Como o pequeno país árabe do Catar se tornou crucial nas negociações com o Hamas

CNN , Nadeen Ebrahim
1 nov 2023, 17:00
O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e o emir do Catar, Tamim bin Hamad Al Thani, numa reunião em Lusail, Catar, a 13 de outubro. Jacquelyn Martin/Reuters

A mediação é, desde há muito, uma das "competências mais comercializáveis" do Catar, segundo Joost R. Hiltermann, diretor do programa para o Médio Oriente e Norte de África do International Crisis Group, referindo-se ao longo historial do Estado do Golfo em matéria de negociações entre atores internacionais em desacordo uns com os outros

O pequeno país do Golfo Pérsico, o Catar, está mais uma vez no centro da diplomacia mundial, desta vez pelos seus esforços para mediar acordos para libertar reféns feitos pelo Hamas durante os ataques de 7 de outubro em Israel, bem como para retirar cidadãos estrangeiros de Gaza.

Nesta quarta-feira, o Catar mediou um acordo entre Israel, o Hamas e o Egito, em coordenação com os Estados Unidos, para libertar cidadãos estrangeiros e civis palestinianos gravemente feridos de Gaza para o Egito, segundo fontes familiarizadas com as conversações. Quaisquer negociações sobre reféns não fazem parte deste acordo, acrescentou a fonte.

Pelo menos 110 titulares de passaportes estrangeiros deixaram Gaza, segundo funcionários do lado palestiniano do posto fronteiriço de Rafah. O Hospital Al-Arish, no Egito, também começou a receber palestinianos feridos que chegaram de Gaza, de acordo com a televisão egipcía Al-Qahera.

O Catar encontra-se numa posição diplomática delicada e, segundo os especialistas, até agora tem agido em seu benefício, tornando-se um aliado indispensável para Washington. Mas há quem diga que a relação do Catar com o Hamas pode tornar-se um risco.

"A relação do Catar com o Hamas tem sido uma componente chave da estratégia de mediação", disse Andreas Krieg, professor associado do King's College de Londres, Reino Unido, que se dedica aos Estados do Golfo. "É um lugar onde o Catar tem o monopólio dessa relação, tem o monopólio desse conflito, porque pode falar com ambos os lados de uma forma que nenhum outro ator no mundo pode."

A monarquia rica em gás tem mantido uma relação com o Hamas, ao mesmo tempo que é um dos aliados mais próximos dos EUA na região. Entretanto, tem também mantido contactos de bastidores com Israel. David Barnea, chefe dos serviços secretos israelitas Mossad, esteve no Catar no fim de semana para discutir os esforços para libertar os reféns, disseram três fontes familiarizadas com as conversações à CNN.

Por enquanto, a relação entre o Hamas e o Catar parece estar a dar frutos. Para além dos civis palestinianos e dos estrangeiros autorizados a sair de Gaza, quatro reféns detidos pelo Hamas - dois israelitas e dois americano-israelitas - foram também libertados através da mediação do Catar e do Egito.

Israel reconheceu os esforços do Catar, tendo o Conselheiro de Segurança Nacional, Tzachi Hanegbi, afirmado que o Estado do Golfo se tornou "uma parte essencial e um interveniente na facilitação de soluções humanitárias".

"Os esforços diplomáticos do Catar são cruciais neste momento", escreveu Hanegbi no X, antigo Twitter.

Qual é a natureza da relação do Catar com o Hamas?

No rescaldo das revoltas da Primavera Árabe de 2011, o Catar desentendeu-se com alguns dos seus vizinhos árabes depois de ter apoiado os manifestantes que procuravam derrubar os regimes em várias nações árabes.

Os laços deterioraram-se ainda mais quando a Arábia Saudita, o Bahrein, os Emirados Árabes Unidos e o Egito cortaram as relações diplomáticas com o Catar em meados de 2017, acusando o país de apoiar o terrorismo, o que o Catar negou repetidamente. Foram necessários anos para que os países restabelecessem as suas relações.

Em 2012, o Catar permitiu que o Hamas, apoiado pelo Irão, estabelecesse um gabinete político em Doha, que continua em funcionamento.

Esta relação fez do Catar um importante mediador com o Hamas durante os seus conflitos com Israel.

O Catar também paga os salários do setor público em Gaza, parte de um subsídio de 30 milhões de dólares (mais de 28 milhões de euros) por mês para as famílias e combustível para a eletricidade, segundo a Reuters.

O Catar tem mantido relações estreitas com as nações ocidentais, tornando-se um fornecedor de energia cada vez mais importante, sendo um dos maiores produtores de gás do mundo e um importante comprador de armas dos EUA. Há décadas que alberga uma gigantesca base aérea norte-americana e foi declarado um dos principais aliados não pertencentes à NATO pela administração Biden no ano passado.

Mas Doha foi também uma das primeiras nações árabes do Golfo a estabelecer relações diplomáticas com Israel, em 1996, quebrando um tabu de longa data na região (cortou os laços depois de Israel ter invadido Gaza em 2009). A Al Jazeera foi a primeira emissora noticiosa pan-árabe a assinalar Israel num mapa e a convidar os seus responsáveis para entrevistas televisivas.

Qual é a estratégia do Catar no papel de mediador?

O Catar está a tentar "criar um espaço para a diplomacia", disse Krieg, acrescentando que um dos objetivos era atrasar uma ofensiva israelita em Gaza. Israel, no entanto, deu início à sua operação terrestre na sexta-feira passada, o que, segundo responsáveis norte-americanos disseram à CNN, complicou os esforços para libertar os mais de 200 reféns que se acredita estarem na posse do Hamas.

No sábado, Majed Al-Ansari, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Catar, disse à CNN que as negociações sobre os reféns estão a tornar-se mais difíceis, mas continuam, apesar da escalada no terreno.

A mediação para a libertação dos reféns raptados pelo Hamas é uma via útil para a diplomacia do Catar, acrescentou Krieg, uma vez que alguns dos reféns têm nacionalidades europeias e americanas, o que dá a vários países um interesse em apoiar os esforços de Doha.

A mediação é, desde há muito, uma das "competências mais comercializáveis" do Catar, observou Joost R. Hiltermann, diretor do programa para o Médio Oriente e Norte de África do International Crisis Group, referindo-se ao longo historial do Estado do Golfo em matéria de negociações entre atores internacionais em desacordo uns com os outros.

Em setembro, Doha mediou um acordo histórico entre o Irão e os EUA, que permitiu a libertação de cinco americanos detidos pelo Irão. A libertação dos prisioneiros fazia parte de um acordo mais vasto que incluía o descongelamento de 6 mil milhões de dólares de fundos iranianos por parte dos EUA.

O Catar também desempenhou um papel de mediador no processo nuclear do Irão, facilitando as conversações indiretas entre Teerão e Washington no final de 2022.

Num dos seus esforços de mediação mais notáveis, em 2021, o Catar provou ser crucial para a evacuação à última hora do Afeganistão das tropas e funcionários dos Estados Unidos, facilitando não apenas a viagem segura dos americanos no país, mas também agiu como uma potência protetora no novo governo talibã, com o qual o Catar mantém laços diplomáticos.

O Hamas tornou-se uma responsabilidade para o Catar depois de 7 de outubro?

Doha tem sido alvo de críticas por parte de Israel e de políticos ocidentais devido aos seus laços com o Hamas.

Apesar dos seus esforços de mediação, o Ministro dos Negócios Estrangeiros israelita, Eli Cohen, acusou na semana passada o Catar de financiar o Hamas e de abrigar os seus líderes.

"O Catar, que financia e abriga os líderes do Hamas, poderia influenciar e permitir a libertação imediata e incondicional de todos os reféns detidos pelos terroristas. Vós, membros da comunidade internacional, deveríeis exigir que o Catar fizesse exatamente isso", afirmou Cohen numa reunião de alto nível da ONU.

Em resposta, o Catar afirmou estar "surpreendido e consternado" com os comentários do ministro israelita, especialmente "numa altura em que o Catar procura assegurar a libertação dos reféns e o desagravamento do conflito".

O Catar advertiu que "estas declarações provocatórias" poderiam minar os esforços de mediação e até "pôr em perigo vidas".

Krieg explicou que muitos catarianos têm, em privado, as suas próprias reservas em relação ao Hamas, e que a relação do Catar com o Hamas provavelmente "precisa de uma pequena chamada à realidade".

O Washington Post noticiou na última quinta-feira que os EUA e o Catar "concordaram em rever" a associação de Doha com o Hamas após a resolução da crise dos reféns, citando quatro diplomatas familiarizados com as discussões.

O acordo foi alcançado durante uma recente reunião em Doha entre o secretário de Estado norte-americano Antony Blinken e o emir do Catar, disse o Washington Post, acrescentando que ainda não está decidido se essa reavaliação "implicará a saída dos líderes do Hamas do Catar".

Krieg disse que é improvável que o Catar expulse o Hamas, mas é provável que se dissocie do grupo, como fez com os talibãs, que também têm um gabinete na capital do Catar, Doha.

"O Catar está a desempenhar um papel exemplar" nos seus esforços de mediação, defendeu Hiltermann. "Mas há um bloco político nos Estados Unidos que não está satisfeito com a proximidade do Catar com o Hamas."

Dois membros republicanos do Congresso apelaram ao Catar para "extraditar os líderes do Hamas de Doha".

Hiltermann afirmou que, apesar da pressão exercida sobre o Catar para expulsar o Hamas, abandonar o grupo seria "uma jogada autodestrutiva" para o Catar e poderia empurrar o Hamas ainda mais para os braços do Irão.

"Perderá esse contacto", antecipou. "E esses contactos podem ser úteis no futuro."

Israel afirmou, no entanto, que pretende destruir o Hamas de uma vez por todas para que não volte a ser uma ameaça, o que poderá diminuir a utilidade do Catar como mediador.

*Becky Anderson em Doha, Ibrahim Dahman em Gaza, Hamdi Alkhshali em Atlanta e Aimee Look em Abu Dhabi contribuíram para este artigo

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