Chasiv Yar, a nova "fortaleza ucraniana" que vai ser o epicentro da guerra

19 abr, 07:00
Vista da frente de batalha de um prédio na cidade de Chasiv Yar, nos arredores de Bakhmut (Getty Images)

Toda a frente de batalha na direção de Bakhmut depende desta pequena cidade. A sua queda pode transformar-se num prenuncio de tragédia para a Ucrânia. Para a Rússia, a incapacidade em conquistar esta pequena cidade pode, no entanto, obrigar Moscovo a desistir do Donbass

A queda de Chasiv Yar pode permitir à Rússia abrir portas para a conquista do Donbass e Vladimir Putin sabe disso. Segundo a chefia militar ucraniana, os russos preparam-se para lançar o assalto contra esta pequena cidade e contam com uma arma tão poderosa que, para lhe resistir, é preciso estar “completamente enterrado no solo”. Mesmo com a falta de munições e mísseis antiaéreos, a Ucrânia garante que não arredará pé da fortaleza que impede à Rússia a conquista da região de Donetsk.

“Adivinham-se combates muito violentos e muito sangrentos, à semelhança daquilo que se passou em Avdiivka e Bakhmut. Os russos já tentaram alguns ataques frontais e foram completamente dizimados, agora vão tentar um ataque em tenaz. No entanto, a Ucrânia vai defender com tudo porque sabe bem a importância de Chasiv Yar, a queda desta cidade pode abrir as portas para a conquista russa da região do Donbass”, explica o major-general Isidro de Morais Pereira.

Para os ucranianos, Chasiv Yar é uma fortaleza quase perfeita. Situada numa colina a cerca de dez quilómetros de Bakhmut, esta pequena cidade encontra-se numa posição elevada de terreno, que oferece várias vantagens aos seus defensores. Para os militares que ocupam esta cidade, não só é fácil observar com antecedência as movimentações inimigas como também é mais fácil disparar contra as forças que se aproximam.

A periferia da cidade é atravessada por um canal de irrigação agrícola, que oferece mais uma barreira defensiva natural aos avanços russos. Para atravessar este obstáculo é necessário passar por várias das pontes que existem. No entanto, é provável que as tropas ucranianas destruam estas estruturas assim que decidam abandonar a margem oriental do canal e passar a defender no interior da cidade. Se isso acontecer, as forças russas podem ver-se obrigadas a executar a maioria do combate pela cidade sem o apoio de blindados, o que pode tornar a conquista de Chasiv Yar um objetivo muito caro para o Kremlin.

“Quem tem terreno dominante tem uma grande vantagem. O atacante acaba sempre por estar debaixo de vigilância e com a ameaça do fogo inimigo. Além disso, quem ataca tem de o fazer a subir. Esta é uma povoação fácil de defender e as forças russas têm sofrido fortes perdas. Chasiv Yar não vai ser um passeio para os russos”, considera o major-general Agostinho Costa.

Blindado de transporte de infantaria ucraniano numa estrada em direção a Chasiv Yar (Getty Images)

Mas tudo indica que nesta pequena cidade vai encontrar-se o epicentro da ofensiva russa deste verão. De acordo com o comandante-chefe das forças armadas ucranianas, Oleksandr Syrskyi, a o alto comando do exército russo traçou o objetivo de conquistar a cidade até dia 9 de maio. A data é simbólica para o povo russo, uma vez que celebra o triunfo soviético sobre os nazis, na Segunda Guerra Mundial.

O Kremlin não confirma este prazo, mas a forte presença de drones e a intensificação dos bombardeamentos de artilharia e de aviação não o escondem: aproxima-se uma ofensiva. Pelo menos, é dessa forma que o principal general ucraniano está a interpretar os sinais no terreno, uma vez que ordenou a transferência imediata de “munições, drones e dispositivos de guerra eletrónica” para a linha da frente. Chasiv Yar, que em português significa “ravina tranquila”, está prestes a ser abalada pelos tremores da guerra.

Para a Rússia esta pequena cidade é vital para os seus objetivos. Apesar de pequena, Chasiv Yar, que tinha apenas 12 mil habitantes antes da guerra começar, serve de nó logístico para o exército ucraniano na frente de Bakhmut. É a partir desta localidade que é distribuído todo o equipamento para as unidades que se encontram nesta frente. Se a Rússia a conseguir conquistar, coloca em causa o apoio logístico de toda a região e pode permitir ao exército russo aumentar a pressão nesta área. Se isso acontecer, a Rússia fica com o caminho aberto para Kostiantynivka, Druzhkivka, Kramatorsk and Sloviansk, os últimos grandes bastiões de Donetsk.

“As forças ucranianas organizaram-se defensivamente muito bem e vão dar luta. Há trincheiras ligadas a bunkers e posições fortes. Mas não vai ser nada fácil. Como militar, vejo a possibilidade de conquista de Chasiv Yar como um perigo para toda a região de Donetsk”, alerta Isidro de Morais Pereira.

Explorar fraqueza ucraniana

Para conquistar esta cidade e tomar de uma vez por todas Donetsk, a Rússia quer explorar uma fragilidade que a Ucrânia tem sentido de forma cada vez mais intensa: a falta de mísseis de defesa antiaérea. O problema tornou-se cada vez mais grave nas últimas semanas, com o próprio presidente ucraniano a admitir que o seu exército “ficou sem mísseis”. Os resultados são visíveis, com a destruição de centrais elétricos e vários alvos militares. Em Chasiv Yar, soldados ucranianos filmaram aviões de combate russos Su-25 a sobrevoar os céus da cidade sem qualquer oposição.

Isto permite aos russos beneficiar de superioridade aérea, algo que não conseguiram ter ao longo de mais de dois anos de guerra. Para a os soldados ucranianos no terreno, isso significa que vão ter de lidar com os bombardeamentos constantes das FAB500 e FAB1500, as bombas aéreas guiadas russas que permitiram a conquista de Avdiivka. Estas munições com 500 e 1.500 quilos de explosivos têm efeitos devastadores e são capazes de destruir algumas das mais fortificadas posições defensivas.

“Uma bomba de 1.500 quilos é uma brutalidade. Há relatos de portas a abanar a mais de um quilómetro de distância. Estas bombas são lançadas a 60 a 70 quilómetros da frente e são guiadas por GPS até ao alvo. O impacto das FAB no campo de batalha é muito grande”, garante o especialista em assuntos militares Agostinho Costa.

Cidade de Chasiv Yar, na região de Donetsk, depois de um bombardeamento russo no dia 11 de abril (Getty Images)

E não há muito que a Ucrânia possa fazer para contrariar este armamento, além de se proteger no interior de bunkers. Apenas uma destas bombas é suficiente para destruir um edifício inteiro. A única solução, defendem os especialistas, passa pela utilização de aviões F-16 munidos de mísseis capazes de destruir aeronaves a longas distâncias. Outra estratégia passa pela transferência de batarias Patriot para a linha da frente, uma vez que os seus mísseis podem atingir alvos a mais de 100 quilómetros da frente de batalha.

A Alemanha, através do seu ministro da Defesa, anunciou o envio de mais uma bataria Patriot para a Ucrânia e alguns mísseis para os utilizar. Mas pode não ser suficiente para travar o poder devastador destes explosivos. Para os especialistas, a única esperança que existe no horizonte ucraniano é a aprovação do pacote de ajuda militar que se encontra pendente na Câmara Baixa do Senado norte-americano. Republicanos e democratas mantêm, há mais de seis meses, um braço de ferro acerca da aprovação dos fundos para rearmar a Ucrânia, Israel e Taiwan.

“Sem apoio americano, Chasiv Yar podia cair, mas estou em crer que os Republicanos vão aprovar o pacote de 61 mil milhões de dólares. A Ucrânia está com um problema gravíssimo. A fome de munições de artilharia acabou, mas a falta de defesas antiaéreas é um problema gravíssimo. E a Rússia está a tirar partido disso”, defende Isidro de Morais Pereira.

Soldados de elite

As unidades escolhidas para atacar Chasiv Yar indicam a determinação russa de conquistar esta cidade. Na linha da frente estão duas unidades de elite russas, a 98.ª Divisão de Guardas Paraquedistas e a 11.ª Brigada de Guardas de Assalto Aéreo. Ao longo dos últimos dois anos de guerra, as unidades de paraquedistas passaram a ser utilizadas como unidades de infantaria de elite. Com estas a serem destacadas para os locais mais complicados de assaltar, particularmente em zonas urbanizadas. Ambas as unidades começaram a guerra na frente de Kiev, mas o passado da 98.ª Divisão na Ucrânia remonta a 2014, quando vários dos seus elementos foram capturados pelas forças de Kiev entre tropas separatistas na região do Donbass.

O primeiro ataque a Chasiv Yar aconteceu no dia 4 de abril e o seu desfecho foi sangrento. Imagens partilhadas pela 67.ª Brigada ucraniana, responsável pela defesa da cidade, mostra que a Rússia sofreu perdas consideráveis de veículos e de material. Mas, de acordo com a investigação do grupo de análise militar Frontelligence Insight, apesar das perdas pesadas da Rússia, os combates expuseram algumas das potenciais vulnerabilidades ucranianas e “levantaram algumas preocupações”.

A primeira prende-se com a falta de munições de todos os tipos. Nas imagens publicadas pela 67.ª Brigada, é possível observar uma coluna de veículos blindados russos a atravessar uma estrada de terra batida em direção à região central de Chasiv Yar. Constantemente observados pelos drones de vigilância ucranianos, estes veículos foram sistematicamente destruídos por várias vagas de aeronaves não tripulados FPV, pequenos drones kamikaze. Mas este aparente sucesso, esconde a falta de munições de morteiro, de artilharia, armas antitanque e minas que existe no terreno.

“É evidente que a coluna blindada viajou com sucesso pela estrada de terra batida até à cidade sem encontrar campos minados. Isto levanta preocupações significativas, uma vez que não só os veículos blindados conseguiram aproximar-se de Chasiv Yar ao longo da estrada, como também entraram no distrito de Kanal sem encontrar minas”, destaca o grupo Frontelligence Insight.

Mas a falta de soldados treinados é cada vez mais uma realidade. As forças armadas ucranianas têm elementos de, pelo menos, seis brigadas nesta pequena parte da frente. O que, noutra situação, seria indicador de uma grande acumulação de forças, neste caso, indica precisamente o contrário. Muitas destas unidades têm falta de pessoal e precisam de elementos de outras unidades para “tapar buracos” na frente. Isto deve-se ao facto de o governo ucraniano ter sido incapaz de reformar a lei de serviço militar e passar a permitir o recrutamento de jovens com idades entre os 18 e os 27 anos.

Soldado ucraniano a preparar-se para um destacamento de quatro dias na linha da frente, em Chasiv Yar, no final de março de 2024 (Getty Images)

Até ao momento, não há qualquer indicação de que a Rússia esteja a passar pelo mesmo problema. Depois de ter mobilizado 300 mil soldados ainda em 2022, Moscovo tem conseguido manter o nível necessário de recrutamento através de um misto de práticas, como o recrutamento em prisões, tornar os salários dos militares mais atrativos e várias regalias para aqueles que lutam na Ucrânia. Mas os especialistas admitem que, devido às táticas utilizadas pelos líderes militares russos, isso não pode durar para sempre.

“A Rússia perde uma quantidade enorme de soldados. Atiram presidiários para a frente de batalha para testar posições defensivas e utilizam-nos para descobrir campos de minas. São autêntica carne para canhão. O valor da vida dos soldados russos é muito reduzido para as suas chefias militares”, frisa o major-general Isidro de Morais Pereira.

Apesar de tudo, o desfecho desta batalha permanece incerto. O sucesso defensivo da Ucrânia está dependente da aprovação do pacote de ajuda militar norte-americano e de uma nova lei de mobilização que permita à Ucrânia obter novos militares. Mas para o exército russo esta é uma aposta cara. A incapacidade de capturar esta cidade pode mesmo deitar por terra qualquer esperança de Moscovo de conquistar a província de Donetsk e a região do Donbass.

“Chasiv Yar vai cair? Veremos.  Se os ucranianos não forem apoiados pelos EUA, a situação será crítica. Chasiv Yar é a porta de acesso à conquista de todo o Donbass, uma região que o próprio Vladimir Putin estabeleceu como sendo um objetivo estratégico. Falhar a sua conquista significa uma grande derrota e demonstra que dificilmente a Rússia vai conseguir conquistar o Donbass”, destaca o especialista.

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