Sabe onde acabam as roupas que devolve às marcas de “fast fashion” para reutilização? Não vão para onde pensa

25 jul 2023, 20:32
Desperdício de Roupa (Getty Images)

A maior parte das roupas doadas às marcas de ‘fast fashion’ para reutilização acabam “destruídas”, “abandonadas” ou “encaminhadas para um destino incerto em África”. Os esquemas de devolução podem criar a ilusão de que a indústria da moda está a lidar com o problema do desperdício, revela investigação da Changing Markets Foundation. Mas a realidade é outra

A maior parte das roupas doadas a várias cadeias internacionais de ‘fast fashion’, que prometem reutilizá-las, são na verdade destruídas, deixadas em armazéns ou enviadas para África, segundo uma investigação divulgada esta semana pela Changing Markets Foundation, uma organização não governamental com sede nos países baixos.

Por toda a Europa é possível encontrar nas lojas das grandes marcas de ‘fast fashion’ recipientes que indicam que as roupas doadas serão reutilizadas ou recicladas. Por exemplo, a C&A promete “dar uma segunda vida às suas roupas” ou a H&M que diz “vamos fechar o ciclo”.

Todas essas declarações influenciam a opinião dos consumidores fazendo-os crer que ao doarem roupas estão a fazer um gesto consciente e generoso. No entanto, apesar das grandes promessas de reutilização e reciclagem, as grandes marcas não estarão a cumprir a sua parte. 

A investigação da Changing Markets Foundation foi realizada entre agosto de 2022 e julho deste ano e rastreou 21 itens de roupa doada enviadas a 10 gigantes da moda, incluindo H&M, Zara, C&A, Primark, Nike, Boohoo, New Look, The North Face, Uniqlo e M&S, nas suas lojas no Reino Unido, Bélgica, França e Alemanha. 

A ONG neerlandesa usou Apple Airtags (pequenos localizadores) para rastrear os 21 itens de vestuário em perfeitas condições e verificou que apenas cinco peças encontraram uma segunda vida, seja por meio de revenda na Europa ou para clientes no mesmo continente. “Três destes itens foram para a Ucrânia, onde as regras de importação foram flexibilizadas devido à guerra”, revela o relatório, lembrando que “mesmo antes da invasão da Rússia, o país já era o lar de 6.100 aterros sanitários e cerca de 33.000 depósitos ilegais”.

O relatório comprovou que apesar das promessas dos gigantes da moda, três quartos dos itens (16 de 21) foram destruídos, deixados em armazéns ou exportados para África, onde até metade das roupas usadas são rapidamente trituradas para outros usos. Sendo um dos principais destinos o Quênia, que já foi alvo de investigação local em 2022 da ONG. 

Um par de calças doadas à C&A foi queimada num forno de cimento e uma saia doada à H&M viajou 24.800km de Londres para um terreno baldio no Mali, onde parece ser despejado. Três itens foram parar na Ucrânia, onde as regras de importação foram flexibilizadas devido à guerra", segundo o Relatório do Changing Markets Foundation.

“As promessas feitas pela H&M, a C&A e a Primark são mais um truque de greenwashing para os clientes. A nossa investigação sugere que os itens em perfeitas condições são em sua maioria destruídos, presos no sistema ou enviados para países menos capazes de lidar com a vasta corrente de roupas usadas da Europa”, diz num comunicado de imprensa, Urska Trunk, gerente de campanha da Changing Markets.

“Os esquemas agravam a situação ao oferecer aos clientes vouchers, descontos ou aponta para comprar mais roupas, ampliando o modelo fast fashion que está a aumentar o desperdício”, acrescenta Ursha Trunk. A ONG mostra preocupação relativamente a estes vouchers e descontos pois incentivam ativamente o consumo.

O relatório, intitulado Take-Back Trickery (o truque da devolução), sublinha que esses esquemas “oferecem aos consumidores uma falsa sensação de responsabilidade ambiental, fazendo-os pensar que estão a optar por uma escolha responsável”.

Num outro relatório divulgado recentemente, o movimento Fashion Revolution revelou que pouco mais de um quarto (28%) das empresas divulgam o que acontece com as roupas doadas, não divulgando quanto é revendido localmente, revendido em outros mercados ou reciclado em novos têxteis. Uma realidade que, segundo a Changing Markets Foundation, revela uma falta de visibilidade e transparência altamente preocupante.

O que acontece com as roupas doadas nos esquemas de devolução das marcas? - esquema do relatório Take-Back Trickery.

Segundo a consultora McKinsey, em média, atualmente os consumidores compram 60% mais roupa do que há 20 anos. Um relatório de 2017 da Fundação Ellen MacArthur estima que mais de metade da fast fashion produzida é desperdiçada em menos de um ano e que quase tudo é descartado após apenas sete ou oito utilizações. 

A Europa desperdiça 11 kg de roupa por pessoa todos os anos. A Changing Markets não investigou os truques de devolução em lojas fora da Bélgica, França, Alemanha e Reino Unido. Mas o baixo valor da maioria das roupas das marcas de ‘fast fashion’ demonstra que a maioria das roupas doadas por toda a Europa também são susceptíveis de serem destruídas, trituradas ou deixadas em armazéns, disse a ONG.

Pela primeira vez a União Europeia (UE) está a fortalecer a legislação acerca do crescente problema de resíduos têxteis. A 5 de julho de 2023, a Comissão Europeia apresentou uma proposta para harmonizar a Responsabilidade Alargada do Produtor (EPR), focada nestes resíduos. A medida tem impacto direto nos custos exigindo que as marcas de moda paguem uma taxa por cada produto que colocam no mercado, com o intuito de cobrir os custos de recolha no fim da vida de cada item. Os Estados-Membros já são obrigados a assegurar a recolha separada de resíduos têxteis até 2025, mas esta nova proposta também tornará os produtores têxteis responsáveis ​​financeiramente pelo fim de vida dos seus produtos.

“As regras da UE são uma oportunidade de ouro para melhorar os esquemas de devolução na Europa. Mas o Parlamento Europeu e os Estados membros precisam fortalecer a proposta da Comissão Europeia. Deviam definir metas obrigatórias de reciclagem e reutilização para acabar com estes esquemas de devolução que a nossa investigação descobriu”, afirma Urska Trunk. 

A ONG explica que as descobertas que fizeram através desta investigação “sugerem que os esquemas de devolução são usados como uma ferramenta de ‘greenwashing’, permitindo que as marcas mostrem circularidade, evitando mudanças sistêmicas significativas, como investir em inovações tecnologias de reciclagem fibra a fibra”.

Na sequência desta investigação, a Changing Markets propõe:

  1. Medidas regulatórias: os legisladores devem impor padrões de design ecológico para têxteis e introduzir esquemas de responsabilidade estendida do produtor (EPR) para responsabilizar as marcas de moda pelo ciclo de vida de seus produtos.
  2. Inovação e soluções circulares: as empresas devem investir em tecnologias de reciclagem de fibra a fibra e promover designs de roupas duráveis ​​e sustentáveis.
  3. Transparência e responsabilidade: as marcas de moda devem ser transparentes sobre suas práticas de reciclagem de roupas e acabar com as táticas enganosas de ‘greenwashing’.
  4. Educação do consumidor: os consumidores devem fazer escolhas informadas e apoiar marcas comprometidas com a sustentabilidade genuína.

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