"Há uma tradição de tratar bem os reféns". Porque é que os reféns do Hamas acenaram aos sequestradores?

27 nov 2023, 17:02

Médico especialista em catástrofes diz que há uma cultura no Médio Oriente que pode levar a explicar a situação

Da libertação dos reféns do Hamas ficam duas imagens: a festa de israelitas e cidadãos estrangeiros na chegada a porto seguro, mas também uma certa empatia entre as vítimas e os sequestradores.

Nelson Olim, especialista em medicina humanitária, conflito e catástrofe, está a acompanhar a atual situação que se vive no Médio Oriente e explicou à CNN Portugal que depois de 51 dias em cativeiro, os reféns libertados irão passar por um processo dividido em duas fases. "Numa primeira fase, vai ser feito um check-up, uma bateria de análises de sangue e exames médicos para garantir o bem-estar físico. E depois há a segunda fase, que é a componente emocional e o trauma associado à situação do rapto e de estarem com condições mínimas de sobrevivência", detalha Nelson Olim, frisando que "será um processo que vai levar algum tempo".

Nas imagens com as quais temos sido confrontados, é possível reparar nas expressões de calma e serenidade por parte dos reféns libertados. Viveram em condições inimagináveis para quem assiste do conforto das suas casas e o som do disparar das armas tomou conta do seu dia a dia. Ainda assim, na hora da libertação, acenam aos seus sequestradores e às pessoas que estão à espera, não apresentando qualquer sinal visível de trauma. Que o ser humano tem uma enorme capacidade de adaptação, já todos nós sabemos, mas como se explica isto?

"No Médio Oriente, em geral, há uma certa tradição de tratar bem os reféns", revela o especialista, acrescentando que os sequestradores "dividem a pouca comida que há disponível" com as suas vítimas. "Isto é algo que está enraizado de uma forma cultural no Médio Oriente e, portanto, espera-se que elas tenham sido relativamente bem tratadas, atendendo às condições", frisa Nelson Olim.

Atendendo às imagens que todos os dias vemos passar nos ecrãs, talvez estas sejam as informações de que estávamos a precisar para aliviar os corações apertados, mas a questão não é linear nem simples, mas antes problemática.

"As imagens que se vêem quase que esboçam aquilo que, na literatura clínica, é a ideia de que os reféns se tornam próximos dos seus raptores, descrito, muitas vezes, como o síndrome de Estocolmo", afirma Nelson Olim. A síndrome de Estocolmo é caracterizada por ser o estado psicológico de intimidação, violência ou abuso em que a vítima é submetida pelo seu agressor e esta, à primeira vista, será a explicação perfeita para justificar as ligações visivelmente criadas entre os sequestradores e os seus reféns. "Esta ligação de estar a viver com alguém durante bastante tempo deu aos raptores a possibilidade de se aproximarem das vítimas e de explicarem as suas razões e, eventualmente, até obterem a simpatia delas", explica o médico.

Elma Avraham, refém israelita de 84 anos sequestrada pelo Hamas a 7 de outubro, foi libertada no domingo e hospitalizada em estado crítico, informou Shlomi Codish, diretor do hospital Soroka, no sul de Israel. Tudo indica que o seu estado é revelador da falta de acesso aos medicamentos necessários. "Isto que nós vemos num refém é exatamente aquilo que está a acontecer em Gaza, nos milhares de doentes diabéticos, nos milhares de doentes com doenças cardiovasculares, com doenças respiratórias crónicas, e que há mais de um mês e pouco que não fazem medicação, porque não entra medicação no território", refere Nelson Olim.

Em geral, todos os reféns libertados apresentaram perda de peso, vítimas da alimentação à qual foram expostos, em que arroz era a ementa de todos os dias. "Há um risco real de fome em Gaza", alerta o especialista. Os 500 camiões de ajuda humanitária deixaram de entrar na região, colocando em risco dois milhões de pessoas. As barras energéticas e algumas soluções de hidratação oral são das poucas coisas que chegam à região porque "há bastante tempo que deixou de entrar comida", diz Nelson Olim. E a situação piora porque não há produção em Gaza, "nem sequer farinha para o pão".

O cessar-fogo dura há quatro dias e já permitiu a libertação de 50 dos cerca de 240 reféns raptados pelo Hamas, nomeadamente mulheres e crianças, em troca da libertação de 150 palestinianos detidos em prisões israelitas, entre adolescentes e mulheres. Entretanto o Catar e o Hamas anunciaram a extensão do acordo atualmente em vigor por mais dois dias.

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