"Devemos-lhes isso": famílias de israelitas mortos na guerra encontram uma nova esperança com a recolha póstuma de esperma

CNN , Lianne Kolirin
3 dez 2023, 15:00
Dezenas de famílias de soldados israelitas mortos no conflito solicitaram a colheita e o congelamento do seu esperma a título póstumo. Jalaa Marey/AFP/Getty Images

Dezenas de famílias estão a fazer pedidos de colheita de esperma dos seus familiares. Os hospitais foram instruídos, durante a guerra, a aprovar os pedidos dos pais dos falecidos

Shir Daphna-Tekoah, assistente social clínica no Hospital Kaplan de Israel, conhece bem os traumas.

Mas quando foi chamada para trabalhar a 7 de outubro, o dia em que o Hamas atacou quintas, aldeias e um festival de música israelitas, a dimensão do desastre tornou-se rapidamente evidente.

"Já vi dezenas de pessoas mortas em acidentes ou tiroteios, mas esta foi a coisa mais difícil que fiz na minha vida", disse Daphna-Tekoah à CNN.

Como diretora do centro de crise de violações daquele hospital, foi chamada quando surgiram relatos de agressões sexuais. Mas, em pouco tempo, todos estavam a trabalhar para que a sala de emergência se enchesse de feridos.

"Vi o horror nos seus rostos", contou Daphna-Tekoah. "Vi nos seus olhos que tinham visto algo inacreditável."

Seguiu-se o pior. "Depois vieram os cadáveres de jovens com roupa de festa. Não tinham mais de 23, 24 anos, a idade dos meus filhos."

Coube a Daphna-Tekoah apoiar as famílias que se despediam dos seus entes queridos assassinados. "Perguntei-lhes se gostariam de agradecer ao filho ou de pedir perdão por alguma coisa", recordou.

"A mãe disse: 'Lamento imenso ter-te deixado ir à festa e não te ter protegido'."

Depois, Daphna-Tekoah fez outra pergunta. "Perguntei: 'Queres que te informe sobre a preservação de esperma?"

A assistente social hospitalar Shir Daphna-Tekoah sugeriu a ideia de colheita de esperma a famílias das vítimas dos ataques de 7 de outubro. Shir Daphna-Tekoah

"Não consigo sequer explicar o que vi", lembrou Daphna-Tekoah, que pouco sabia sobre o processo para além da necessidade de agir rapidamente.

"Antes, só havia agonia e escuridão nos olhos da mãe e, de repente, houve um lampejo de luz e esperança."

Daphna-Tekoah contactou de imediato a direção do hospital e, poucas horas depois, tinham a autorização legal necessária. Na manhã seguinte, o esperma de várias vítimas do festival Nova já tinha sido recolhido.

Agora, mais de sete semanas depois, os hospitais israelitas têm sido inundados com pedidos de congelamento criogénico do esperma das pessoas mortas no conflito, segundo os funcionários do hospital.

A recolha póstuma de esperma (PSR) estava anteriormente disponível para os parceiros - desde que outros familiares não se opusessem - mas os pais dos falecidos tinham de solicitar uma autorização legal.

O Ministério da Saúde reduziu recentemente a burocracia. Num comunicado publicado no seu site, os hospitais foram instruídos, durante a guerra, a aprovar os pedidos de PSR "dos pais do falecido, sem os encaminhar para um tribunal de família".

Os espermatozoides sobrevivem por pouco tempo após a morte, razão pela qual é possível aos médicos - geralmente um especialista em fertilidade ou urologia - recuperá-los do tecido testicular. Quaisquer espermatozoides vivos encontrados são transferidos e congelados em nitrogénio líquido.

Noga Fuchs Weizman, diretora médica do banco de esperma e da unidade de infertilidade masculina do Hospital Ichilov de Telavive, disse que tem havido muitos pedidos de famílias enlutadas.

"A procura tem sido muito elevada", contou à CNN, acrescentando que dezenas de famílias acederam ao serviço desde 7 de outubro.

De acordo com Shimi Barda, diretor do laboratório da unidade, as Forças de Defesa de Israel (IDF) oferecem a opção às famílias quando as informam da sua perda. "Sugerem-na de forma proativa", adiantou.

Os médicos Noga Fuchs Weizman (à esquerda) e Shimi Barda (à direita) estiveram envolvidos nos procedimentos no Hospital Ichilov de Telavive. Noga Fuchs Weizman/Shimi Barda

Pouco depois dos atentados de 7 de outubro, o caso da cantora israelita Shaylee Atary, cujo marido foi morto ao tentar proteger o seu bebé no kibutz Kfar Aza, fez manchetes.

De acordo com o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel, Atary "fez tudo o que estava ao seu alcance para recuperar o esperma dele", na esperança de aumentar a sua família no futuro. Não foi bem sucedida, mas a sua experiência sensibilizou a opinião pública.

A iniciativa de recuperação é supervisionada pelo Ministério da Saúde, que divide os casos entre quatro hospitais.

A deteção de espermatozoides vivos é mais provável nas primeiras 24 horas após a morte, pelo que o tempo é crucial, disse Barda.

"Limitámos o período de tempo a 72 horas; no entanto, a literatura e a nossa própria experiência sugerem que 44 a 45 horas é o máximo."

A forma como ocorre a morte também é importante.

"Depende do estado do corpo, de como foi conservado e da gravidade dos ferimentos", observou Barda.

O hospital fala diretamente com as famílias, segundo Fuchs Weizman. "Dizemos-lhes o que conseguimos congelar e falamos brevemente sobre o processo mais tarde, se decidirem utilizá-lo."

"É muito emocional, muito difícil, mas damos-lhes alguma esperança", acrescentou Barda.

Um longo processo

Irit Oren Gunders é a fundadora da Or Lamishpachot (Luz para as Famílias), uma organização sem fins lucrativos que apoia as famílias dos soldados mortos. Há muito que faz campanha para que os pais tenham acesso à PSR.

"Temos de lhes dar esperança e abrir-lhes de novo o coração e só os netos o farão. Não é que eles queiram um bebé em vez do filho - é o neto", explicou à CNN.

Irit Rosenblum, uma advogada pioneira e fundadora da New Family, que defende os direitos da família, também está a trabalhar com os pais enlutados.

A advogada Irit Rosenblum ajudou a concretizar o nascimento de mais de 100 crianças. Irit Rosenblum

Rosenblum entrou para a história do direito em 2007 com o caso de uma mulher cujo filho foi morto em Gaza. Esta cliente tornou-se a primeira progenitora em Israel e uma das primeiras no mundo a ganhar o direito de recolher o esperma do seu filho. Mas foi preciso mais de uma década para que ela se tornasse avó.

A PSR pode ser a parte mais fácil, indicou Rosenblum à CNN. "É um processo longo. Recentemente, recebemos cerca de 40 pedidos de colheita e foi fácil autorizá-los, mas o próximo passo será encontrar mulheres para utilizar o esperma."

Rosenblum disse ter sido fundamental para o nascimento de mais de 100 crianças. Há muito que defende o testamento biológico, que dá uma orientação inequívoca após a morte. Desde os ataques do Hamas, Rosenblum tornou fácil e rápido o preenchimento de um testamento biológico.

"Não sou uma pessoa religiosa, mas a sociedade israelita é muito orientada para a família e a continuidade é um imperativo", esclareceu.

"Os enlutados perderam a vontade de viver e a única forma de voltar a dar sentido às suas vidas é através da continuidade da pessoa que perderam. Não o permitir, apesar de dispormos da tecnologia, não é moral."

Yulia e Vlad Poznianski, cujo filho Baruch morreu de cancro aos 25 anos, estão entre as pessoas ajudadas por Rosenblum.

Quinze anos depois, Yulia ainda tem dificuldade em falar sobre a morte de Baruch. Em vez disso, concentra-se no futuro e na sua neta, Shira, que acabou de fazer oito anos.

"Criámos uma nova vida", defendeu Yulia, sobre a sua colaboração com Liat Malka, uma mulher solteira que teve Shira com o esperma do seu filho.

Baruch Pozniansky (à esquerda) morreu em 2008. Hoje, a sua memória vive na sua filha de 7 anos, Shira (à direita). Yulia Pozniansky/Liat Malka

"Estamos muito gratos a ela, mas ela também está grata a nós", garantiu Yulia sobre Malka, explicando que são avós muito ativos.

Yulia descreveu Shira como uma criança "brilhante", cuja semelhança com o pai é "inacreditável".

"É uma rapariga crescida e compreende. Não é a primeira e não será a última criança cujo pai não está vivo - especialmente agora", disse Yulia.

Os soldados enviados para o conflito devem ser informados das suas opções, considerou Yulia. "Têm de saber que podem deixar aos pais ou à mulher o seu desejo biológico."

Israel "está a abusar"

Gil Siegal, diretor do Centro de Direito da Saúde e Bioética do Kiryat Ono College, em Israel, e docente da Faculdade de Direito da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, disse à CNN que "não é por acaso que Israel é pioneiro na medicina reprodutiva".

"A combinação de medicina de alta tecnologia e uma forte inclinação cultural, religiosa e existencialista para a reprodução resulta no maior número de clínicas de FIV per capita e no maior número de ciclos de FIV para mulheres no mundo."

As perspectivas éticas tradicionais foram alteradas pela perda de vidas - especialmente entre os jovens - desde 7 de outubro.

"Esta é uma nova reviravolta e Israel está a ir mais longe", apontou. "Por um lado, temos a ciência e o know-how e, por outro, temos o ímpeto, que é a religião, a cultura e a história."

No entanto, há que ter em conta as questões éticas.

"Quando se enfrenta uma perda tão terrível, faz-se qualquer coisa que seja uma espécie de panaceia para o luto e a dor sem fim - mas não é assim que se faz política."

Para ele, os pais enlutados devem ter acesso ao PSR, "mas depois paramos".

Com "urgência zero", observou. "Temos tempo para nos sentarmos, debatermos e pensarmos nas implicações da orfandade planeada, motivada pelo pedido dos pais do falecido."

"Orfandade planeada no sentido em que esta criança nasceu de uma tragédia como um memorial vivo do soldado falecido", acrescentou.

Mas para Daphna-Tekoah, a resposta é clara após o ataque do Hamas.

"Se, enquanto país, encorajamos as pessoas a doar órgãos após a morte, porque não damos às pessoas o direito de doar esperma? Não estamos a viver na Idade Média e a tecnologia está aqui. É um direito humano", argumentou.

"Foi uma catástrofe e nós devemos-lhes isso."

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