Como e quem financia o Hamas? Há criptomoedas e donativos. Mas Irão e Catar (com a ajuda de Israel) são os principais financiadores

21 out 2023, 08:00
Hamas (Getty)

Ajuda vai desde a entrega de dinheiro vivo aos funcionários públicos de Gaza ao treino e instrução em táticas militares

O ataque do dia 7 de outubro a Israel, bem como o conflito desencadeado entre as Forças de Defesa de Israel (IDF) e o Hamas, renovaram o interesse público sobre o financiamento do partido que controla a Faixa de Gaza desde 2007 e que é classificado como organização terrorista pela União Europeia e pelos Estados Unidos.

Um dos maiores aliados do Hamas é o Irão, como de resto foi demonstrado pela retórica das lideranças iranianas após o atentado terrorista. No seu primeiro discurso após o dia 7 de outubro, o ayatollah Ali Khamenei, líder supremo do Irão, elogiou o ataque e disse que o mesmo “destruiu algumas estruturas críticas [em Israel] que não serão reparadas muito facilmente”.

"Beijamos as mãos daqueles que planearam o ataque ao regime sionista", disse Khamenei, citado pela Reuters. "O Irão está orgulhoso da Palestina e apoia os palestinianos", prosseguiu, dizendo que os ataques israelitas a Gaza iriam espoletar uma “muito mais pesada corrente de raiva” no mundo muçulmano.

O apoio do Irão vai muito para além da retórica. De acordo com um relatório de 2021 do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, Teerão financia os grupos terroristas palestinianos, como o Hamas e a Jihad Islâmica, em quase 100 milhões de euros por ano.

À Reuters, Matthew Levitt, antigo funcionário governamental americano especializado em contraterrorismo, o Estado teocrático é responsável por financiar uma boa parte do orçamento de mais de 280 milhões de euros anuais do grupo através de empresas de fachada e do envio de metais preciosos

A ajuda não se faz só de dinheiro: o Irão também fornece armamento diretamente ao Hamas, segundo antigos e atuais funcionários dos serviços de informação dos Estados Unidos e outros países do Médio Oriente, citados pelo The Washington Post. Essa alegação é partilhada pelo governo dos Estados Unidos.

"O que posso dizer sem qualquer dúvida é que o Irão é largamente cúmplice destes ataques. O Irão tem sido o principal apoiante do Hamas durante décadas. Forneceu-lhes armas. (…) Tem-lhes dado apoio financeiro. Por isso, em termos de cumplicidade geral, somos muito claros quanto ao papel do Irão", disse Jonathan Finer, vice-conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, à CBS News.

Ao longo das últimas décadas, o regime de Teerão procurou igualmente treinar combatentes e dotar o Hamas de autonomia suficiente para poder fabricar rockets e drones no território da Faixa de Gaza, alegaram as mesmas fontes supracitadas ao The Washington Post, que confirmam que o Irão providenciou “assistência técnica” aos extremistas na construção destes aparelhos.

Esta é uma forma, diz ao jornal Michael Eisenstadt, de evitar outros constrangimentos. "É melhor dar aos combatentes do Hamas a capacidade de produzirem eles próprios este material do que ter de se preocupar com cadeias logísticas que podem ser intercetadas e cortadas", afirmou o diretor do Programa de Estudos Militares e de Segurança do Washington Institute.

Uma ajuda fundamental dada pelo Irão é o treino de pessoal, principalmente em táticas militares. Os combatentes formados passam, posteriormente, o conhecimento a outros militantes do Hamas já em território palestiniano, garante o especialista Michael Knights ao jornal norte-americano.

Catar

Do mesmo modo, o Catar é igualmente o grande parceiro do Hamas. De acordo a Deutsche Welle, o emirado transferiu cerca de 1,5 mil milhões de euros para a organização até 2021. A ajuda, escreve a Reuters, chegou a superar os 28 milhões de euros mensais para apoiar não só o funcionamento da única central elétrica da região, como também para pagar os salários dos funcionários públicos e distribuir apoios financeiros às famílias mais carenciadas de Gaza.

"O Catar fornece 100 dólares às famílias palestinianas mais pobres e prolonga o período de eletricidade durante um dia em Gaza" para "manter a estabilidade e a qualidade de vida das famílias palestinianas”, disse um representante do governo de Doha à agência.

Ao canal France24, Didier Billion, vice-diretor do Instituto Francês para o Assuntos Internacionais e Estratégicos, afirma, no entanto, que os funcionários públicos são membros do Hamas.

“O dinheiro de Doha equivale, portanto, a um apoio direto a esta organização que governa o exclave palestiniano com mão de ferro há muitos anos", alega Billion.

Uma fonte anónima afirma à Reuters, porém, que, ao contrário da ajuda iraniana, o apoio catari é fornecido em coordenação com Israel.

“Os fundos são transferidos via eletrónica do Catar para Israel. Depois, oficiais israelitas e funcionários das Nações Unidas transportam o dinheiro em mão através da fronteira para Gaza. O dinheiro é distribuído diretamente às famílias necessitadas e aos funcionários públicos em Gaza, e cada família ou indivíduo tem de assinar junto ao seu nome que recebeu o dinheiro. Uma cópia dessa folha vai para Israel, outra para a ONU e outra para o Catar”, escreve a agência.

A alegação é corroborada pelo jornal The Times of Israel, que alega que o governo de Benjamin Netanyahu “permitiu que malas com milhões de euros em dinheiro do Catar entrassem em Gaza através dos seus postos de fronteira desde 2018, a fim de manter o frágil cessar-fogo com os dirigentes do Hamas na Faixa de Gaza”.

A proximidade entre o Catar e a cúpula do Hamas é também evidenciada pelo facto de um dos líderes do partido, Ismail Haniyeh, viver em Doha, juntamente com outros altos representantes do grupo extremista.

Criptomoedas

O advento das criptomoedas trouxe um novo mundo de possibilidades de financiamento ao Hamas. Excluído do sistema bancário internacional por ser designada grupo terrorista, o movimento islâmico adotou este novo meio de angariação de fundos.

"O Hamas tem sido um dos utilizadores mais bem-sucedidos das criptomoedas para o financiamento do terrorismo", disse à Reuters Tom Robinson, cofundador da empresa Elliptic, especializada na tecnologia blockchain.

Segundo a Elliptic, a Jihad Islâmica, movimento que se juntou ao Hamas no ataque de 7 de outubro, angariou quase 88 milhões de euros em criptomoedas. Por sua vez, o Hamas recebeu cerca de 40 milhões de euros através deste mecanismo só entre agosto de 2021 e junho deste ano, de acordo com dados da empresa de análise de criptomoedas BitOk, sediada em Telavive, citados pela Deutsche Welle.

A revista alemã refere que, em 2019, as brigadas Al-Qassam, braço armado do Hamas, publicaram no seu canal do Telegram um endereço de uma carteira de criptomoedas com a mensagem "a realidade da jihad é o gasto de esforço e energia, e o dinheiro é a espinha dorsal da guerra".

No entanto, nos últimos meses, tanto os governos como as corretoras têm apertado o cerco a esta fonte de financiamento do Hamas, que teve mesmo de suspender a angariação de fundos via bitcoin no início deste ano.

Esta terça-feira, o Financial Times noticiou que, desde o dia do ataque terrorista, as autoridades israelitas ordenaram o encerramento e o confisco de mais de 100 contas na Binance, a maior corretora de criptoativos do mundo, por alegadas ligações ao Hamas.

A informação foi confirmada pela Binance à publicação, sem adiantar mais detalhes. Um funcionário da empresa, sob anonimato, revelou, no entanto, que foram pedidas informações sobre centenas de contas na corretora.

“A escala agora é muito maior [para a Binance] do que era antes de 7 de outubro. Todas as vezes que o Hamas publica um endereço para doações, a empresa tem de investigar e tentar encontrar todos os clientes da Binance que foram expostos a esse endereço", disse o funcionário.

Esta não é a primeira vez que a Binance é interpelada por um governo sobre este tema. Em 2019, a Comissão de Negociação de Contratos Futuros de Commodities (CFTC) dos Estados Unidos, país onde não pode operar legalmente, instaurou um processo contra a empresa por ter recebido e ignorado informações sobre transações que envolvem o Hamas.

O Financial Times, citando o processo, afirma que um funcionário da Binance disse que os terroristas costumam enviar “pequenas quantias” pois “quantidades maiores constituem lavagem de dinheiro”, enquanto outro empregado brincou ao dizer que “nem dá para comprar uma AK-47 com 600 ‘paus’”.

Caridade

Para além dos métodos anteriormente referidos, e da cobrança de taxas e impostos na Faixa de Gaza, são várias as instituições de caridade que já financiaram as atividades do Hamas.

Em 2011, o Fundo Internacional de Auxílio aos Aflitos e Carenciados do Canadá (IRFAN Canada, no acrónimo em inglês) viu o seu estatuto de instituição de caridade revogado pelo governo canadiano por ter enviado, entre 2005 e 2009, mais de dez milhões de euros em ajuda a organizações ligadas ao Hamas. Em 2014, a IRFAN foi mesmo designada como organização terrorista pelo Canadá.

Em 2010, também o governo alemão decidiu banir e confiscar os bens de uma ONG, a sucursal da Organização Internacional de Ajuda Humanitária (IHH) no país, decisão confirmada pelo Tribunal Federal da Alemanha em 2012.

A IHH, fundada originalmente na Turquia, decidiu processar a Alemanha no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por violação do artigo 11.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que diz respeito à liberdade de reunião e de associação. O veredito saiu no dia 10 de outubro, apenas três dias após o ataque do Hamas a Israel, e deu razão ao Estado alemão.

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