"Não é uma terceira guerra mundial mas já é um conflito global": Irão abre as portas a um conflito maior (e não está sozinho)

17 jan, 07:00
Mísseis iranianos (EPA)

Estados Unidos tentam defender o livre comércio marítimo no Mar Vermelho, mas os ataques contra os rebeldes Houthis não foram suficientes para travar o aliado iraniano. Agora, com o apoio de outras potências, o regime iraniano está disposto a elevar a fasquia do conflito

O conflito no Médio Oriente voltou a subir de tom. Em menos de 24 horas, o Irão lançou um ataque com mísseis balísticos e drones kamikazes contra alvos da Mossad em Erbil, no norte do Iraque. Horas depois, os rebeldes Houthis voltaram a atingir um navio cargueiro grego no Mar Vermelho. Esta foi a primeira vez que Teerão admitiu a autoria de um ataque desde o início do conflito e, para os especialistas, isso significa que a dissuasão americana na região não só está a falhar como arrisca elevar o conflito para um patamar global. E isso só é possível porque o Irão sabe que não está sozinho.

“O Irão está a mostrar que pode não ficar só pelos ataques através de proxies, como o Hamas ou o Hezbollah. Há uma ligação muito forte entre este conflito no Médio Oriente e o da Ucrânia. O Irão sabe que pode atacar porque tem o apoio da Rússia, tal como a Rússia teve o apoio da China para atacar a Ucrânia. Não é uma terceira guerra mundial, mas este já é sem dúvida um conflito global”, defende José Filipe Pinto, professor catedrático e especialista em Relações Internacionais.

Ao contrário do que tinha acontecido até agora, o Irão lançou, pelo menos, dois ataques contra o território dos seus vizinhos. O primeiro, lançado durante a madrugada de segunda-feira, foi feito contra “espiões do regime sionista [Israel]” no Iraque e contra alvos do Estado Islâmico na Síria. Já esta terça-feira, Teerão anunciou novos ataques contra bases do grupo terrorista Jaish al-Zalm, uma organização que opera a partir do sudeste do Paquistão. O ministério paquistanês dos Negócios Estrangeiros responsabilizou o Irão pela morte de duas crianças e prometeu "graves consequências". Para os especialistas, este não foi um mero incidente esporádico, mas sim uma mudança de postura por parte das autoridades militares em Teerão, que só acontece por ter o apoio de uma outra grande potência: a Rússia.

Desde o início do conflito na Ucrânia que o Irão se posicionou como um grande aliado russo ao fornecer os drones kamikaze Shahed-136, numa altura em que Moscovo não conseguia fazer face à sua necessidade de munições durante o primeiro ano da invasão. Agora, quase dois anos depois do início da guerra, o Kremlin tem todo o interesse em desviar as atenções (e o apoio militar) para bem longe de Kiev. O resultado prático é o escalar da guerra, que pode resultar num conflito ainda mais alargado a todo o Médio Oriente.

“O Irão sente-se mais confortável porque tem um aliado de proximidade que é a Rússia. Moscovo é quem tem mais interesse no escalar do conflito, embora de forma controlada, para que o Ocidente se vire para o apoio ao Israel em detrimento do apoio à Ucrânia. A Rússia não quer que o Irão embarque numa guerra contra os Estados Unidos, porque dependem em muito da indústria militar iraniana, que seria um dos primeiros alvos dos americanos”, explica o major-general Isidro de Morais Pereira.

Um ninho de vespas

Mas os conflitos modernos não se limitam apenas à componente militar. É cada vez mais difícil dissociar as vertentes económicas e diplomáticas dos confrontos modernos e é esse mesmo motivo que levou os Estados Unidos da América a criar uma coligação de países para defender a rota marítima no Mar Vermelho. Ao longo dos últimos dias, os rebeldes Houthis, apoiados pelo Irão, atacaram vários navios de transporte de mercadorias que tentam atravessar a região em direção ao canal do Suez.

A resposta americana fez-se sentir no dia 12 de janeiro, com uma campanha de bombardeamento contra vários alvos miliares no território do Iémen, onde os rebeldes operam. De acordo com os relatórios das forças armadas norte-americanas, cerca de 25% das capacidades militares do grupo foram atingidas. A vasta maioria dessas capacidades foi fornecida pelo Irão. De acordo com um relatório de 2021 do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, minas marítimas, mísseis balísticos e de cruzeiro e veículos aéreos não tripulados (UAVs, ou drones).

“Os Estados Unidos tentaram atingir alvos militares, centros de produção e pontos de lançamento de drones e mísseis. Acontece que os Houthis têm a possibilidade de fazer o deslocamento das plataformas móveis de lançamento. Isto significa que a capacidade dos rebeldes pode ter sido reduzida, mas não aniquilada”, refere José Filipe Pinto.

Os especialistas defendem também que este ataque acabou por não produzir um efeito dissuasor. Dias depois, o grupo voltou a fazer novos ataques contra navios de transporte de mercadorias e já obrigou ao desvio de uma parte significativa do tráfego marítimo, com um número cada vez maior de empresas a preferir atravessar o Cabo da Boa Esperança de forma a evitar passar pela região. Isto leva a que os custos do transporte de mercadorias subam, aumentando a pressão da inflação nas economias ocidentais.

Além disso, existe uma grande disparidade entre os custos de operações para os Estados Unidos em relação aos ataques do Iémen. Para conseguir defender os cargueiros que atravessam a região, a marinha americana tem de utilizar algumas das armas antiaéreas mais sofisticadas, que, nalguns casos, custam mais de um milhão de euros por unidade. Do outro lado, os rebeldes Houthis conseguem causar danos severos contra as embarcações com apenas alguns milhares de euros.

“Os Estados Unidos tinham de retaliar porque são afetados pelos ataques contra a marinha mercante, mas também têm de se afirmar enquanto guardiões da prosperidade e do livre comércio. Mas o Iémen é um ninho de vespas. Ninguém quer colocar botas no terreno, por isso, os ataques vão-se ficar pela intervenção aérea”, explica o professor José Filipe Pinto.

Os Houthis, um dos lados da guerra civil iemenita que dura há quase uma década, fazem parte do chamado "Eixo de Resistência" do Irão - uma aliança anti-israelita e anti-ocidental de milícias regionais apoiadas pela República Islâmica. Juntamente com o Hamas em Gaza e o Hezbollah no Líbano, os Houthis são uma das três principais milícias apoiadas pelo Irão que lançaram ataques contra Israel nas últimas semanas.

Agora, apoiados pela Rússia e com o consentimento da China, estes grupos estão mais motivados que nunca a defender os seus interesses perante a maior potência do mundo, os Estados Unidos. As visões destes blocos estão cada vez mais difíceis de conciliar num mundo globalizado.

“Como é que conseguimos coordenar uma ordem internacional quando os princípios de cada uma das ordens não são os mesmos ou são objeto de uma diferente interpretação. Estamos a presenciar um choque de civilizações e o mundo vai tornar-se cada vez mais instável”, frisa José Filipe Pinto.

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