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Diretor executivo CNN Portugal

Deixem-se de autovouchers e desçam mas é os impostos

7 mar 2022, 20:30

Um português que conduza 15 mil quilómetros por ano vai gastar dois salários médios este ano na bomba de gasolina. Ainda bem que recebemos subsídio de férias e de natal, senão até seria grave

O governo já parava de inventar. Já se deixava de vouchers, de devoluções e abatimentos indiretos e fazia o que é preciso: descer os impostos sobre os combustíveis. Para começar.  

Só há uma boa razão para ter os impostos altos nos combustíveis, o de dissuadir o consumo por razões ambientais. É uma excelente razão. Mas não é a razão verdadeira pela qual o Estado tem aumentado impostos sobre as gasolinas e os gasóleos. Se fosse, a receita do Estado seria convertida em investimento em vias alternativas e em apoios maciços à eletrificação do parque automóvel. A razão é mesmo a que está a pensar: receita fiscal. O resto é em grande parte lavagem verde, discurso de conveniência.

Acontece que Portugal está perante um abismo de inflação. A tendência já vinha da pandemia e demasiada gente quis crer e fazer crer que ela era passageira, uma lomba antes da valeta seguinte. Não chegámos a testar a hipótese: a guerra na Ucrânia desaustinou ainda mais o preço do petróleo, do gás natural, da eletricidade – e também dos cereais, de alguns metais e de outros produtos. Uma crise energética arrasta tudo porque a produção nas fábricas e o transporte de produtos ficam mais caros.

Em fevereiro, na estimativa rápida do INE, já a inflação subia para 4,2% no mês, o valor mais alto numa década. Dentro do cabaz, os produtos energéticos em fevereiro subiam… 14,9%. E isto foi antes de começar a guerra.

Já chega de fazer de conta: a economia portuguesa vai sofrer com a guerra, crescendo menos, e os portugueses estão a perder (muito) poder de compra, com a inflação.

Já chega de fazer de conta: temos uma dívida pública elevada, o que nos obriga a manter impostos altos, mesmo se andamos há anos a pagar dívida baratíssima porque o Banco Central Europeu anda connosco ao colo, e temos vindo a aumentar a despesa fixa do Estado.

Já chega de fazer de conta: não é com autovouchers que se resolve nada. Os Estados têm mecanismos simples de intervenção e o simples é bom. Simples é usar taxas de juro, como está a acontecer. Simples é descer impostos, como não está a acontecer.

A inflação é um mecanismo económico útil em doses moderadas mas, quando cresce, transforma-se num devorador de dinheiro. Os bancos centrais estão tão preocupados com o crescimento económico – e bem – que, depois do início da guerra, inclinam-se para dar estímulos em detrimento de lutarem contra a inflação. Por isso os juros vão manter-se baixos. Por isso teremos inflação.

Esta inflação não é passageira, por causa do reajustamento dos mercados de petróleo. É fácil dizer que deixamos de fazer comércio com a Rússia, mas fazê-lo é tão difícil, num continente que ingenuamente aceitou tornar-se dependente, que neste preciso momento o gás russo continua a fluir. O caminho que se está a percorrer é ganhar independência energética da Rússia, mesmo que isso implique fazer negócios com outros regimes pouco recomendáveis. Mas não há ingenuidade suficiente no mundo para acreditar que esse ajustamento pode acontecer sem impacto nos preços.

O mesmo governo que está a subsidiar o preço da eletricidade, usando impostos para que ela não suba tanto, anuncia o autovoucher de 20 euros e tem a lata de chamar-lhe bónus, como se tivéssemos de agradecer a um torturador por nos açoitar menos vezes. Portugal é dos países da UE com imposto sobre os produtos petrolíferos e IVA mais altos e não é por consciência ambiental, é porque as contas públicas estão viciadas nisso.

Por isso, caro primeiro-ministro, agora que está prestes a anunciar equipa, programa de governo e Orçamento do Estado, deixe-se de invenções. Diga que “o mundo mudou”, assuma que o preço dos combustíveis está demasiado elevado, que a inflação está a comer dinheiro a toda a gente, que as contas públicas precisam de menos aumentos de despesa rígida e desça um impostozinho que seja.

Pode ser este. Um bocadinho que seja. Então sim, poderemos continuar este texto e falar das margens das gasolineiras.

 

Nota: a remuneração bruta regular média por trabalhador foi de 1.106 euros em dezembro. São menos de 900 euros líquidos (sem subsídio de alimentação). Se um automobilista conduzir 15 mil quilómetros por ano num automóvel que gaste cerca de seis litros aos cem, gastará aos preços atuais dos combustíveis cerca de 1.800 euros no ano. O equivalente, pois, a dois salários médios.

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