"Não estão com pessoas, nem têm desejo de estar": Hikikomori, um fenómeno que afeta a saúde mental dos jovens portugueses

17 mai, 10:00
Jovem

Foi estudado pela primeira vez em Portugal e afeta sobretudo jovens adultos. Além dos casos identificados de Hikikomori, há uma grande percentagem de pessoas em risco de entrar neste círculo vicioso. Psicóloga e professora universitária responsável pelo estudo avança sinais de alerta e dá uma ideia do que deve ser feito para resgatar deste "profundo isolamento social" quem nos é mais próximo

Vivem completamente isolados dentro de casa, muitas vezes por períodos longos que podem ir desde meses a anos. Não têm qualquer convívio presencial com outros seres humanos e nem sequer vontade disso. Este fenómeno extremo de isolamento social é conhecido na comunidade científica como Hikikomori. Um fenómeno que não é novo – foi identificado pela primeira vez no Japão na década de 70 –, mas que a pandemia parece ter vindo potenciar e que pela primeira vez foi estudado em Portugal, com resultados perturbadores.

Os investigadores do ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada) concluíram que 1,2% dos indivíduos da amostra estudada apresentam grau máximo na escala que mede o Hikikomori. “Não estão com pessoas fisicamente, não têm o desejo de estar, fazem tudo online, desde compras a trabalho, a relacionamentos… Vivem sem contacto com ninguém. E há aqui uma correspondência com a dependência online e do ponto de vista da saúde mental, que é aí que devemos estar preocupados”, explica Ivone Patrão, psicóloga e professora, coordenadora do estudo.

“Há uma correlação com a dependência online, há mais sintomas depressivos, mais sintomas de ansiedade e de stress. Este isolamento extremo traz riscos para a saúde mental e também para a saúde física. Por exemplo, estas pessoas até podem praticar exercício em casa, mas é diferente fazer exercício físico em casa e exercício físico fora, até porque o exercício no exterior permite sociabilização e contacto com a natureza e com o mundo exterior”, acrescenta a especialista em adição online e fundadora do projeto Geração Cordão.

E se a percentagem de Hikikomori extremo pode parecer irrisória (1,2% está “em linha” com os valores obtidos noutros países onde o fenómeno foi estudado, como Estados Unidos ou França, e não muito longe dos 4% registados no Japão), os números dos indivíduos em risco de resvalar para esse nível são mais impressionantes. Mais de 43% dos indivíduos estudados revelaram sinais de risco.

“Quando avaliamos o isolamento, temos 43% de indivíduos da amostra que passa a maior parte do tempo em casa. Não é o único critério para Hikikomori, mas é expressivo para estes dados, porque, conjugado com outros critérios como preferir não estar com pessoas, a ansiedade sentida quando não está no mundo online, pode ser revelador de risco de Hikikomori”, diz Ivone Patrão.

Os sinais de alerta

O estudo analisou os questionários de 124 participantes, com idades entre os 18 e os 62 anos (82% do género feminino e 64,5% com habilitações literárias de nível superior).  O confinamento trazido pela pandemia e o recurso ao teletrabalho vieram potenciar o risco. Não é alheio a este contexto o facto de o estudo ter revelado que o fenómeno atinge sobretudo jovens adultos, que já estão no mercado de trabalho.

Cerca de 70% dos indivíduos inquiridos revelam já ter criado relações online com outros utilizadores. “O que, por si só, não revela qualquer problema. Todos já socializámos online, já constituímos relações online que depois caminham para o presencial. Há muitos destes relacionamentos que até dão em casamento. Mas, daqueles 70%, 10% dizem que não levam essas relações para outro lado e não procuram relacionamentos presenciais. Estamos a alimentar a doença mental”, alerta Ivone Patrão.

“Se eu gosto mais de estar online do que offline, estou a prejudicar o meu desenvolvimento. Porque o nosso cérebro precisa do toque, do cheiro, da presença. Sabemos inclusive que o suporte social é excelente na saúde mental”, acrescenta.

É fundamental, apesar do isolamento, que quem está à volta destes indivíduos reconheça os sinais de alerta. “Essa identificação é muito importante. Porque podemos correr o risco de validar estas situações com observações como ‘Não vem ao almoço de família porque tem muito trabalho’, ‘não vai aos anos do sobrinho porque tem uma reunião’, ‘ahhh tem lá o trabalho dele online’…”, sublinha a especialista.

Ivone Patrão sublinha que há uma grande diferença entre uma pessoa tímida ou reservada e uma pessoa em risco de Hikikomori: “Já está mais do que provado que as pessoas introvertidas podem ser muito felizes”.

Assim, é preciso estar atento a sinais como:

  • Um isolamento cada vez mais acentuado de todo o contacto social.
  • Alterações do ponto de vista emocional, como uma maior tristeza, ou uma maior ansiedade.
  • Perceção que há um menor bem-estar ou um bem-estar muito associado ao mundo online e não ao mundo social.
  • Alterações no sono ou nos padrões alimentares, porque o isolamento também implica alterações nos horários de sono ou de refeições: “Estranhar se se liga a uma determinada pessoa e ela diz que vai almoçar às seis da tarde ou se manda emails ou mensagens às quatro da manhã”.
  • Alguma irritabilidade quando há uma tentativa de o resgatar deste mundo.

“São pessoas que preferem estar online do que estar numa relação física. Se bem que pessoas com este nível de isolamento já seja difícil haver uma relação ou uma relação durar algum tempo”, resume a psicóloga.

O que fazer para ajudar e o papel das empresas

A família e os amigos têm uma importância primordial na deteção do problema, mas também no resgate. “Deve-se falar sobre isso em família, deve-se colocar o assunto em cima da mesa, não devemos colocar as questões logo com um juízo de valor, sem muitos rótulos, sem muita afronta. Demonstrar preocupação e fazer notar que o objetivo é ajudar”, aconselha.

“É importante percebermos que há pessoas mais introvertidas e com alguma vulnerabilidade psicológica que têm de ter mais cuidado e com quem tem de se ter mais cuidado”, acrescenta Ivone Patrão.

E num ambiente em que o teletrabalho parece ter vindo para ficar, o papel das empresas é também fundamental. É preciso que os recursos humanos e as chefias tenham “algum cuidado na gestão do teletrabalho”, com maior atenção à personalidade dos colaboradores.

“Fazer avaliação do impacto do teletrabalho ou do contrário (o trânsito, do tempo nos transportes e as idas ao escritório, por exemplo), na saúde mental e física dos trabalhadores”, diz Ivone Patrão, que aconselha ainda as empresas e instituições a promover reuniões ou convívios presenciais periódicos”.

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