem esquecer o ISIS e grupos filiados que, como aponta o analista Aaron Zelin, vão continuar, “aconteça o que acontecer”, a atacar alvos do Irão.

“De certa forma, o Irão está a sentir-se encurralado”, ressalta a correspondente da BBC Urdu, invocando ataques semelhantes ao atentado de Kerman ocorridos noutras províncias iranianas nos últimos anos. “O Irão estava à espera de uma oportunidade para ir atrás dos militantes. E agora que foi, a China oferece-se para mediar a situação entre o Irão e o Paquistão e há outros dois países do Golfo que também querem ajudar. Ninguém quer que a situação escale.”

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