opinião

A tolerância em tempo de intolerâncias

26 abr, 13:02

Testemunhámos recentemente referências curiosas ao que podemos designar como “papel tradicional da mulher”, com expressão máxima na defesa do papel da mesma enquanto dona de casa - realçando-se até a defesa da necessidade de um estatuto próprio para proteger tal função.  

Não creio - francamente - que seja necessário. Mas terei de perguntar às donas de casa: O que pensam da sua situação; o que pensam do seu estatuto; onde estão?

Esta visão da mulher como única legítima detentora de determinados papéis sacrossantos remete-nos para o passado. Remete-nos para o tempo em que, no pré-25 de Abril, uma mulher não podia viajar para o estrangeiro sem autorização, não podia exercer determinadas profissões, andar sozinha à noite ou usar biquíni na praia. 

Não será hora de se fazer também um estatuto da mulher, uma manifestação de direitos, condição de existência própria, privilegiada ou desprivilegiada, mas à parte, alienada da sua condição humana - comum - partilhada, com os espécimes de outro sexo? 

Não deixa de ser agradável - bom, até um alívio -  que uma certa visão limitadora da mulher como desempenhando mais naturalmente papéis como o de “dona de casa” tenha arrepiado várias cabeças. De facto, esta ideia merece algum transtorno. Que grau de resposta deve ter? Até que ponto estão os direitos adquiridos ameaçados? Merece revolta na medida em que a igualdade de oportunidades, a visão de que as mulheres são realmente iguais aos homens - igualmente aptas a exercer qualquer profissão, a fazer as suas escolhas pessoais - esteja, efectivamente, ameaçada.

E estará? E qual a razão para esta expressão? As diferenças entre as mulheres e os homens residem na histórica limitação de liberdades a que as mulheres foram sujeitas. Desde logo para votar, para viajar, para trabalhar, para administrar a sua vida. As mulheres viveram muito tempo sob tutela - e estados de tutela limitam sempre a liberdade, e pressupõem inevitavelmente um determinado grau de incapacidade. Felizmente, essa tutela desapareceu.

A necessidade de estabelecer direitos especiais para uma mulher que, “elevada” na sua condição de dona de casa, se veja protegida por um estatuto, não esbate nem altera a sua natureza essencial. A definição de um estatuto para uma função - reservada a pessoas de um único sexo - colide frontalmente com a visão de igualdade entre sexos. 

É preciso tentar perceber de onde vem esta proclamação, esta categorização tardia da mulher ou de mulheres que, sendo “donas de casa”, devem ser também respeitadas. Mas rejeitando veementemente a  ideia de que a mulher possa ser diminuída ou reservada a determinados papéis, apenas por ser mulher. 

Como em qualquer opção de vida que pareça mais limitadora da esfera de liberdade pessoal, podemos pensar que a escolha não foi livre, não pode ser: é necessariamente fruto de um condicionamento tal que impede a pessoa em causa de ver o que está “certo”, as possibilidades de desenvolvimento pessoal que perdeu por escolher a inevitável limitação. É certo que em regimes totalitários, em que os costumes são coercivamente impostos, e a desobediência dura e penalmente sancionada, não se respira liberdade: aí não há escolha. Será a conformação com a opressão uma forma de liberdade? Não creio. 

Mas diferentes escolhas de vida existem, modos de vida mais tradicionais também existem. E também é verdade que há cada vez menos compreensão por escolhas “tradicionais”, que se sentem ameaçadas pela progressiva desvalorização social do seu sistema de valores.

Por vezes, também a imposição de liberdades, ou a manifestação expressa e externa do progresso, pode ser sentida como um exercício de autoridade. Pode ser percepcionada como uma forma de intolerância para quem a velocidade do progresso assusta, ou para quem a maior radicalização do discurso do progresso constitui uma ameaça, real ou apenas percepcionada. Não falo dos “donos de casa”, ou dos “donos das donas de casa”, mas e as donas de casa? 

Ainda assim, para amparar ou defender esses desconfortos, ou o direito a existir ou pensar dessa maneira, não se pode admitir qualquer tipo de retrocesso, qualquer limitação às liberdades em vigor, adquiridas e plenas no seu gozo e no seu exercício. Não se pode também impor aos outros a sua mundividência. Pelo menos em democracia.

A imposição crispada como única alternativa de afirmação de um ponto de vista é fruto da radicalização crescente do espaço público e conduz a uma perda para todos. Para quem defende que as liberdades não estão ainda plenamente observadas, que ainda faltam liberdades, e para quem quer manter um certo status quo, o que também pode ser uma forma de exercício de liberdade. Mas nunca podemos retroceder em direitos.

Ainda assim, a rejeição imediata ou mesmo a ostracização das escolhas alheias quando nos pareçam mais limitadoras da liberdade de quem as faz também não é tolerante, também não respeita o direito à existência de um determinado tipo de pensamento. E faz com que a resposta seja mais amarga e castradora.

Talvez seja preciso reflectir sobre a tolerância em tempo de intolerâncias.  Sem tolerância a polarização aumentará, e a defesa de certas ideias apenas encontrará acolhimento em espaços mais radicais, com uma vontade maior de reduzir a liberdade do outro espectro. Nestas guerras culturais não haverá vencedores, qualquer um imporá a sua visão rígida ao outro, e todos sairemos vencidos, incluindo as liberdades tão duramente conquistadas. E as liberdades não podem retroceder. 
 

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