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O governo tem medo do Diabo – e faz bem

26 mar 2023, 12:47

As medidas de apoio extraordinárias apresentadas esta sexta-feira mereceram uma resposta unânime da oposição: não chegam. Olhando para a execução orçamental publicada pelo Instituto Nacional de Estatística no mesmo dia, compreende-se a reação. O governo teve um défice brutalmente abaixo do anunciado ao parlamento e aos parceiros sociais em 2022 – 3600 milhões abaixo, mais concretamente – e as medidas de apoio de sexta-feira representam uma percentagem mísera desse excedente.

Há muita folga e pouca margem é a fórmula mais simples para entender o paradoxo. O Partido Socialista, no poder há sete anos em nome do combate à austeridade, quase teve superávite no ano da maior perda de poder de compra desde a troika. O Estado ganhou como nunca havia ganhado; o cidadão perdeu como há muito não perdia. E se esse "brilharete" tem um custo político – bem como a capacidade para pagar o seu preço – é importante perceber a forma como António Costa está a gerir essa capacidade.

O seu governo tem condições francamente favoráveis diante de uma conjuntura adversa – crescimento revisto em alta pelo Banco de Portugal, recessão evitada na zona euro, maioria absoluta na Assembleia –, mas está a ser exemplarmente conservador na gestão dessas condições.

A questão é compreender porquê.

Ora, por um lado, o governo não redistribui a receita fiscal extraordinária que amealhou ao longo do ano porque Bruxelas não deixa. Tem a capacidade sem a possibilidade; a folga sem a margem.

Como reconheceu um taciturno Fernando Medina, há dias à entrada para o Eurogrupo, a Comissão Europeia vem exigindo aos Estados-membros que não ofereçam mais medidas transversais – "de banda larga", como lhes chamou o ministro das Finanças português – à semelhança dos célebres 125 euros do outono passado, para não contribuirem para a inflação.

As ajudas mais localizadas deste ano, restritas aos mais vulneráveis e à Função Pública, respeitam essa preocupação, obedecem a essa ordem.

Mas não é só por isso que o governo não está "a devolver tudo" o que cobrou a mais aos contribuintes portugueses, contrariamente ao prometido por Medina. É evidente que não está, não sendo evidente por que não está. No parlamento, nas entrelinhas do debate com o primeiro-ministro, a bancada socialista quase o confessou: vem aí o Diabo, e o PS tem medo dele.

Não acredita, caro leitor? Recuperemos uma intervenção.

"O país tem um contexto externo particularmente difícil que ninguém escamoteia, mas os portugueses sabem que só poderemos ultrapassar dificuldades com estabilidade. Ela é um valor em si mesmo, particularmente quando os mares são mais turbulentos", defendeu Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do partido que governa, na mesma semana do tal "brilharete orçamental", do tal "crescimento revisto em alta" e das tais "medidas extraordinárias".

Leia bem. "Contexto externo particularmente difícil", "mares mais turbulentos"; contas certas, apoios menores e menos abrangentes.

Trata-se de um discurso de pré-crise. De uma política de pré-crise. De um governo em prevenção, mais do que em reação.

Nada explica o conservadorismo orçamental do Partido Socialista – e a hibernação do seu eleitoralismo típico – que não um profundo temor pela instabilidade dos mercados financeiros e da banca internacional nos últimos meses. À incerteza da guerra e da inflação juntou-se o receio de uma crise bancária, a que Portugal provavelmente não seria indiferente.

É "o Diabo", ou a sua sombra, seis anos atrasado. E o governo faz bem em ter medo dele.

António Costa, não sabendo o que aí vem, fecha os cordões à bolsa e faz figas para que tudo corra bem até 2024, até à segunda maior tranche do PRR convenientemente programada para esse semestre, até ao cinquentenário do 25 de Abril, as eleições europeias e todas as respectivas surpresas que o primeiro-ministro, naturalmente, preferiria causar a sofrer.

Quem não?

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