"Não queremos continuar a pedir dinheiro". Como a Ucrânia está a revolucionar a sua indústria da Defesa

20 abr, 08:00
Canhão de 155mm ucraniano Bohdana (AP Photo/Evgeniy Maloletka)

Era o coração da produção militar da União Soviética, mas após a onda de privatizações que se seguiram à queda do gigante comunista a indústria militar ucraniana ficou reduzida a uma pequena amostra daquilo que já foi. Agora há uma luta contra o tempo para ressuscitar esse gigante adormecido

Quando os soldados russos invadiram território ucraniano em fevereiro de 2022 o pânico instalou-se. O receio de que o único protótipo de um poderoso canhão desenvolvido na Ucrânia caísse nas mãos russas levou a que os fabricantes do Bohdana ordenassem a sua destruição. Mas, graças a um político, esta arma capaz de disparar munições de calibre NATO foi salva e revelou-se crucial no combate aos russos em vários pontos da frente.

Dois anos depois, a Ucrânia está a produzir dez unidades deste veículo por mês, de acordo com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelesnky, que cita o mais recente relatório do ministério da Defesa. O líder elogia ainda os progressos que estão a ser feitos nas áreas de produção de munições e drones, que permitem combater as ofensivas russas que se fazem sentir no leste do país.

“Dizem que a morte do nosso inimigo começa connosco”, diz Oleksandr Kamyshin, ministro ucraniano das Indústrias Estratégicas, numa entrevista em Kiev ao jornal norte-americano The New York Times. O jovem ministro, que se apresenta com o corte de cabelo típico dos cossacos ucranianos, é responsável por uma das pastas mais importantes desde que a guerra começou em 2022. Com apenas 38 anos, tem a difícil missão de ressuscitar a indústria militar de um país em guerra contra o inimigo com um exército significativamente maior.

“A nossa indústria da defesa está a crescer. Era boa durante o período soviético, mas depois foi negligenciada. Agora está a crescer outra vez e tem capacidade de crescer ainda mais (…). Mas apesar do que conseguimos produzir continuamos a depender do fornecimento do Ocidente”, reconhece Kamyshin.

Entre os líderes ucranianos há um sentimento de urgência cada vez maior para aumentar a produção militar. A Rússia registou um aumento de produção “sem precedentes” para rearmar o seu exército, depois de uma vaga de fracassos iniciais no primeiro ano da invasão. Atualmente, a máquina de guerra russa é capaz de produzir dez vezes mais munições do que as que a Ucrânia tem disponíveis. De acordo com o ministério da Defesa russo, a produção industrial militar russa aumentou quatro vezes desde que começou a guerra e triplicou a produção de munições.

Ao mesmo tempo, uma luta política em Washington empata há mais de seis meses a aprovação de um novo pacote de ajuda militar norte-americano que é vital para as aspirações ucranianas - o desfecho pode chegar este fim de semana. Na Europa o cenário não é mais positivo, com os esforços de rearmamento a demorarem mais tempo do que o inicialmente previsto. Por isso, o governo ucraniano está desenvolver esforços para que a Ucrânia se torne autossuficiente em vários tipos de armamento.

“A Ucrânia já produz muitas munições, já produz munições de 155mm e já consegue ser autossuficiente nas munições de morteiro de 120 mm. Dentro de um ano, muito possivelmente vai ser capaz de produzir o armamento convencional mais comum. A Ucrânia tem-nos vindo a surpreender com uma brutal capacidade de se adaptar às realidades da guerra e produzir aquilo de que necessita”, explica à CNN Portugal o major-general Isidro de Morais Pereira.

Trabalhador ucraniano numa oficina de produção de munições e morteiros (AP Photo/Evgeniy Maloletka)

O caso dos 2S22 Bohdana é um exemplo dessa mesma capacidade de adaptação. Este veículo é, no fundo, um canhão de artilharia sob rodas, semelhante ao sistema sueco Archer e ao francês Caesar. Capaz de atingir alvos a 50 quilómetros de distância, o Bohdana foi crucial no esforço ucraniano para recuperar a Ilha da Serpente, na costa de Odessa. Em junho de 2022, militares ucranianos utilizaram este sistema para destruir as defesas aéreas inimigas que existiam no local, levando à retirada do exército russo.

Este sucesso motivou o ministério da Defesa a iniciar a produção em massa deste veículo. Para isso, foi necessário encontrar o paradeiro da equipa original que desenvolveu o Bohdana. Alguns destes engenheiros encontravam-se a servir na frente de batalha e tiveram de ser retirados para ajudar a criar as novas linhas de produção. No final de 2023, a Ucrânia produzia apenas seis unidades. Passados apenas quatro meses, quase duplicou a capacidade de produção e continua a fazer adaptações com base na opinião das tripulações no terreno.

Algumas armas são mais difíceis de produzir no próprio país. Um exemplo disso são as cruciais munições de 155 mm utilizadas pelos países da NATO. A Ucrânia converteu quase toda a sua artilharia, originalmente de calibre soviético 152 mm, para o calibre utilizado pelos aliados, de forma a garantir que consegue operar os equipamentos enviados pelo Ocidente. Mas a produção destas munições está limitada pela importação de matérias-primas e pela compra dos direitos de produção a empresas ocidentais.  

À CNN internacional, um responsável da NATO admite que a Rússia está muito à frente da Ucrânia e do Ocidente no capitulo de produção de munições. Atualmente, a Rússia produz 250 mil munições de 152 mm, cerca de três milhões por ano. Segundo a mesma fonte, Ucrânia, Europa e Estados Unidos produzem apenas 1,2 milhões por ano. “Estamos numa guerra de produção. O resultado na Ucrânia depende de como cada lado está equipado para conduzir a guerra”, argumenta.

Durante a União Soviética, o país era responsável por 17% da produção militar do país e cerca de 25% da investigação tecnológica. Quando declarou independência, em 1991, a Ucrânia tinha 1.840 empresas industriais e de investigação militar que empregavam perto de 2,7 milhões de pessoas. Mas uma parte significativa era composta por fragmentos de empresas soviéticas que não tinham utilidade só por si.

Para acordar a indústria, o governo de Zelensky fez disparar o orçamento de Defesa para os 87 mil milhões e o valor destinado a pesquisa e desenvolvimento de equipamentos militares subiu de 162 milhões de dólares para 1,3 mil milhões. O orçamento para a compra de armamento em 2023 também disparou para dez mil milhões. Estes números são elevados, particularmente quando comparados com os valores gastos no pré-guerra, mas segundo um estudo do Ukrainska Pravda as empresas ucranianas conseguem produzir 18 mil milhões de equipamento militar, mas o governo só consegue comprar 9 mil milhões.

“O nosso crescimento é bom, mas nunca será bom o suficiente. Estamos a enfrentar um financiamento escasso. Sabemos que poderíamos produzir mais do que produzimos se tivéssemos mais recursos à nossa disposição. Nunca gastámos tanto em defesa”, explica Oleksandr Kamyshin.

Algumas áreas foram privilegiadas pelos decisores políticos e militares. Nenhuma beneficiou tanto como a dos veículos aéreos não tripulados, também conhecidos como drones. O presidente Zelensky traçou como objetivo a produção de um milhão de drones, mas a Ucrânia admite mesmo duplicar esse valor até ao final do ano.

Estas aeronaves alteraram por completo a dinâmica no campo de batalha, oferecendo aos militares não só capacidade de vigilância ao longo de toda a frente, mas também um meio de ataque altamente letal. A Ucrânia tornou-se tão eficiente a fabricar estes equipamentos, com dezenas de startups privadas, que é capaz de o fazer a um preço muito mais baixo do que o Ocidente. Um exemplo disso são os 800 drones fornecidos pelo Canadá com um custo de 87 mil dólares por unidade e que o ministro garante ter, pelo menos, quatro empresas capazes de produzir produtos semelhantes ou superiores por um preço entre os 10 e os 25 mil dólares.

Soldados ucranianos da 22.ª Brigada Mecanizada preparam-se para lançar drone de médio alcance (AP Photo/Efrem Lukatsky, File)

“A capacidade de produção de drones ucraniana não tem rival. E já não são só os pequenos drones kamikaze. A Ucrânia já começa a ter drones capazes de atacar a retaguarda do inimigo a centenas de quilómetros”, destaca Isidro de Morais Pereira.

Mas a nova indústria militar ucraniana não se deixa ficar pelos céus. O seu sucesso tem chegado também às águas do Mar Negro, onde os drones aquáticos têm devastado a frota russa. Equipados com centenas de quilos de explosivos, um detonador, câmaras e um sistema de controlo remoto, estas pequenas embarcações têm um preço de 250 mil dólares por unidade.

Outros equipamentos mais complexos não vão ser produzidos no curto e no médio prazo, como é o caso dos mísseis de defesa antiaérea ou alguns veículos blindados ocidentais. Ainda assim, várias empresas industriais da área da Defesa veem na Ucrânia uma oportunidade de investimento. É o caso do gigante alemão Rheinmetal e do fabricante de drones turco Baykar, que estão a preparar a abertura de fábricas em território ucraniano.

Também o conglomerado francês e alemão KNDS anunciou uma joint venture para a produção de partes para tanques e canhões, algo fundamental para o atual esforço de guerra ucraniano. Além disso, a Ucrânia tem tentado obter junto do governo britânico os fundos para produzir o canhão ligeiro L119 de 105 mm produzido pela empresa BAE Systems.

Devido à guerra, a legislação ucraniana proíbe a exportação de armamento. No entanto, para o ministro das Indústrias Estratégicas, a indústria militar veio para ficar e pode mesmo ser a boia de salvação da Ucrânia no mundo pós-guerra. No entanto, Kamyshin afasta a ideia de que as empresas ucranianas possam ser uma ameaça às empresas europeias, defendendo que podem ter um papel complementar.

“Temos capacidades complementares que não competirão, mas que irão somar-se às da UE e da NATO. Não queremos continuar a pedir dinheiro. Somos um parceiro criativo e confiável que vocês querem ter durante tempos difíceis.”

 

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