Legítima defesa, força excessiva e vários problemas jurídicos: o Tribunal Penal Internacional pode acusar Israel ou o Hamas de crimes de guerra?

30 out 2023, 15:51
Palestinianos deixam as casas na cidade de Gaza após bombardeamentos israelitas (Foto: Abed Khaled/AP)

Procurador do TPI tentou entrar em Gaza mas foi obrigado a ficar em Rafah, no Egito. Karim Khan garantiu que o TPI fará valer o direito internacional e os direitos dos mais vulneráveis e olhará com imparcialidade para o conflito entre Hamas e Israel. Mas a intervenção israelita, que os especialistas consideram legítima, tornou-se problemática pela violência e pelo bloqueio da assistência humanitária

Karim Khan, o britânico que é procurador principal do Tribunal Penal Internacional (TPI), esteve no passado fim de semana no posto fronteiriço de Rafah, entre Gaza e o Egito. "Não pudemos ir mais perto", lamentou, num discurso divulgado em vídeo nas redes sociais. Garantindo que o Tribunal Penal Internacional está a olhar "de forma independente para os acontecimentos em Israel e as alegações de que nacionais palestinianos também cometeram crimes", Khan assinalou que o momento é de "objetividade e reflexão silenciosa", mas também de fazer valer as instituições internacionais fundadas "nos escombros" dos horrores vividos na Segunda Guerra Mundial, protegendo os civis.

"Precisamos de assegurar que a lei está nas linhas da frente", disse. Antes, assumira que o Tribunal Penal Internacional tem investigações a decorrer aos crimes alegadamente cometidos em Israel e também em Gaza e na Cisjordânia - o TPI abriu em 2021 uma investigação à ofensiva israelita na Faixa de Gaza ocorrida em 2014 - e que as provas serão analisadas de forma imparcial, tanto as que inculpam como as que exoneram. 

A visita de Karim Khan à passagem de Rafah, que liga a Península do Sinai à Faixa de Gaza - e é a única via de acesso ao território não controlada por Israel, por onde têm entrado camiões que transportam ajuda humanitária para Gaza - traz, naturalmente, a mensagem de que o Tribunal Penal Internacional não deixará de tirar consequências do que está a ocorrer. 

"Faz sentido a visita do procurador a todos os locais e zonas que atravessam conflitos bélicos e onde há alegações de eventuais violações que possam constituir-se sob a alçada dos crimes tutelados pelo TPI", diz à CNN Portugal Duarte Nuno Vieira, antigo presidente do Instituto de Medicina Legal e atual presidente do Conselho Científico Consultivo do procurador principal do Tribunal Penal Internacional.

O organismo a que preside será chamado - ainda não foi - se houver necessidade de análise forense a provas que sejam entretanto reunidas no decorrer do conflito entre Hamas e Israel, reacendido com o ataque de 7 de outubro. "Às vezes, as provas podem ser tão evidentes que nem precisam de opiniões", atalha. Questionado sobre os crimes que possam estar agora sob investigação, nomeadamente se Israel pode ser acusado pelo TPI de crimes de guerra na Faixa de Gaza, prefere não comentar: "Estamos perante interpretações jurídicas", refere. "Pronunciar-me-ei sobre eventuais evidências forenses médicas que possam corroborar uma ou outra perspetiva", explica. "O problema jurídico seguramente vai arrastar-se e penso que os próprios juristas não chegarão a consenso", resume. 

A lógica da "ação-reação"

Estará Israel, ao forçar a evacuação de um território e ao bloquear ajuda humanitária, a cometer crimes de guerra na incursão pela Faixa de Gaza, que está a avançar "gradualmente" e de acordo com o plano, conforme anunciou esta segunda-feira o porta-voz das forças armadas israelitas? O jurista Paulo Saragoça da Matta admite que essa é, neste momento, "a pergunta do milhão de dólares".

"Não se pode deixar de ver a ação israelita na lógica da ação-reação. Admito que o procurador do TPI esteja a fazer investigação porque é seu dever investigar todos os comportamentos que ali estão envolvidos, não deve selecionar e procurar apenas os do Hamas ou de Israel", acrescenta. "Mas penso que o que deverá acontecer, se alguma vez houver um processo em que se aprecie a responsabilidade criminal de Israel, é que os israelitas usem a lógica de que estavam em legítima defesa, não só perante o ocorrido mas perante o perigo iminente, havendo a probabilidade de continuar a existir ataques do Hamas. Estando eu a reagir a um comportamento anterior, vai diminuir a ilicitude, e até poderia diminuir a ilicitude total - o que não me parece - do comportamento de Israel, face a um ataque prévio", esclarece.

Mas há uma nuance que não pode ser ignorada: a legítima defesa, lembra Saragoça da Matta, implica que o uso de meios e de força não sejam excessivos "em relação ao fim que quero atingir", razão pela qual uma eventual estratégia israelita, nesse sentido, poderia não ter o efeito pretendido junto das instâncias internacionais - já esta segunda-feira circularam vídeos e testemunhos que contavam que os tanques israelitas, já nas imediações da cidade de Gaza, disparavam contra todos os veículos que se aproximassem a poucos metros de distância. 

Por outro lado, acrescenta o jurista, há ainda que contar com os eventuais problemas inerentes à não submissão de um Estado que não está vinculado pelo estatuto do TPI, como é o caso de Israel. "Ainda assim, vimos que não foi obstáculo no caso da Rússia versus Ucrânia, em que nenhum dos Estados está vinculado pelo Estatuto de Roma e, mesmo assim, o tribunal tem feito o seu trabalho e os procuradores deslocaram-se à Ucrânia para investigar", observa. 

Este conflito traz ainda outro aspeto potencialmente problemático, uma vez que não se trata de um choque bélico dito tradicional, de Estado contra Estado, mas de Israel contra uma organização classificada como terrorista - e o crime de terrorismo está expressamente excluído da qualificação como crime internacional, logo, fora da alçada do TPI. "Se isto for perspetivado de maneira totalmente diferente, o Hamas não pode ser sujeito nem teria nada que ver com o TPI, porque não está submetido a essa jurisdição", diz o jurista. "Seria uma situação de total injustiça para Israel porque não existe um outro Estado para responsabilizar e, como o crime de terrorismo não está aqui previsto, o Hamas ficava impune. Tem de se encontrar uma via média", admite Saragoça da Matta. 

E que via média seria essa? "Assimilar o funcionamento do Hamas, a posição e a força bélica do Hamas, a um Estado. Por essa via média estou a suavizar os requisitos para a existência de um Estado", admite o jurista. "A Palestina, enquanto Estado, vinculou-se ao Estatuto de Roma. Seria considerar o Hamas um braço armado não oficial do Estado palestiniano e aí era direta a vinculação, sem a criação de qualquer ficção", explica Saragoça da Matta. "Há um Estado e o que está a acontecer é que esse Estado está a utilizar um braço armado para fazer uma guerra que oficialmente não faz. Mais ou menos como a Rússia tem feito com a utilização de mercenários", exemplifica. "As responsabilidades são sempre imputadas à Rússia. Vamos imaginar que o Hamas é um Estado: justificaria sempre o conflito com anos de perseguição, a ocupação parcial feita pelos israelitas de uma série de territórios que seriam supostamente palestinianos", conclui Paulo Saragoça da Matta.

Já Israel, por outro lado, admite o jurista, poderá estar a incorrer em crimes contra a humanidade ou crimes de guerra neste conflito. "Se me fixar na questão do bloqueio da passagem da ajuda humanitária, diria que será mais fácil pensar num crime contra a humanidade ou num crime de guerra. Não quero sequer pôr aqui a possibilidade de um crime de agressão, porque é discutível do ponto de vista teórico", declara. "Mas diria que, numa guerra, é quase impossível não atribuirmos responsabilidades aos dois lados a partir de certo momento." 

Resposta "problemática" dos israelitas

Francisco Pereira Coutinho, especialista em Direito Internacional, diz que Israel tem legitimidade para intervir militarmente em Gaza e que, enquanto potência ocupante, tem obrigações para com a ocupação. "Tem o direito de se defender, porque há uma ameaça muito séria para o seu próprio território, que é o Hamas, e isso ficou claro a 7 de outubro, com um conjunto de ataques que configuram crimes internacionais e que o TPI vai investigar, não há dúvida de que há ataque indiscriminado a civis e a reféns", explica Pereira Coutinho. "Mas a resposta de Israel é problemática à luz do Direito Internacional Humanitário, é possível que tenham sido cometidos crimes na resposta", assinala. 

Para o especialista em Direito Internacional, o TPI vai investigar três aspetos na ação israelita: o bloqueio a Gaza, porque Israel tem obrigação de deixar passar bens essenciais para não violar o Direito Internacional Humanitário; os bombardeamentos, cuja intensidade poderá ter violado o princípio da proporcionalidade, resultando em crimes de guerra; e a ordem de evacuação do norte da Faixa de Gaza, que "é legítima, mas Israel tem obrigações de dar condições de acomodação", diz Pereira Coutinho. "Tudo isso será investigado", acrescenta, lembrando que o TPI tem em curso uma investigação desde 2021 à intervenção israelita de 2014 e 2015 na Faixa de Gaza. "Houve uma discussão sobre se o tribunal seria competente para investigar e decidiu-se que era". 

Sobre a eventual atribuição de responsabilidades, caso o TPI acuse responsáveis militares ou governantes israelitas de crimes de guerra, Pereira Coutinho diz que a discussão seria a mesma que houve sobre a Rússia e a Ucrânia. "A Ucrânia aceitou a jurisdição do TPI e o tribunal emitiu mandados de detenção para Putin e para a comissária dos direitos das crianças", lembra. Por Israel não ser signatário do Estatuto de Roma, que determinou a criação do TPI, "não significa que não caia no âmbito de jurisdição", esclarece.

"O que está a aqui em causa é uma intervenção militar, que é legítima, mas tem de ser feita à luz das regras dos conflitos armados. Se Israel está a cumprir? Parece-me que não e, desse incumprimento, pode resultar a conclusão de que se estão a cometer crimes de guerra e é isso que o TPI vai investigar", diz Pereira Coutinho, lembrando que na Palestina, por se tratar de territórios ocupados, a jurisdição do TPI é complementar e necessária: "Neste caso, é necessário julgar e não há tribunais. Imaginemos que, por absurdo, seria possível julgar um responsável israelita. Não podia ser na Palestina", explica o especialista. 

Recorde-se que o Estatuto de Roma prevê que o TPI tem competência para julgar quatro crimes: crime de genocídio, crimes contra a Humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. O sistema é dual, ou seja, de concorrência, entre as jurisdições nacionais dos Estados, que são soberanas, e a jurisdição do TPI, lembra ainda Saragoça da Matta. "Qualquer Estado poderá dar início a um processo de averiguações para haver um futuro julgamento pela prática de crimes internacionais", explica o jurista, admitindo que, neste caso, nenhum dos Estados vizinhos de Israel, "por alinhamento macropolítico", seria imparcial numa decisão.

"Teria de ser um Estado mais distante ou o próprio TPI a avançar", refere. E como se procederia, a haver culpados? "O procurador do TPI concluiria a investigação com a prelação de uma acusação e seriam enviados mandados de captura internacionais." Os acusados são pessoas em nome individual - não os Estados, mas os mandantes e executores dos atos considerados criminosos - e  estes seriam detidos por um Estado vinculado ao TPI. "Claro que, depois, essas pessoas deixam de circular pelos Estados e pode demorar muito tempo até que sejam detidas, por isso as infrações internacionais não prescrevem. "Nunca será algo que aconteça com brevidade", admite Saragoça da Matta.

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