opinião
Elemento do movimento Missão Escola Pública

"A Escola pública que nasceu de Abril tem sofrido ataques sucessivos, ano após ano"

25 abr, 11:07
Escola

 

Em 1985, uma jovem da Escola Pública, a pedido da sua professora de Português, escrevia um texto sobre o 25 de abril que acabaria por sair no jornal escolar de uma Escola Pública de então. O texto começava assim:

“Recordo-me do dia em que, para o meu povo, nasceu a Liberdade. Lembro-me, com toda a ingenuidade dos meus sete anos, de cada momento que vivi, como se eles tivessem vivido para me darem esperança, agora, onze anos passados.

Lembro-me dos assoladores tanques de guerra terem subido a minha rua. Iam prontos para a guerra – era só o que os meus olhos viam. E eu assisti ao terror da minha mãe, que me apertava a mim e ao meu irmão contra ela. Ouvimos no rádio coisas que eu não percebia. E nisto tudo, eu só via os olhos da minha mãe pintados de medo pelo meu pai que não estava. […] Quem é que adivinhava que, nesse dia, ia nascer a Liberdade? Poucos o sabiam.

Mas esses estavam mais certos que nunca. Era a dor da revolta pelos irmãos oprimidos que lhes dava a força e a certeza. Era a dúvida morta em favor de uma Liberdade que tantas vezes fora pisada e estava por isso pronta a eclodir.

E lembro-me então de como, naquele dia, senti a Liberdade a nascer em mim, para nunca mais morrer desde então.

Durante uma noite, houve a dúvida de que algo pudesse ainda mudar e o povo, consciente da luta que se travava, ainda duvidoso da Liberdade que durante tantos anos tinha vivido esmagada nos seus corações, uniu os seus esforços e trabalhou para que nada faltasse aos soldados que se encontravam no Cristo-Rei, para que fortes e serenos, pudessem ajudar a reviver a Liberdade.

Foi à tardinha do dia seguinte que os soldados desceram a minha rua e, num gesto espontâneo, os cravos nasceram no cano de cada espingarda. Vi cravos vermelhos nos punhos erguidos de cada pessoa, no coração de todos. Agora, sim. O terror do dia anterior tinha morrido. Todos tínhamos consciência de que Portugal era livre.

Naquele momento, só vivi a alegria da Liberdade nascida no peito de cada homem.

Sei agora que muitos morreram, em prisões fechados, por atropelo à sua Liberdade. Sei que a tortura existiu para que nos esquecêssemos de que éramos seres humanos dignos de ter direitos. Sim. Sei que fomos um povo oprimido pelos ideais do fascismo, pelo egoísmo de cada homem que matou a Liberdade com esperança de que ela morresse.

Pobres de espírito aqueles que concebem a morte para um ideal tão profundo, para essa Luz que é tão grande e que se educa e nasce em cada um de nós, em épocas diferentes das nossas vidas. Naquele dia, a Liberdade nasceu para todos nós, ao mesmo tempo. Foi um povo inteiro que a conheceu durante alguns anos e com ela repartiu as lutas.

Hoje, ela está adormecida no coração de alguns homens. Espera por mim ou por ti para voltar a ressuscitar e sermos de novo Portugal Ressuscitado!”

E terminava assim o seu texto. Onze anos depois do 25 de abril. Dissera-lhe a sua professora, que era esposa de um dos capitães que tinham feito acontecer Abril, que estavam naquela altura a morrer os valores que tinham espoletado a mudança e que era necessário acordá-los para que não se repetissem todas as atrocidades sofridas por um povo calado e conformado durante 48 longos anos. E essa menina acreditara que as palavras tinham poder e que conseguira com esse texto reviver o essencial.

Hoje, trinta e nove anos volvidos, essa jovem não sabe o que foi feito da sua professora. Gostava de lhe poder dizer que tinham sido em vão todos os seus temores e que tinha valido a pena o esforço e a conjunção de meios de todos os militares de Abril e de todos os vigilantes como ela que, em anos subsequentes, protegeram a chama da Liberdade.  Que desse texto, escrito onze anos depois, tinha nascido uma mulher que escolhera ser professora, em parte porque ela a inspirara e fizera acreditar no seu valor, em parte porque revalidando a certeza de que todos os sonhos são possíveis quando acreditamos: certo é que escolhera também ela o caminho de acender a vontade e a sede de aprender, numa sociedade livre, mais justa e igualitária.

 Mas a Liberdade exige responsabilidade. A crença de que nada deve ser tomado por garantido e de que temos o dever de estar sempre alerta, zelando por essa chama, que qualquer brisa ou vento pode apagar, se não for sumariamente protegida por cada um de nós. A Escola pública que nasceu de Abril tem sofrido ataques sucessivos, ano após ano, a par de outros braços do Estado Social criados com a revolução de Abril. De repente, a dignidade salarial, o direito à família e à Educação dos seus filhos, o direito à doença, ao respeito pela saúde mental e ao reconhecimento pela alta qualificação conferida por anos de estudo e de trabalho no terreno são valores perdidos pelos docentes e, lamentavelmente, essa perda estendeu-se a tantas outras classes profissionais e a tantos outros grupos da sociedade portuguesa – pilares e reflexo de todas as lutas de Abril, de que só escaparam  aqueles que servem interesses económicos diretos, numa sociedade que se tornou  propícia à  corrupção e ao amiguismo.

Seria bom que toda a sociedade entendesse que a luta dos professores, durante o último ano e meio, poderá ser a única salvação possível para o mundo que se aproxima. António Lobo Antunes disse a propósito da Leitura: “Um povo que lê nunca será um povo escravo.” Ora, a Escola é por excelência o sítio onde todo e qualquer cidadão aprende a ler o mundo que o rodeia, fornecendo-lhe as ferramentas que lhe permitirão distinguir o trigo do joio, os metais nobres do pechisbeque de ideias, as notícias da manipulação. Sem professores, sem a dignificação e o respeito por todos os profissionais da Educação, nenhuma sociedade estará capaz de preparar os seus jovens, como componente futura de uma estrutura bem oleada e eficaz, humanamente competente.  Que país teremos quando todos tiverem desistido? Quando a verdade fabricada for mais forte do que a notícia pura e crua dos factos?

A Escola Pública necessita fortemente de todos os braços, de todas as pontes que possam estender-se para chegar à margem em que cada professor se encontra, neste momento: isolado por sucessivas políticas governativas que não respeitaram valores básicos nascidos no dia 25 de abril de 1974.

Em que ponto é que adormecemos? Onze anos passados sobre 1974, já aquela jovem sabia o quando tresandava a um tempo anterior à sua entrada, justa e igualitária perante todos os outros jovens (quer fossem pobres ou financeiramente mais favorecidos), na Escola Pública. A Escola Pública veio assegurar que todos tivessem direito à Educação. A pouco e pouco, aquilo a que temos vindo a assistir é à criação de depósitos onde todas as famílias sem possibilidades económicas para colocar os seus filhos em colégios (onde estão defendidos os princípios básicos de uma Educação de qualidade) vêm depositar os seus filhos. Uma escola em que já ninguém quer ser professor: uns porque estão cansados e tristes, outros porque não veem na carreira elementos de atratividade que os faça desejá-la como futuro promissor.

Hoje, está imprimido nas escolas, nomeadamente através dos seus Diretores (a maior parte das vezes cada vez mais distantes dos restantes professores - em espírito e tantas vezes em distância física devido aos quilómetros que distam as escolas que compõem os seus agrupamentos – resultado de uma criação dos últimos anos para poupar dinheiro em Educação) uma cultura de medo e de ausência de questionamento e reflexão, uma falta de empatia que permitiria entender os constrangimentos do dia-a-dia vividos por todos aqueles que trabalham no terreno, nas salas de aula e nos recreios reais.

A verdade é que, 50 anos depois, tendo os militares de outrora nos devolvido o direito de falar e de lutar abertamente por tudo em que acreditamos, a essa jovem agora mulher lhe falta a crença de há 39 anos num futuro em que tudo seria risonho, porque sabe agora que estão ameaçadas a Educação e a Informação que permitiria a este povo escolher as lutas e as causas que defende. Mas não desiste. Não desistirá até ao fim de lutar por uma escola pública de qualidade para os seus alunos e para os seus netos, que ainda não tem. Cinquenta anos depois do 25 de abril, a Escola Pública continua em luta e dessa luta depende a sobrevivência e a manutenção dos ideais de Abril. E é de esperança que falamos, apesar de tudo, como há 50 anos, de esperança de que tudo possa ainda ser revertido. De outra forma, se não forem devolvidos a autoridade e o respeito que a sociedade deve aos seus profissionais de Educação, dentro em breve, não existirão professores que possam inspirar e pedir a uma jovem um trabalho sobre o 25 de abril, para um jornal escolar de uma Escola Pública. Porque também essa Escola deixará de existir. E com ela, toda a memória e cultura que entretecem a identidade de um país.

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